Na maciez costumeira do quarto, no frio, que é pomo estranho, mas, de muitas formas, saboroso, eu sei os seus olhos de perto. Agora, quando tudo o que posso são as suas costas alinhadas na cadeira, arqueando de leve um sono recente, muito inteira no trabalho, mergulhada de atenção e zelo, não te conto que conto, pelo lado de cá, sentado na cama, a sua imagem de moça distante, a sua figura impossível de encontrar na ideia de você aqui. Sairemos cedo e tudo tem de estar como deve – você diz: as encomendas, entregues; as roupas, lavadas; os ensaios, cumpridos; os avisos, enviados; as malas, feitas. As horas vão se partindo. Paramos para um lanche. Outra vez, a cadeira, a cama. Lá fora, a rua é um rumor – os caminhões, como animais de grande porte, passam sobre o veio bruto das pedras e as janelas estremecem. Depois de um largo silêncio, duas bicicletas conversam. Uma charrete ou carroça, um cavalo de marcha firme remenda de trote a noite. Outra vez, nenhum ruído se levanta, nada perfura a pele do silêncio. A luz, no quarto, é boa – suficiente. Abre as coisas na medida que a vista pede. Tudo que se move são os meus dedos contra o teclado e os seus, ágeis e certeiros, contra o botão do mouse. Você é fotógrafa; eu, um aprendiz de guarda-lume. Você compreende a maquinação engenhosa dos luminares, a passagem que fazem pela abertura correta, a velocidade, a exposição. Eu compreendo que ainda não sei bem quanta luz é necessária para afastar um assombro. Entendo que, não raro, exagero no lampejo e rasgo de clarear as formas, engolindo o contorno de tudo, arrastando a variedade contínua do mundo para uma poça amorfa de luz. Entendo, também, que, às vezes, esfumaço de cegueira os bolos, os aniversariantes, os noivos, que deixo patinar um candelabro sobre a pista de dança, que permito a fuga de um ou dois instantes de vital importância – que sou, no acerto da palavra, negligente com determinadas obrigações próprias do meu cargo de Sancho. Mas, você sabe,
É de lento a lento que se vai lendo, nos moinhos, os dragões.
Além do mais, sou um rapaz de grafismos intermináveis. Você escreve com a luz; eu, corrompo o branco do papel com sombras mais ou menos coordenadas, dividindo em blocos paragrafados o meu abuso, o coro dessa tragédia que é fixar o que não se deixa fixar, que é um ofício de não poder e, ainda sim, seguir tentando. Lá fora, na veia de concreto que se estende, como um tapete imenso e negro, à frente das casas, um cão avisa, com as patas estalando na calçada, que seguirá. Late para alguém, para alguma coisa. Seguiu. Você agora decidiu tomar café e resmunga, muito baixinho, quase para dentro, considerações técnicas e apontamentos estéticos de primeira ordem. O relógio acaba de fincar quatro zeros no visor. Nada haverá de passar até que o próximo minuto rasure a pouca angulação das formas e confisque a eternidade aparente. Estamos na dobra, à beira da madrugada e quanto mais para longe torcemos o nariz, quanto mais violento é o nosso empenho de fugir do sono, mais o sono nos quer conquistar. Um amante faceiro, um competidor voraz. Começam a crescer, em nós, os sintomas da entrega. Uma certa inquietação, respiração pesada e um bocejo aqui e ali. Você sacode os braços, como se quisesse, com o sacolejo, derrubar o peso das mãos, arrancando das articulações o embaraço que vai crescendo devagar e sempre. Levanta. Vem até a cama. Paro de escrever.
Você não pode ver antes de estar terminado
– o texto, o tempo, a noite.
Claro, escrevi isso depois, mesmo sendo antes, como fosse agora. Porque, na verdade, tudo é a ideia de você ali: sentada, trabalhando nas suas coisas, muito tomada pelos ajustes e pelo necessário de cada imagem. Os segundos, ao esbarrarem uns nos outros, ressoam uma nota improvável e contínua. Minhas costas doem pelo arco de quase três horas. É verdade que lá onde o mundo vive tudo ainda realiza, mas nós, metidos aqui, como duas crianças no castigo dos deveres escolares, enraizados na obrigação de cumprir, amarrados a tudo o que nos afasta do assombro mortal das sereias, a tudo o que nos serve de mastro na vida, nós fantasiamos um miráculo pessoal, qualquer vestígio de feriado que faça brotar uma possibilidade no chão arenoso da labuta. Ensaiando um gesto de esperança, com os olhos mareados de uma dormência tênue, encharcados de uma moleza quase em flor, você me diz: pronto, já foi um terço.
Quase lá.
Mais dois e estaremos absolvidos, leves e livres para tombar a pedra do corpo sobre a lisura dos lençóis, enterrando qualquer razão num travesseiro fofo e cobrindo a friagem com o que vier à mão. Mais dois terços. Medidos conta por conta, intervalo por intervalo, joelho por joelho. A via pouco sacra dos nossos empenhos, a força e o ânimo minguando. Dois mais.
Dois.
Em breve, um par de modorrentos anistiados, noctâmbulos ilibados, fecundando os sonhos como bebês recém-chegados que brincam a existência em lapsos de vida, em hiatos despertos de fome e fúria. Ainda, tudo o que vejo são as suas costas para mim, atadas ao encosto, atormentadas pela brandura própria das coisas do quarto, pelo convite silente da cama e dos utensílios do sono, enrijecidas pelo frio – muitas vezes apetitoso, mas, de muitas formas, cruel. Ainda, tudo o que tenho é o terço terminado, a primeira parte da salvação posta, os arquivos já salvos, e a certeza do seu rosto voltar-se uma vez mais antes do fim da empreitada, da sua voz, cedo ou tarde, aparecendo, de um meneio, um sinal, um aceno, um milagre. Ainda, o que tenho, mesmo que pouco, mesmo que quase nada, é a sensação de saber os seus olhos de perto.