Pé na estrada 2

Assim como no primeiro volume de “Um lugar na janela”, Martha Medeiros reúne experiências suas longe de Porto Alegre. Desta vez, o itinerário inclui desde um show dos Rolling Stones no Hyde Park até um retiro em Cascais, passando por uma visitinha a um santuário asiático em que os devotos depositam milhares de pênis de madeira.

Eu no Camboja, com selva por todos os lados? Não podia ser real. Tive certeza disso quando aquelas raízes imensas sobre o templo de Ta Prohm (Google nele, se você não sabe do que estou falando) começaram a deslizar na minha direção cheias de más intenções e a Lara “Tomb Raider” Croft apareceu para me salvar.

Angelina-Jolie-estende-as-mãos-para-a-sua-pessoa é aquele momento em que você cai do colchão.

Aí percebe que aquele país minúsculo, espremido entre a Tailândia e o Vietnã, não só passou a integrar seu repertório onírico, como ainda virou o milésimo segundo destino obrigatório daquela sua lista de mil e um lugares para conhecer antes do último traslado. Culpa de Martha Medeiros e seu “Um lugar na janela 2: relatos de viagem”.

Assim como no primeiro volume – igualmente responsável por me fazer acumular milhas durante o sono, e sobre o qual também escrevi –, a gaúcha reúne experiências suas longe de Porto Alegre. Desta vez, o itinerário inclui desde um show dos Rolling Stones no Hyde Park até um retiro em Cascais, passando por uma visitinha a um santuário asiático em que os devotos depositam milhares de pênis de madeira.

Há pacotes para todas as taras.

Mas aqui eles não são tão importantes quanto na vitrine das agências. O que (mais) conta são as personagens em que a autora se transforma a cada viagem: a excursão ao México não tiraria o fôlego sem a aventureira que se arrisca nos subterrâneos de uma reserva florestal; as férias na Sicília não teriam a mesma doçura sem a “mamma” que resgata da mendicância a filhota mochileira; os dias no Uruguai não seriam tão despojados sem a alma hippie que cruza as ruas de terra batida de Punta del Diablo.

Mais do que descobrir lugares, Martha descobre outras Marthas.

Com a sensibilidade de quem sabe que tocar um chão distante vale mil fotos, mas trocar com os que vivem nele vale o jet lag, elas mostram ao leitor que viajar é uma ótima oportunidade de – mais do que dar férias àquele eu previsível a que a rotina nos reduz – autorizar a decolagem daqueles eus confinados aos lugares-comuns do cotidiano.

Seja com a Martha que degusta a Riviera francesa, seja com a Martha que consome Nova York – mas sempre com a Martha que traduz os cardápios mais sofisticados usando a sintaxe mais simples –, viajar é também ler o outro, é aprender um jeito novo de saudar o tempo, uma forma diferente de vestir o instante, um modo inesperado de temperar as prioridades, um maneira surpreendente de encarar o humano – e com isso exercitar a empatia, expandir o mundo e ampliar perspectivas.

Impossível não desembarcar na última página com a sensação de voltar para casa depois de uma viagem que foi além do descanso e da diversão; de uma viagem cujo excesso de bagagem não pesa nem gera multa: é apenas a certeza de que não somos mais tão turistas de nós mesmos e dos demais hóspedes deste resort chamado Terra.

Tags:, ,
É autor de "Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa" (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

Deixe um comentário