Guerra dos Mundos (1953) e a visão de ciência no pós-guerra
Por Renan Siqueira da Silva – discente do Programa de Pós Graduação em Ensino das Ciências/UFABC
Breno Arsioli Moura – Professor na UFABC
Ana Maria Dietrich – Professora na UFABC
Ao longo de 1897, H.G. Wells (1866-1946) publicou uma de suas principais obras, o romance Guerra dos Mundos. O texto, inicialmente escrito em forma de folhetim na revista inglesa Person’s Magazine, foi transformado em livro e lançado no ano seguinte. Até hoje, Guerra dos Mundos é referência quando se fala em ficção científica moderna.
Guerra dos Mundos tem como ponto de partida a invasão alienígena à Terra. Inicialmente, a população de Woking (Inglaterra) demonstra curiosidade em relação aos objetos recém-chegados, realizando diversas investidas para descobrir sua origem e o motivo pelo qual caíram ali. Após uma dessas tentativas, seres extraterrestres emergem e disparam suas armas letais contra as pessoas no local. A partir disso, o livro acompanha a dominação terrestre pelos alienígenas, seguida pelo pânico instaurado na população.
Guerra dos Mundos é dividido em duas partes. Na primeira (A chegada dos marcianos), em 17 capítulos, são narrados os preparativos e motivos da invasão marciana e a fuga dos humanos diante dos ataques dos invasores, culminando no domínio marciano. A ação marciana é justificada pela escassez dos recursos naturais de seu planeta. Por isso, os invasores vislumbraram a Terra como única alternativa plausível para sua moradia, dadas as condições climáticas de nosso planeta. Na segunda parte (A Terra sobre o domínio dos marcianos), em 20 capítulos, encontramos uma descrição detalhada da ação marciana na Terra, enquanto seus habitantes, que buscam fugir dos invasores a todo custo, travam uma batalha incansável pela sobrevivência. A derrota marciana ocorre de maneira surpreendente. O organismo dos alienígenas não era resistente às bactérias terrestres, o que fez com que eles sucumbissem naturalmente ao ambiente a que foram expostos.
Na época em que foi publicado, a Inglaterra ocupava posição econômica privilegiada, em função do desenvolvimento impulsionado pela segunda fase da Revolução Industrial. Nesse sentido, a obra de Wells é frequentemente entendida como uma crítica ao progresso desenfreado do país, o que poderia levar a uma escassez de recursos naturais em um futuro não muito distante, conforme podemos observar no excerto abaixo:
Mas, antes de os julgarmos com muita severidade, lembremos a destruição cruel e completa que nossa própria espécie impôs não só a animais, como os extintos bisões e dodôs, mas a suas próprias raças menores. Os tasmanianos, apesar da aparência humana, foram inteiramente dizimados numa guerra de extermínio promovida por imigrantes europeus no espaço de cinquenta anos. Será que somos realmente apóstolos da tolerância para nos queixarmos, quando os marcianos nos combateram com a mesma mentalidade? (WELLS, 2016, p.47-48)
Nessa passagem, Wells estabelece uma comparação entre as ações de dominação da Terra por parte dos marcianos e as ações imperialistas inglesas. Ao passo que os marcianos queimavam casas, matavam pessoas, as ações dos países colonialistas implicavam na destruição dos recursos naturais e em genocídios, como o que ocorreu na Tasmânia, onde a população aborígene foi dizimada em um intervalo de 73 anos (1803-1876), reflexos das ações colonizadoras dos ingleses.
O autor
Filho de um jardineiro e de uma criada, que depois se tonariam pequenos comerciantes de tecidos, Wells teve contato com a aristocracia britânica logo na infância, uma vez que sua mãe era empregada doméstica de uma tradicional família inglesa. As discrepâncias sociais que Wells observou ao longo de sua vida foram muito refletidas em suas obras, onde podemos encontrar referências diretas à desigualdade social inglesa. Aos 18 anos, o autor foi agraciado com um bolsa de estudos na Normal School of Science de Kensington, onde desenvolveu sua formação na área biológica. Um de seus professores foi o renomado Thomas Huxley (1825-1895), conhecido como grande entusiasta das ideias evolucionistas do seu amigo Charles Darwin (1809 – 1882). Huxley exerceu um importante papel para que a Teoria da Evolução fosse discutida e debatida. Entretanto, suas contribuições extrapolaram a área biológica, tendo publicado ensaios sobre ciência e religião e educação, e defendendo, entre outras ideias, a inserção de disciplinas de disciplinas sobre as ciências naturais no currículo. A essas vivências atribuem-se a presença nas obras de Wells não só de uma crítica social, mas também elementos científicos e ficcionais.
