I. Antes do princípio
O método sumério de armazenar dados
Ainda que a tendência seja localizar o “princípio de tudo” em algum lugar entre Homero e a Revolução francesa, nós, como espécie, somos muito mais antigos do que – em geral – se presume. Segundo Yuval Noah Harari, professor de história na Universidade Hebraica de Jerusalém e autor do livro Sapiens: uma breve história da humanidade, os primeiros sapiens surgiram na África Oriental por volta de 200 mil anos atrás; a Revolução cognitiva – com a linguagem ficcional e a primeira grande migração – teria começado há 70 mil anos e a Revolução agrícola – trazendo a domesticação de plantas e animais, assim como os assentamentos permanentes – há 12 mil anos. Para o presente texto, no entanto, o passei será muito mais rápido, um pulo, quase ali, na esquiva.
Há 5500 anos (3500 a.C.), aproximadamente, com o crescimento da população e, por conseguinte, do número de informação necessário para coordená-la – os sumérios desenvolveram um “sistema de processamento de dados”, “um sistema”, revolucionaríssimo, “para armazenar e processar informações fora do cérebro concebido especialmente para lidar com grandes quantidades de dados matemáticos”. A invenção abriria caminho para o florescimento de cidades, reinos e impérios, sobrevivendo às eras e se aperfeiçoando até chegar aos nossos dias – essa ferramenta, milagrosa e cheia de potencial, é a “escrita”.
Os sumérios utilizavam “seu método para armazenar informações por meio de símbolos materiais” para fins práticos e armazenavam as informações em tábuas de argila. Nesse primeiro momento, registrar fatos e números era a principal função do sistema, porém, não demorou muito para que os habitantes da Mesopotâmia quisessem ir além. Em 2500 a.C. (4517 anos atrás), de acordo com Harari, “reis usavam a escrita cuneiforme para emitir decretos, sacerdotes a usavam para registrar oráculos e cidadãos menos elevados a usavam para escrever cartas pessoais”. Surgiu, na mesma época, os hieróglifos egípcios. Outros sistemas foram criados, por volta de 1200 a.C., na China e, por volta de 1000-500 a.C, na América central. A popularidade e a eficiência dessas invenções se espalharam, ganhando novos usos e sendo aplicadas em diferentes situações.
Com a popularização dos sistemas, seu desenvolvimento e expansão, a quantidade de registros crescia e foi necessário desenvolver uma maneira eficaz de acessar o conteúdo armazenado quando necessário. Se você tem dez livros na estante, vinte CD’s no suporte, 40 vinis de estimação e uma pilha de quadrinhos pode até parecer fácil, mas experimente usar o mesmo método para organizar alguns milhares e milhões de exemplares. O simples registro não era mais suficiente para garantir a validade e o processamento dos dados. Era necessário criar catálogos, copias, formas de arquivamento e maneiras de acessar mais rapidamente os conteúdos – ou seja, novas ferramentas e pessoas que as soubessem usar. Visando garantir a formação desses profissionais, escolas foram criadas para escribas, escriturários, contadores e, claro, bibliotecários.
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Atualmente, no Brasil, várias universidades federais oferecem bacharelado em Biblioteconomia – exigido, juntamente com o cadastro no Conselho Regional de Biblioteconomia, para qualquer pessoa que ambicione atuar como bibliotecária. Na grade curricular do curso na UFMG, por exemplo, estão matérias como “Fundamentos da organização da informação”, “Linguagens de indexação”, “Catalogação descritiva”, “Formação e desenvolvimento do acervo”, entre outras.
II. De Nínive à Vaticana
O itinerário das caixas e a liberação dos cofres
Formada pelo elemento de composição bibli(o)-, do grego biblio-, de biblíon, diminutivo de bíblos, “livro”, e pelo sufixo nominal -teca, proveniente do grego thēkē, “caixa, cofre, depósito, receptáculo”, a palavra “biblioteca”, segundo o Dicionário etimológico da língua portuguesa, chegou ao nosso idioma através do francês bibliothèque, que, por sua vez, é derivado do latim, bibliothēca, e do grego, bibliothēkē. Assim, por “escavação morfológica”, a biblioteca seria, a priori, um espaço para guardar livros – ainda que “guardar” aqui, idealmente, devesse se aproximar do poema de Antonio Cicero, “Guardar”, e não de um cofre com entrada restrita àqueles que possuem a “senha”, a “palavra-passe”, o “toque secreto”. Para os que ainda não conhecem, segue o poema de Cicero, publicado no livro homônimo, em 1996:
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
As primeiras bibliotecas eram, de fato, depósito de relíquias – onde “perde-se a coisa a vista” – não tinham um caráter público e não presavam pela livre difusão do conhecimento. Como todo bom cofre, o intuito era mais de afastar do que de atrair os curiosos e, conforme aponta Mathew Battles, em A conturbada história das bibliotecas, a reunião de tantas raridades sobre um mesmo teto acabava favorecendo mais a destruição em massa do que a manutenção das obras. Os livros que sobreviveram aos anos pertenciam, em sua grande maioria, a coleções particulares e menores, menos suscetíveis às calamidades e intempéries.
