A MULHER: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE ARTE E PSICANÁLISE

“O destino de uma mulher é ser uma mulher”  (Clarise Lispector, a Hora da estrela, 1995)

 

Nesta última edição de 2017 da Coluna INcontros, trazemos novamente a contribuição do leitor Guilherme Silva dos Passos*, em mais uma pesquisa sobre a feminilidade, desta vez fazendo uma conexão entre Ciência e Arte:

“O que é a Mulher para a psicanálise? É essa pergunta que acendeu o desejo pelo saber. É visto que em toda a existência do mundo a mulher sempre foi uma incógnita, uma fígura mística, uma esfinge a (não) ser decifrada. Portanto este trabalho tem a intenção de entender o que é ser uma mulher, articulando com a análise de arte.

Uma obra de Sandro Botticelli (1486), “O Nascimento de Vênus”, inspirou a construção desse trabalho. Nesta obra, o ser que representa uma mulher, é coberta, por parte, mas não toda. Há algo que escapa, algo que vela e revela o ser de uma mulher. Faço essa articulação, com base na teoria psicanalítica, a partir de Lacan (1972/73).

O nascimento de Vênus, de Botticelli

E para compreender e entendermos mais essa questão, foi indispensável percorrer como se constrói a sexualidade feminina para a psicanálise. Onde, Freud (1931) pontua que o desenvolvimento de uma mulher e sua sexualidade nasce de uma relação de exclusividade da menina com sua mãe, que se rompe após a garota frustrar-se com a mesma (mãe), frente a diferença sexual anatômica (complexo de castração), resultando em três possibilidades da menina haver-se com sua feminilidade.

Adiante, Freud (1933) descreve que uma mulher só poderá possuir o falo através da maternidade, como uma possibilidade da mulher estar inserida no gozo fálico.

Freud (1937) reforça ao descrever que o desejo de ter um filho vem para uma mulher, suprir o desejo de ter um pênis. Porém, Freud (1937) no mesmo texto descreve, como típico da condição humana, uma dualidade mental (feminino e masculino) no sujeito biológico (fêmea e macho), apontando para a construção do feminino como algo não único da mulher. O que não exclui seu trabalho, que evidenciou o modo de desenvolvimento da feminilidade, e como raiz desta, a relação pré edípica com a mãe e com a castração.

Na vida mental, encontramos apenas reflexos desta grande antítese e sua interpretação torna-se mais difícil pelo fato, há muito suspeitado, de que ninguém se limita às modalidades de reação de um único sexo […] Para distinguir entre masculino e feminino na vida mental, usamos o que é, sem dúvida alguma, uma equação empírica, convencional e inadequada: chamamos de masculino tudo o que é forte e ativo, e de feminino tudo o que é fraco e passivo. Este fato da bissexualidade psicológica dificulta também todas as nossas investigações sobre o assunto e torna-as mais difíceis de descrever. (FREUD, 1937, p.121).

Freud (1937) ao pontuar o feminino como condição mental, presente em homens e mulheres, faz pensar que não é o pênis que se apresenta como falta, mas o modo que o sujeito vive a castração. Pois se a menina, por vezes, questiona ao se ver castrada, buscando na mãe e sequentemente no pai o objeto faltante (o pênis), logo, a menina não abandona de todo, a relação primária do objeto de amor (mãe), como o menino, que teme ser castrado.

É então, a relação pré-edípica com a mãe como pontua Freud (1931), a raiz da feminilidade. Não há algo que barre (castre) inteiramente, essa relação com a figura materna, que se mostra mais marcante no ser de uma mulher, e que se encontra para além do falo.

Zalcberg (2003) descreve que há um “resto” que fica dessa relação da menina com a mãe, Freud (1895) descreve o termo das Ding como um resto que escapa da lei. Lacan (1959/60) entende esse resto como algo do impossível de se inscrever que se apresenta de modo recorrente e permanece para sempre fora do sentido.

