Ensaios, crítica, crônicas e resenhas.

A reforma de Roman Jakobson

Para a nota de hoje, um encontro com Roman Jakobson: “Foi durante a disciplina de Linguística I – Introdução à linguística – enquanto me debruçava com pavorosa dificuldade e enfado – conservando uma gota ou duas de curiosidade – sobre o Cours de linguistique générale, que encontrei o livro Linguística; poética; cinema, de Roman Jakobson, editado pela Perspectiva”.

Depois de cursar o mestrado num programa que se divide em “Estudos literários” e “Estudos linguísticos” – ainda que o contato entre as áreas não seja muito frequente – de morar com um entusiasta da semiótica, apaixonado por fotografia e quadrinhos; de dividir o apartamento com um dos analistas do discurso mais competentes que já conheci e conheço – dois grandes amigos – eu não devo e não posso negar os profundos e profícuos diálogos possíveis entre a “literatura” e a “linguística”, mas confesso que, por comodismo e despreparo, me esquivei, durante os primeiros anos de labuta, das disciplinas relacionadas ao segundo campo.

Foi durante a disciplina de Linguística I – Introdução à linguística – enquanto me debruçava com pavorosa dificuldade e enfado – conservando uma gota ou duas de curiosidade – sobre o Cours de linguistique générale, que encontrei o livro Linguística; poética; cinema, de Roman Jakobson, editado pela Perspectiva.

Não foi um divisor de águas,

ao bem da verdade,

mas uma pedra que, deslizando da margem, foi ter com o fundo, ondulando a superfície ainda selvagem e bravia, a superfície que escapava não se sabe do que ou de quem, sempre atrasada e confusa e sem jeito.

Depois de muitos anos,

quando a corrente já era outra e o curso não se arrebentava para fora da bacia,

o ruído plosivo da rocha, como dois lábios testando a veracidade do batom no rosto daquele aguaceiro, ainda ecoava, tomando lugar no corpo novo das leituras e concepções, encontrando espaço entre as obsessões, curiosidades e pesquisas acadêmicas do agora.

Naquela época, havia mais reclamação do que razão para reclamar.

Não é que faltasse base para as contestações e para os queixumes, estava tudo lá, nós é que não sabíamos ainda o caminho – meninos atentos, lendo, na agitação das folhas, a força e o movimento dos ventos, apontando vultos, reconhecendo as perucas e as cabeleiras de implante, os enfeites, os bailados; mas, ainda assim, meninos-muito-meninos, cheios de potência e sem nenhuma experiência.

Naquele livro, no capítulo “Poesia da gramatica e gramatica da poesia”, para ser mais específico, assim como em um texto sobre o pensador russo, “O Poeta da Lingüística”, escrito por Haroldo de Campos, encontrei uma ponte ilusória para o abismo pintado entre a Literatura e a Linguística. Ainda que eu mesmo tenha contribuído – com uma pincelada ou outra – para a largura desse borrão, nós já o encontramos, em grande medida, traçado e trabalhado de forma avançada, muito além do rascunho e do plano.

Um tempo depois,

motivado por conversas de café,

acabei lendo Linguística e comunicação, da Cultrix. No último texto do livro, “Linguística e Poética”, encontrei alguns apontamentos de Jakobson que me intrigaram e me fizeram questionar algumas fronteiras – limites que, naquele momento, com os carimbos que constavam (e com os que não constavam) no meu “documento”, ainda não me era permitido ultrapassar.

Uma neblina espessa, naquela época, uma cidade amorfa:

a esquiva que dobrava em duas a rua dos teóricos e dos críticos, a mão certa das rotatórias, a geografia dos bairros, o itinerário das linhas, a gota oceânica de política em quase tudo, as implicações históricas, os interesses compartilhados…

e Roman Jakobson dirá:

Foram-me solicitadas observações sumárias acerca da Poética em sua relação com a Lingüística. A Poética trata fundamentalmente do problema: Que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte? Sendo o objeto principal da Poética as differentia specifica entre a arte verbal e as outras artes e espécies de condutas verbais, cabe-lhe um lugar de preeminência nos estudos literários.

