Feitiço do tempo

Vai parecer estranho o que vou falar, mas: se você ainda não assistiu ao novo “A Bela e a Fera”, pare já a leitura, que vai ter muito spoiler. “Ah, mas eu vi o desenho quando era criança”, você dirá. Eu também: umas noventa e seis vezes. E mesmo assim, acredite, saí do cinema surpreso com o remake estrelado por Emma Watson.

Vai parecer estranho o que vou falar, mas: se você ainda não assistiu ao novo “A Bela e a Fera”, pare já a leitura, que vai ter muito spoiler. “Ah, mas eu vi o desenho quando era criança”, você dirá. Eu também: umas noventa e seis vezes. E mesmo assim, acredite, saí do cinema surpreso com o remake estrelado por Emma Watson.

Dirigido por Bill Condon, o filme até lembra uma versão estendida da animação de vinte e tantos anos atrás. Estão lá os mesmos personagens, a mesma história de amor, os mesmos números musicais (“Be our guest”, ufa, faz jus ao original), às vezes os mesmos diálogos e os mesmos movimentos de câmera – com as adaptações necessárias a um longa em live-action.

Verdade que Bela (Watson) agora não é só a mocinha apaixonada por livros, mas também a inventora da máquina de lavar roupa e uma professora disposta a doutrinar menores ao lhes ensinar o subversivo ato da leitura. Outra verdade é que a Fera (Dan Stevens) agora tem uma canção para chamar de sua (“Evermore”) e uivar à vontade, feito certo mascarado que vive a quilômetros dali, sob um teatro em Paris.

Com exceções como essas, continua então tudo igual naquela aldeia? Quase. O roteiro, escrito por Stephen Chbosky e Evan Spiliotopoulos, não está na mesma paz.

Embora visualmente seja uma reimaginação pouco ousada, esse “A Bela e a Fera” torna a narrativa original mais complexa e, portanto, mais instigante ao incluir Villeneuve – o vilarejo em que moram Bela e seu pai, Maurice (Kevin Kline) – no feitiço que transforma o príncipe em monstro, joga seu castelo num permanente inverno e reduz seus criados a móveis e utensílios domésticos.

Não é merchan social sobre Alzheimer o senhorzinho que, logo nos minutos iniciais, devolve a Bela um “acredito que sim, só não lembro o quê”, ao ser indagado se perdeu algo. Não é sinal (apenas) de desinteresse dos locais pelas letras que a única bibliotecazinha da cidade tenha sempre os mesmos títulos na prateleira (isso já acontecia no filme dos anos noventa, mas aqui o fato de o lugar aparentemente jamais renovar sua coleção ganha significado extra). Não é mero déjà vu a impressão de já-estive-aqui tida por alguns moradores de Villeneuve ao invadirem o palácio da Fera.

O roteiro é hábil ao espalhar pistas de que a vila segue bela-adormecida num looping temporal (enquanto caem as pétalas da rosa mágica e permanece a contagem regressiva para o encanto se tornar irreversível). Mais que hábil: é brilhante, ao extrair de elementos que já existiam no desenho – como a canção que sublinhava a provincianice do interior – a matéria-prima para transcender a metáfora do lugarejo-parado-no-tempo, onde os habitantes resistem a mudanças.

Afora Bela e Maurice, que vieram de Paris, estão todos ali condenados a viver “every day like the one before”, e comer todo dia “the same old bread” que o padeiro tem para vender.

Aliada a esse roteiro que expande e ressignifica conceitos da obra original, está a direção cuidadosa de Condon. Ela se destaca na recriação das coreografias com dançarinos de carne e osso (o que já é um baita mérito, por concorrer com as de uma animação, em que qualquer pirueta é possível) e no carinho com que trata, por exemplo, o famoso vestido amarelo – revelado aos poucos, numa reverência ao ícone cinematográfico que se tornou, como o chapéu do Indiana Jones ou a capa do Superman. Outra mostra de apuro é a breve cena em que o Maestro Cadenza (Stanley Tucci) aparece após o fim da maldição: repare em seu sorriso com janelinhas, resultado do uso de algumas teclas como projéteis momentos antes, quando ainda era um cravo e combatia os invasores do castelo.

Tanto esmero com a fantasia não quer dizer, no entanto, desatenção com a realidade. É evidente (e saudável) o esforço da Disney de salpicar o elenco com minorias, como Audra McDonald (a cantora Madame Garderobe) e Ray Fearon (o capelão Père Robert), ambos negros em papéis “comuns”, e não nos tradicionalmente associados à sua cor, como os de empregados. Espaço relevante na telona, porém, quem ganha mesmo é Le Fou (Josh Gad), que agora sai completamente do armário e até arrisca um versinho crítico ao seu amado Gaston (“But I fear the wrong monster’s released”), mostrando que não é desumano como o vilão interpretado por Luke Evans.

Não posso deixar de comentar isso antes de terminar: houve quem sugerisse boicote ao filme por causa da presença de um personagem obviamente gay. Hashtag cansaço. Cá entre nós, se até uma obra que tem o público infantil como um de seus alvos já admite a homossexualidade e sua pessoa não, talvez você seja um daqueles camponeses fadados ao Dia da Marmota. Quantas rosas ainda vão precisar perder as pétalas até que seus neurônios saiam desse looping temporal, ô fera?

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É autor de "Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa" (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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