As mais importantes bibliotecas da antiguidade – dentre as que se tem notícia – foram a de Nínive (ou de Assurbanípal), redescoberta Sir Henry Layard, em 1845, com seus registros, em caracteres cuneiformes, feitos sobre blocos de argila cozido que remontam o século IX a.C – dentre eles, os fragmentos da “Epopeia de Gilgamesh”; a de Pérgamo, localizada na antiga Anatólia (atual Bergama, na Turquia), responsável pela invenção, segundo Battles, do pergaminho; a de Pisístrato, em Atenas, fundada por um ditador, mas pública; algumas bibliotecas particulares na Grécia, como a de Aristóteles, Eurípedes e Teofrasto; os acervos privados e públicos de Roma – encorpados pelos saques de guerra – pertencentes a Cícero, por exemplo, à primeira Biblioteca Pública de Roma, idealizada por Júlio César e construída, depois de sua morte, no Fórum romano, ou, ainda, à Biblioteca Palatina e à Ulpiana, fundadas, respectivamente, pelos imperadores Augusto e Trajano. No entanto, nenhuma delas superou – ainda que a de Pérgamo tenha se aproximado – a fama e a riqueza das alexandrinas.
A famosa biblioteca de Alexandria era, na verdade, as bibliotecas de Alexandria – sim, no plural. A primeira e maior delas ficava no interior do Templo das Musas, o Mouseion, e foi erguida no séc. III a.C.; já a menor, a “irmã”, como era conhecida, foi construída cerca de um século depois no Templo de Serápis. As coleções das duas estavam no bairro central da cidade, no Bruquíon, na região dos palácios, localizado nas cercanias do porto – o que justifica o seu primeiro incêndio, iniciado por Júlio César, ao atear fogo nos barcos, as chamas se espalharam, mas essa é uma outra história. As bibliotecas – ou a biblioteca, se entendermos suas instalações e seu acervo como um grande complexo – sobreviveram durante, aproximadamente, seiscentos anos, acabando, em definitivo, no século VI, com o bispo Teófilo e suas ideias sobre paganismo e ateísmo.
De certa forma, tendo como base a história do pensamento – e concordando com Julián Marías, em sua História da Filosofia, o mundo antigo termina, aproximadamente, no século V. Com a queda do Império Romano, o cenário mundial sofre grandes mudanças e a “unidade política” aparente, em virtude das invasões bárbaras por todo o continente europeu, se fragmenta, reinos surgem e, junto a eles, o isolamento proveniente dos Estados bárbaros – em contraste com a relativa “comunidade imperial”. Muito tempo se passará até que os primeiros “vínculos comuns” surjam entre visigodos, suevos, ostrogodos e francos. Até o séc. IX, o trabalho dos intelectuais se voltará, preponderantemente, para a acumulação, conservação e organização de textos clássicos.
À beira da Escolástica primeira de João Scotus Erigena, passando pelo intenso século X, com as invasões normandas, e caminhando rumo a Santo Anselmo, encontramos bibliotecas de três naturezas: monacais, bizantinas e, mais tardiamente, universitárias.
As primeiras, ligadas a conventos e mosteiros, possuíam, em sua maioria, um “Scriptorium”, uma oficina onde os monges copistas trabalhavam na reprodução e restauração de tomos raros, contribuindo para que muitas obras da antiguidade sobrevivessem até a contemporaneidade. Dentre as mais famosas, vale citar a de Cassiodoro, a de Nisibis, e algumas da França – núcleo cultural da época – como as de Corbie, Cluny e de Fleury-sur-Loire.
As segundas, as bizantinas, de acordo com Wilson Martins, em A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, são mais importantes para a história do pensamento que as ocidentais. Para o crítico brasileiro, foi a fuga dos estudiosos bizantinos, portando manuscritos e preciosos conhecimentos, durante a invasão turca de Constantinopla, para o Ocidente, em 1453, que teria possibilitado a Renascença. Dos conventos conhecidos, os mais renomados são o de Studium (Mosteiro de Estúdio), fundado em 462, e o Claustro de Santa Catarina (também conhecido como Mosteiro Ortodoxo da Transfiguração), erguido no sopé do Monte Sinai, no Egito, entre 527 e 565.
As terceiras e mais tardias, as universitárias, só apareceriam às voltas do séc. XIII. A partir da França, com a semente posta pelas escolas de Chartres e de Paris, surgiram as universidades e, consequentemente, um número cada vez maior de estudantes – o que criou uma demanda sem precedentes de obras. Ainda que os processos de confecção dos livros fossem aperfeiçoados, visando o barateamento e, por conseguinte, a acessibilidade, a feitura – para a época – ainda exigiria muitos recursos que inviabilizariam a produção em larga escala. A solução foi liberar o uso dos acervos nas bibliotecas existentes. Um catálogo unificado, contendo os nomes das obras e dos autores, assim como a lista de onde podiam ser encontrados, foi elaborado pelos franciscanos ingleses. A Universidade de Paris, a Sorbonne, começa sua coleção com as doações de Robert de Sorbon e, em meia a essa revolução, o papel do bibliotecário se firma enquanto organizador, mantenedor e disseminador do conhecimento. As bibliotecas passam, finalmente, pelo menos em conceito, de cofres, apontados no poema de Antonio Cicero, às “casas de guarda” – de um “guardar” mais libertário e “ciceriano”. Nesse período, para além da Sorbonne, o destaque vai para as bibliotecas de Oxford e de Cambridge, fundadas em 1334 e 1444, na Inglaterra. A demanda criada pelas universidades será também responsável por três ofícios – a princípio, um – que abordaremos nas próximas notas: o editor, o livreiro e o impressor.
