Jardins secretos

Aquela comédia romântica que só você ainda não tinha visto. Aquele Verissimo perdido no revisteiro da salinha de espera da endocrinologista. Aquela bochecha de bebê altamente apertável. Aquela brisa indecente que vem da padaria.

A certa altura de “Um lugar chamado Notting Hill”, Anna (Julia Roberts) e William (Hugh Grant) pulam a grade que protege uma das tantas pracinhas fofas que entremeiam o bairro londrino e são frequentadas apenas pelos moradores. A metáfora não é tão difícil de vencer quanto a altura da cerca: o lugar é a imagem do desvio que um e outro fazem em suas rotinas por um intervalo parnasianamente feliz.

A gente bem sabe (ou deveria saber) que não existe alegria permanente. Você pode ter casado com a metade da sua laranja e preparar aquele suco delicioso todo dia. Pode morar na casa dos seus sonhos e repetir o lema da Dorothy sempre que chega da rua. Pode ter o melhor trabalho do mundo, que você nem chama de trabalho. Pode até – vou pegar pesado na utopia – viver num país liderado por políticos honestos.

No caso do filme, você pode viver num dos recantos mais charmosos de Londres ou ser a estrela de cinema mais querida e bem paga do showbiz.

Mas nem cada uma dessas felicidades mega-hiper-super-extra-large é capaz de imunizar os regulamentares 1.440 minutos diários contra a última denúncia de corrupção; o último esquete daquele CQCista que confunde humor com misoginia; a última liminar que garantiu velhos privilégios; o último atentado; as últimas estatísticas sobre a desigualdade social no mundo; o último alerta dos cientistas sobre o aquecimento global; a última entrevista do Trump; o último boato viralizado pelos desinformantes de sempre; a última bala perdida; o último piti do vizinho fascista (agora ele roga ver os netos de certo ex-presidente espancados na escola); a última edição daquele jornal que espalha notícia falsa na sexta e pede desculpas pela “imprecisão” no sábado, quando a audiência é bem menor. Aff.

Antídotos para esses e outros tantos dementadores? Só as pequenas veredas com as quais a gente topa – ou que a gente abre na marra – enquanto zapeia o dia.

Pode ser aquela comédia romântica que só você ainda não tinha visto (julguem este cinéfilo desnaturado). Pode ser aquele Verissimo perdido no revisteiro da salinha de espera da endocrinologista. Pode ser aquela bochecha de bebê altamente apertável. Pode ser aquele burrito com ricota e brócolis, descoberto na seção de congelados. Pode ser aquela loja de bugigangas nerds no caminho para o banco. Pode ser aquele aviso de que a tão esperada encomenda chegou. Pode ser aquela queda inesperada na cotação do dólar. Pode ser aquele reencontro no ponto do ônibus depois de séculos. Pode ser aquela brisa indecente que vem da padaria. Pode ser aquele gol comemorado com um abraçaço no desconhecido ao lado. Pode ser aquela festinha improvisada com os amigos. Pode ser aquele meme do qual a simples lembrança já faz o riso borrar as rugas.

Pode ser aquela hora em que você resolve dar um tempo no expediente e, como fez Anna, bater à porta azul: em busca de um flash que não saia das câmeras dos paparazzi.

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É autor de "Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa" (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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