Gypsy, nova série da Netflix: uma trama em que a loucura é o devaneio do desejo.

Gypsy, nova série da Netflix tem 10 episódios de uma hora cada. A protagonista, Jean Halloways, interpretada por Naomi Watts, tem tudo para ser feliz: terapeuta de Manhattan, casada com um belo homem com quem tem uma  filhinha maravilhosa. No entanto, Jean tem em sua mente ideias que contradizem totalmente a ética de uma terapeuta: vivenciar e perseguir seus pacientes, entrando suas vidas, literalmente, sem que eles saibam, claro.  Nesse exercício maluco ela acaba se envolvendo emocionalmente com a história de um de seus pacientes. A partir daí,  sua vida ganha contornos paranóicos em que mistura-se fantasia e realidade, criando um mundo a parte, nada parecido com o que vive com o marido, a filha e seus companheiros de trabalho.

O primeiro episódio já traz a ideia do que iremos presenciar na continuidade da série, uma espécie de viagem ao fundo dos desejos e devaneios de Jean. Logo no inicio são lançadas ao espectador prerrogativas aterrorizadoras com dizeres semelhantes a:  “não se pode controlar todas as nossas ações e programá-las, pelo fato de termos algo maior que está fora do nosso controle, nossos desejos mais ocultos e íntimos”.  Nosso desafio é nos despirmos das convenções sociais, religiosas, culturais, para continuarmos a assistir os episódios e assim mergulharmos nas viagens mais aloucadas da protagonista. Algumas cenas parecem clichês, tudo soa um tanto falso, no inicio, no entanto aos ritmos dos episódios a aderência melhora e a história vai tornando-se mais visceral, ainda que a catarse, isto é, a identificação do espectador com Jean ou com outro personagem não acontece, pelo menos por enquanto. Talvez a filha de Jean seja a mais empática aos espectadores.

Alguns questionamentos surgem, como por exemplo a de que  Jean está fora de si,  pois a forma como ela se comunica com seus pacientes, com o marido e amigos se difere muito de como ela conversa com a filha, num instante de sobriedade e plenitude.  Cada contato com a filha pequena, que prefere se vestir como menino, vai se construindo o terreno da liberdade de Jean. É um exercício psicanalítico, de uma lado a coragem da filha que, apesar de criança, assume sua forma diferente de administrar suas aparência e vontade, de outro, a frieza e dureza de Jean. A protagonista e sua filha se opõem, uma dicotomia sugestiva e instigante para ambas. Jean buscaria o ímpeto de sua filha?

É perigoso aceitar nossas vontades obscuras, como dizia Jung na teoria das sombras. Ver e ouvir o que esse lugar impregnado de medos e desejos tem a dizer. Como dar vazão a essas vozes e imagens? Sua linda filha demonstra coragem e determinação para negar os padrões impostos a uma menina de 9 anos, mas e sua mãe? Vive num mundo perfeito, em seu casamento perfeito. Jean parece não ter consciência de que quanto mais se aproxima da filha mais sente força  para romper com seus tabus e seguir numa vida de surpresas. É provável que a força impetuosa de Jean venha da coragem da filha.

Claro que não há só alegria. Este lançar-se nessa montanha russa de sensações e prazeres traz consigo outro lado da moeda, a emergência de novos  problemas.

Algumas questões são relevantes na série, como a da filha de Jean, que lida com o preconceito das pessoas por ser uma menina diferente das outras de sua faixa etária e por gostar de andar com meninos. Outra abordagem interessante é da traição. A todo momento essa questão é colocada como uma possibilidade inerente aos relacionamentos monogâmicos. E talvez a mais relevante seja a loucura de Jean ao vasculhar a vida alheia, inserir-se neste campo estrangeiro e aproveitar-se da fragilidade dos pacientes, usando seus relatos para se aproximar de pessoas-personagens citadas nos relatos das sessões.

Estou no quarto episódio e recomendo a série, ainda que a crítica não tenha sido das mais favoráveis, pela alegação de lentidão da trama e de acontecimentos sem ganchos bem definidos. No entanto as imagens bem elaboradas e a incrível fotografia juntamente com  o indiscutível talento de Naomi Watts talvez façam valer as 10 horas na frente da telinha. Continuarei a assistir e prometo voltar a falar mais sobre Gypsy, que é uma expressão para designar ciganos e que faz uma brincadeira com psy, termo usado para designar a psiquê.

Assistam, recomendo.

Jean se apaixona pela ex namorada de seu paciente e tenta usar sua persuasão de terapeuta para impedir que eles reatem o namoro.

Jean e seu marido, tudo perfeito, alusão ao casamento idealizada

A protagonista vive novas sensações e se lança num mundo de possibilidades

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É doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes.  Formada em piano e dança pelo Conservatório Musical Villa Lobos. Atualmente leciona na UNIP nos Cursos de Comunicação e na FPA nos cursos de Visuais na disciplina Fotografia.

One Comment

  1. Jacó disse:

    Brilhante análise. Já vi a série toda e gostei, apesar de.não estar entre minhas preferidas.. Mas vamos esperar as próxima.temporadas pra.ver onde vai dar.

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