Algumas bibliotecas pessoais, pelo número de exemplares – é importante lembrar – alcançaram um valor considerável para a época, como, por exemplo, a de Carlos V, rei da França, posteriormente incorporada à coleção da Biblioteca Nacional francesa.
No Renascimento, como bem lembra Milanesi, em Biblioteca, ao contrário do guardião das chaves que aparece n’O nome da rosa, de Umberto Eco, o bibliotecário surge como um intermediário e um guia.
A primeira biblioteca pública da modernidade, para Mathew Battles, foi a de San Marco, fundada em 1444, por Còsimo di Giovanni degli Mèdici (Cosme de Médici), banqueiro e político italiano, fundador da dinastia Medici, e as inovações posteriores – até o advento da imprensa, com Gutenberg, e o nascimento do que Chantal Horellou-Lafarge e Monique Segré, em Sociologia da leitura, chamaram de “dinastias de impressores” – modificariam, essencialmente, a experiência da leitura e o contato com o livro. Por essa altura, a preservação física dos volumes começou a ganhar mais espaço entre as preocupações dos especialistas e novas variáveis surgiram. Dentre as maiores bibliotecas daqueles dias, estava a Biblioteca Apostólica Vaticana, idealizada pelo Papa Nicolau V.
III. Nós, que aqui estamos, por voz esperamos
Lá e de volta outra vez – uma espiadela nos números e algumas indicações
Das tábuas aos tablets, muita coisa aconteceu e, como é de se esperar, uma nota curta como essa não daria conta – nem de perto – de um “acervo” tão bem nutrido. No entanto, o intuito é mesmo outro, o de apresentar, de forma breve e rápida – se entregando ao risco que toda brevidade carrega – uma introdução aos arredores do objeto livro. No âmbito da língua portuguesa, poderíamos salientar a Biblioteca joanina, do século XVIII, na Universidade de Coimbra, ou, passando ao Brasil, as consequências da Família Real, os livros que atravessaram o mar – as condições dessa travessia; poderíamos chegar à contemporaneidade, com as bibliotecas e acervos digitais, da Biblioteca Nacional, por exemplo, ou da Brasiliana Guita e José Mindlin, criada em janeiro de 2005. Porém, o tempo é curto, a proposta, enxuta e o espaço, restrito a menos que uma tese.
Em nosso país, de acordo com uma pesquisa feita pelo Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), dentro do escopo do Projeto Mais Bibliotecas Públicas, atualizada em abril de 2015, são “6102 bibliotecas públicas municipais, distritais, estaduais e federais, nos 26 estados e no Distrito Federal”. Distribuídas, regionalmente, da seguinte forma: no Sudeste, 1958; no Nordeste, 1.847; no Sul, 1293; no Norte, 503; no Centro-Oeste, 501. Nós somos, atualmente, segundo a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicada no dia 30 de agosto de 2017, no Diário Oficial da União, com a data de referência para o levantamento de 1º de julho, 207.660.929 de brasileiros.
A quarta edição da Retratos da leitura no Brasil, publicada em 2016, apontou que a “grande maioria dos leitores mora em capitais e municípios com mais de 100 mil habitantes e estão na região Sudeste”. Ainda segundo a Retratos,
Apesar de 55% dos entrevistados informarem que sabem da existência de uma biblioteca em sua cidade ou seu bairro (esse número era maior em 2011 (67%), 66% não frequentam bibliotecas ou frequentam raramente (14%). Somente 5% da população frequentam sempre, e 15%, às vezes.
Todos esses dados – e tantos outros que os acompanham – estão disponíveis, gratuitamente, na internet e trazem informações de extremo valor não só no que diz respeito às bibliotecas no país, mas também – e principalmente – sobre o livro, a leitura e seus afins em terras brasileiras.
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Para os interessados, deixo aqui – como forma de encerramento – algumas recomendações: A biblioteca à noite e Os livros e os dias, de Alberto Manguel; Libraries (Roads Reflections), de Bjarne Hammer; The Library: A World History, de James W. P. Campbell, com fotografias de Will Pryce; O poder das bibliotecas: a memória dos livros no ocidente, de Marc Baratin e Christian Jacob; A conturbada história das bibliotecas, Mathew Battles; A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, do crítico brasileiro Wilson Martins; e Biblioteca, de Luís Milanesi.
Não deixe de conferir as próximas notas da série:
- A livraria e os livreiros
- A imprensa e os impressores
- A editora e os editores