Nas  palavras de Lacan,  “O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência, comporta que é esse objeto, das Ding, enquanto Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.” (LACAN 1959/60, p.69). Sendo assim, há algo dessa relação da menina com a mãe que fica, um resto que escapa à significação ao tentar reencontrar o objeto perdido (pré-edipico), é também por isso que Miller descreve que “as mulheres parecem, às vezes e na medida do possível, mais amigas do real…De qualquer forma, isso se explica pelo fato de elas não terem necessariamente a mesma relação com a castração que os homens.” ( 2010, p.2)

É então a partir de Lacan (1972-1973) que pontuo que na maternidade, a mulher se identifica como mãe e não como mulher, algo lhe falta para ser mulher, que não o falo. Trazendo à luz o que apresenta como feminino na mulher, que Lacan (1972-1973) nomeou de não todo, como o gozo da mulher, que se referencia ao gozo fálico, mas não todo, algo que escapa deste, o que coloca o feminino no lugar ilimitado,  mantendo a mulher para além do gozo fálico.

Que tudo gira ao redor do gozo fálico, é precisamente o que dá testemunho a experiência analítica, e testemunho de que a mulher se define por uma posição que apontei com o não todo no que se refere ao gozo fálico […] Vou um pouco mais longe – o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não chega, eu diria, a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que ele goza é do gozo do órgão. (LACAN, 1972/73, p. 15).

Ao descrever que “A mulher não existe” (1972/73, p.78) Lacan diz da inexistência do feminino como falta de um significante que represente e que lhe dê o lugar de mulher. Adiante na teoria lacaniana é possível entender que uma mulher que busca identificar-se a um significante como mulher (significante esse que não existe) pode se deparar com a devastação.

Então, por não existir um significante para se basear, é que mulher deve se tornar Outra, ou Outras a partir dela mesma. O que faz com que a mulher não possa ser dita como artigo definido, mas sim, ser dita uma a uma, na sua singularidade. Assim, podemos de algum modo articular a teoria com a obra “Demoiselles d’Avignon”, de Pablo Picasso (1907), onde cada mulher é única, a seu modo.

Les demoiselles d’Avignon, de Picasso.

O que me levou a concluir, que ser mulher, é um vir a ser, uma construção singular de cada mulher. E que se quisermos saber mais sobre a feminilidade, devemos retornar às orientações de Freud (1933): “Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas” (Freud, 1933, p.92), onde se reconhece na arte e na feminilidade uma relação de intimidade com o real, do impossível de ser dito.”

*Guilherme Silva dos Passos é Psicólogo, graduado pelo Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Interessado sobre a feminilidade, Guilherme vem estudando a temática, através da psicanálise, desde o ínicio da graduação. Frequentou programas de iniciação científica, monitoria e grupos de estudos todos voltados a diversidade de gênero; sexualidade e loucura feminina. Atualmente, segue sua formação em Psicanálise.

REFERÊNCIAS:
BOTTICELLI S. (1486), O nascimento de Venus. Localização: Galeria degli Uffizi, Florença.
FREUD, S. (1895), “Projeto para uma Psicologia Científica”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; (1950).
FREUD, S. (1931), Sexualidade feminina. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; (1996).
FREUD, S. (1933) Feminilidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável (Obras Completas, Vol. 23). Rio de Janeiro: Imago.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira Antonio Quinet]’ – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1959-60.
LACAN, J. (1972-1973/1982). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LISPECTOR, C. (1998). A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco
MILLER, J.-A. Mulheres e semblantes. Opção Lacaniana online nova série Ano 1 • Número 1 • Março 2010 • ISSN 2177-2673. 2010. Disponível em: http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/Mulheres_e_semblantes_I.pdf
PICASSO, P. (1907). Les demoiselles d’Avignon. Localização: Museu de Arte Moderna, Nova York.
ZALCBERG, M. (2003) A relação mãe e filha. Rio de Janeiro/São Paulo: Campus.

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Izabel Liviski é professora e fotógrafa, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Escreve a coluna INcontros desde 2009. É Co-Editora da Revista​ ContemporArtes e Diretora de Redação do TAK! Agenda Cultural Polônia Brasil. Contato: bel.photographia@gmail.com

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