A Poética trata dos problemas da estrutura verbal, assim como a análise de pintura se ocupa da estrutura pictorial. Como a Lingüística é a ciência global da estrutura verbal, a Poética pode ser encarada como parte integrante da Lingüística.

Um pouco adiante, dissertando acerca de uma possível “confusão terminológica” entre o que se chamava de “estudos literários” e “crítica”, continua:

Infelizmente, a confusão terminológica de “estudos literários” com “crítica” induz o estudioso de literatura a substituir a descrição dos valores intrínsecos de uma obra literária por um veredito subjetivo, censório. A designação de “crítico literário” aplicada a um investigador de literatura é tão errônea quanto o seria a de “crítico gramatical (ou léxico)” aplicada a um linguista. A pesquisa morfológica e sintática não pode ser suplantada por uma gramática normativa, e de igual maneira, nenhum manifesto, impingindo os gostos e opiniões próprios do crítico à literatura criativa, pode substituir uma análise científica e objetiva da arte verbal.

E o autor questiona o leitor: “então, por que se faz uma distinção rigorosa entre Lingüística pura e aplicada ou entre Fonética e Ortoépia, mas não entre estudos literários e crítica?”

Os estudos literários, com a Poética como sua parte focal, consistem, como a Lingüística, de dois grupos de problemas: sincronia e diacronia. A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida. Assim, por exemplo, Shakespeare, de um lado, e Donne, Marvell, Keats e Emily Dickinson, de outro, constituem presenças vivas no atual mundo poético da língua inglesa, ao passo que as obras de James Thomson e Longfellow não pertencem, no momento, ao número dos valores artísticos viáveis. A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos. A Poética sincrônica, assim como a Lingüística sincrônica, não deve ser confundida com a estática; toda época distingue entre formas mais conservadoras e mais inovadoras. Toda época contemporânea é vivida na sua dinâmica temporal, e, por outro lado, a abordagem histórica, na Poética como na Lingüística, não se ocupa apenas de mudanças, mas também de fatores contínuos, duradouros, estáticos. Uma Poética história ou uma história da linguagem verdadeiramente compreensiva é uma superestrutura a ser edificada sobre uma série de descrições sincrônicas sucessivas.

A ideia jakobsoniana de que a “linguagem deve ser estudada em toda a variedade de suas funções”, de que, “antes de discutir a função poética, devemos definir-lhe o lugar entre as outras funções da linguagem”, caiu como uma semente no solo rasgado daqueles dias. Ainda que as pesquisas tenham avançado, que muitos nomes e muitas publicações tenham contribuído, depois de Jakobson, para a reavaliação e expansão de determinados conceitos e pontos de vista, as considerações feitas pelo pensador russo no que diz respeito ao distanciamento e/ou estreitamento aparente entre a literatura e a linguística, ou melhor, entre a linguística e a Poética – substituta, em dada medida, da “crítica” – podem pôr em cheque algumas “certezas” e noções pré-concebidas largadas a esmo sobre muita terra boa e ainda nova, sobre muito campo recém preparado, sedento de chuva que, viajando longe, traga um céu fechado, mas carregado de clarões.

Dentro do legado jakobsoniano, no que se refere à Poética como disciplina que “trata dos problemas da estrutura verbal, assim como a análise de pintura se ocupa da estrutura pictorial”, as reflexões poderiam seguir por muitos lados – considerando, inclusive, uma “atualização” de pontos específicos, com aplicações mais contemporâneas – no entanto, como a intenção aqui é “manter as notas”, fica um convite de leitura

e um palpite antigo.

Lucca Tartaglia é doutor em Letras Vernáculas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui mestrado em Letras (Estudos Literários) pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa (2014) e graduação em Letras (Língua Portuguesa / Literaturas de Língua Portuguesa) pela mesma instituição (2013). É colaborador, como pesquisador, no grupo Formação de Professores de Línguas e Literatura (FORPROLL), linha de pesquisa Estudos de cultura, linguagens e suas manifestações, vinculado ao CNPq.

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