Estudioso da filosofia tomista, Antonin-Dalmace Sertillanges – mais tarde, ao ingressar na Ordem dos dominicanos, Antonin-Gilbert – foi um importante pensador do século XIX/XX, teólogo e filósofo, professor de ética, chefe de redação da Revue Thomiste e autor de obras de significativo valor intelectual, como L’Art et la Morale, Les Fins Humaines, Le Problème du Mal, La Vie Intellectuelle, son Esprit, ses Conditions, ses Méthodes, entre outras. Para a nota de hoje, nos interessa, especificamente, uma parte desse último livro (A Vida Intelectual – Seu Espírito, Suas Condições, Seus Métodos), onde o autor trata a respeito de “quatro espécies de leitura”, a saber: 1) Leituras de fundo; 2) de ocasião; 3) de estímulo ou edificação; 4) de repouso. Para Sertillanges, “lemos para nos formarmos e ser alguém; lemos com a mira nalgum fim particular; lemos para nos animarmos a trabalhar e praticar o bem; lemos por motivo de distração”.
Levando em conta os apontamentos do autor sobre cada uma dessas “espécies” e acerca de suas finalidades – seus aspectos teleológicos fundacionais – podemos elaborar as nossas próprias divisões ou, ainda, adotar a divisão sugerida para organizar a(s) lista(s) de leitura – sejam elas seleções particulares ou externas – com o intuito de melhor aproveitar o tempo e a energia.
I – Leituras de fundo
“Les lectures de fond veulent la docilité”
Como bem disse o pensador francês, “quem se forma e deve adquirir quase tudo, não está em período de iniciativas”. Muitos se recordam, por exemplo, das diferenças entre Aristóteles – o aluno – e e Platão, o mestre, deixando de lado – por conveniência, esquecimento ou despreparo – os longos anos que o autor da Poética passara na Academia. A história do pensamento está repleta de ótimos exemplos. Mesmo Nietzsche, para tornar-se Nietzsche, teve antes de se dobrar para só depois reconhecer “Sócrates e Platão como sintomas de caducidade, como instrumentos de dissolução grega, como pseudogregos, como antigregos”. Segundo Antonin-Dalmace:
“Quer se trate da primeira formação, de cultura geral, quer se encete o estudo de nova disciplina, de problema até aí descurado, precisamos mais de crer nos autores consultados do que criticá-los e, em vez de os aproveitar, acomodando-os à nossa maneira de pensar, sigamos o caminho por eles primeiro trilhado. Querer agir demasiado cedo prejudica a aquisição; pede a prudência que comecemos por nos dobrar”.
No entanto, dirá o autor, não se trada de uma entrega “às cegas”. Nenhum espírito deve permitir que o prendam. “Mas assim como não se aprende a arte de mandar se não obedecendo, assim o domínio do pensamento só se obtém pela disciplina. Uma atitude de respeito, de confiança, de fé provisória, enquanto se não possuem todas as normas do juízo, é necessidade evidente que só passa despercebida aos presumidos e vaidosos”.
Duas breves observações :
- “Ninguém é infalível”, diz Sertillanges, mas, em condições naturais, o aluno tende a falhar muito mais que o mestre, seja por conta da experiência, que ainda falta; seja pelo afobamento próprio dos primeiros passos, que, em geral, sobra. Cabe ao aluno escolher “os guias em quem confiar”. Tarefa difícil pelo grau de responsabilidade que acarreta e pelo exercício de premeditação que requere. Com vistas nessa árdua empreitada, se atendo mais à qualidade da leitura do que à quantidade, o autor sugere: “Três ou quatro autores estudados a fundo para a cultura geral, três ou quatro para a especialidade e outros tantos para cada problema que surja, é quanto basta recorremos a outras fontes a título de informação, não a título de formação, e só com isso já será diferente a atitude de espírito”.
- Outra consideração relevante diz respeito a um equívoco muito comum, estudar como quem consulta ou consultar como quem estuda. Para o filosofo tomista, “consultar, como quem estuda, é perder tempo, e estudar como quem consulta, é ficar sozinho consigo e perder o benefício que um iniciador vos oferece”. Portanto, é essencial que não se perca de vista, no momento da leitura, a “natureza da ação”, o seu motivo: se lemos para estudar, visando à “formação” (former), nos dedicamos às leituras de fundo e a entrega é total; se lemos para consultar, aspirando “instrução” (informer), passamos às leituras de ocasião, que falaremos a seguir.
II – Leituras de ocasião
“Les lectures d’occasion la maîtrise”
Aquele que lê tendo em vista uma consulta, “com a mira num trabalho” específico, tem a mente direcionada para o que “pretende realizar”; “não mergulha na onda, bebe nela; fica na margem, guarda a liberdade de movimentos, reforça as próprias ideias com o que de fora lhe advém, em vez de as afogar nas ideias de outrem, e sai da leitura enriquecido e não despojado, como sucederia, se a fascinação da leitura prejudicasse o intuito de utilização que a justificava”. Dessa forma, se o leitor, em meio a consulta, se deixa levar pelo assunto, desviando-se do motivo inicial, prejudica – ou mesmo inutiliza – seu esforço, retirando mais do que precisava, se saturando com excesso de informação; de igual maneira, se, durante suas leituras de fundo, apega-se demasiadamente a um aspecto determinado, passando a ter um entendimento mais parcial e condicionado do texto, como um animal que, equipado de antolhos – acessório que se coloca na cabeça para limitar visão – olhasse apenas o que se mostra a sua frente. Assim, é preciso estar sempre atento para, quando se deseja apenas beber, não mergulhar; quando se ambiciona mergulhar, não apenas beber. Recorrendo a um exemplo recentemente adaptado: “não comer de mais no lanche e nem de menos na refeição principal, do contrário, no primeiro caso, engordaremos, acumulando gordura, porque ingerimos mais do que o necessário; e no segundo caso, se comermos de menos na refeição principal, ficaremos com fome, emagrecendo e ficando cada vez mais fracos”. Obrigado Zeca pela explicação da minha explicação!
III – Leituras de estímulo ou edificação
“Les lectures d’entraînement l’ardeur”
Essa espécie ou tipo de leitura diz respeito ao reavivamento dos ânimos, a um reabastecimento e um ganho de potência, quando já estamos desgastados, desanimados com a leitura. A seleção “deve apelar para a experiência de cada qual”. “Aquilo que uma vez deu bom resultado é provável que o torne a dar segunda vez. Uma influência começa sempre por se reforçar, embora depois tenda a gastar-se com o tempo; o hábito aviva-a; uma penetração mais íntima aclimata-a em nós; a associação das ideias e dos sentimentos prende, a tal página, estados de alma que com ela despertam”. Assim, algumas leituras funcionariam como gatilhos, como centelhar que, saltando de um corpo em brasa, devolvem à penumbra um bocado de luz e, no terreno árido, infrutífero, no colmo seco da mente desmotivada, será evocará o extinto fogo, a chama dispersa. “Ter assim, nos momentos de depressão intelectual ou espiritual, autores favoritos, páginas reconfortantes, tê-las à mão, prestes para inocularem no espírito a boa seiva, é recurso incomparável”. A escolha, como já foi dito, irá variar de acordo com o leitor, pode ser o Evangelho de São Lucas, O crepúsculo dos Ídolos, de Nietzsche, a Odisseia, de Homero, as tirinhas de Hagar, o Horrível, a batalha entre Molly Weasley e Bellatrix Lestrange, o primeiro livro da saga Crepúsculo, um texto da coluna de Luiz Felipe Ponde, os tweets de Rita Lee, uma crônica do Veríssimo, etc. “Observe-se cada qual, repare nos seus resultados, reúna em volta de si os remédios para as doenças da alma, e não hesite em repetir, até se fartar, o mesmo cordial ou o mesmo antídoto”.
IV – Leituras de repouso
“Les lectures de détente la liberte”
Por fim, segundo Sertillanges, “no que toca às leituras distrativas, parece não ter tanta importância a seleção; de facto, não a tem, relativamente. Contudo, não é indiferente distrair-se deste ou daquele modo, quando o fim em vista é voltar, nas melhores condições, ao que é a nossa razão de ser”. Dessa maneira, é preciso atenção e parcimônia, há leituras “que não distraem suficientemente; outras distraem demasiado, com prejuízo do recolhimento que se lhes deve seguir; outras desviam-nos, no sentido etimológico, isto é, levam-nos para fora dos nossos caminhos”. Esses textos, os de repouso, desempenhariam um “papel acessório”, divergindo, no que tange à importância, dos essenciais – a nosso ver, os “de fundo” e de “estímulo ou edificação” – e dos complementares – os “de ocasião”. Algumas leituras, de natureza mais complexa, poderão ser insuficientes. Obras de dissociam, como livros de histórias fantásticas – ainda que valorosos nessa “espécie” de leitura – podem ser uma armadilha. Projetos hercúleos, como ler toda a obra de Eça de Queiros ou a História da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux (recomendo a leitura, mas não como “de repouso”), podem desanimar e abater, servindo mais à fadiga do que ao repouso. “Muitos pensadores encontram alívio e atrativo nas histórias de viagens e explorações, na poesia, na crítica de arte, na comédia lida em casa, nos livros de memórias. Cada qual tem seus gostos e o gosto, aqui, é o principal”. Citando S. Tomás de Aquino, o autor aponta a única coisa que garante, de fato, o repouso: “a alegria; seria contrassenso querer distrair-se no tédio”. Assim, “lede o que agrada”, o que, para lembrar Barthes, te dá prazer, seja “bruxaria barata reduzida a aventura” ou um dos clássicos do Cânone ocidental, seja as peripécias do filho de Posseidon ou da Turma da Mônica. O livro certo, aqui, é o que te faz bem.