Guerra dos Mundos faz parte da primeira fase da produção literária de Wells, dedicada a romances ficcionais. Nesse período, ele também publicou A máquina do tempo (1895), A ilha do dr. Moreuau (1896), When the Sleeps Awakes (1899) e Os primeiros homens na lua (1901), além de romances menos conhecidos pelo grande público. Atualmente, a obra de Wells é reconhecida como uma das precursoras do gênero de ficção antes mesmo da consolidação desse gênero, que só ocorreu em meados da década de 1920. As ideias de Wells influenciaram os autores subsequentes da área, como Isaac Asimov (1920-1992) e Robert Heinlein (1907-1988).
O filme de 1953 e a visão de ciência no pós-guerra
A trama de Wells ganhou duas adaptações para o cinema, em 1953 e 2005. Nesse texto, abordaremos apenas a primeira versão, lançada cerca de uma década depois da Segunda Guerra Mundial e em meio ao início da Guerra Fria. Dirigido por Byron Haskin (1899-1984) e vencedor do Oscar de efeitos especiais em 1954, o filme adapta a história original para a Califórnia da década de 50. Essa não foi a primeira vez que a obra de Wells foi adaptada ao contexto estadunidense. Em 1938, em Pittsburgh, foi realizada uma adaptação em versão de radionovela, reproduzida na voz do então jovem Orson Welles (1915-1985). Nesta adaptação, a história foi narrada como boletins de notícias, que interrompiam a programação da estação. O programa ganhou contornos dramáticos, à medida que a população passou a acreditar na história e a fugir de suas casas, procurando abrigo em cidades vizinhas.
Voltando ao filme de 1953, em seu começo, o narrador, em off, explica como as armas de guerra ficaram mais poderosas, destrutivas e mortais durante o século XX, enquanto uma série de filmagens as mostram em ação na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, a introdução do filme já mostra um lado obscuro do desenvolvimento científico e tecnológico, relacionando-o com aumento do poder destrutivo dos armamentos da época.
Depois de exaltar as conquistas ocidentais, principalmente dos Estados Unidos e dos países da Europa Ocidental nas duas guerras mundiais, o narrador, se assemelhando a um locutor de rádio, expõe o problema atual dos habitantes de Marte. Com seu tempo de vida se esgotando, eles abandonaram seu mundo para procurar um lugar novo, não deixando de enfatizar o quanto sua tecnologia, especialmente a bélica, era muito mais avançada que a dos terráqueos. De acordo com o locutor, após longa análise de todos os planetas do sistema solar, a Terra foi selecionada para ser invadida e habitada por eles. Desse modo, apresenta a terceira grande guerra que a humanidade terá que travar, talvez a mais desafiadora de todas: a Guerra dos Mundos.
A pequena cidade californiana de Linda Rosa é o palco de toda a narrativa. Após um flamejante meteoro cair em meio a suas colinas, os habitantes se inquietam para saber sua origem e logo vão ao local. O cientista Clayton Forrester (Gene Barry) é convocado para investigar o acontecido. Entre a multidão de curiosos que se forma ao redor do objeto não identificado, está Sylvia Van Buren (Ann Robinson), sobrinha do Pastor Matthew Collins (Lewis Martin), personagem que acompanhará o cientista por toda a história. Aqui já é possível notar uma adaptação significativa do filme em relação à obra original. No texto de 1898, o protagonista é um morador da cidade de Woking e os cientistas não desempenham um papel de destaque. Para o filme de 1953, quase meio século depois, pareceu natural incluir um cientista como protagonista, visto os diversos avanços científicos e a intensa valorização da ciência.
Como apontamos anteriormente, o filme foi lançado no período inicial da Guerra Fria.
Essa época caracterizou-se pela disputa travada pelas duas potências mundiais que se consolidaram após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). De um lado os Estados Unidos, líder do bloco capitalista e maior potência mundial, e de outro lado a União das Repúblicas Soviéticas (U.R.S.S.), líder do bloco socialista. Essa disputa ficou marcada pelo desenvolvimento tecnológico, impulsionado pelas demandas geopolíticas dos blocos. O poder estava intrinsicamente ligado à capacidade tecnológica, voltada para o desenvolvimento bélico.
Esse processo culminou na chamada corrida armamentista, que foi pautada na conquista do espaço como ferramenta de divulgação ideológica. Americanos e soviéticos tentavam a todo custo superar o inimigo de modo a se tornarem pioneiros em algum marco dessa conquista. Os soviéticos saíram na frente e lançaram o primeiro satélite artificial, o Sputink 1, em outubro de 1957. Esse fato gerou uma crise entre os americanos, que lançaram, em janeiro de 1958, o satélite Explorer 1. Nesse contexto, ocorreu a criação da NASA, com o objetivo de aprimorar o programa espacial americano. Posteriormente, diversos outros marcos foram sendo atingidos durante essa disputa: primeira sonda lunar (Lunik 1 – janeiro de 1959 – soviéticos), primeiro homem no espaço (Alekseyevish Gagarin – abril de 1961 – soviéticos), primeira mulher no espaço (Valentina Vladimirovna Tereshkova – junho de 1963 – soviéticos) e, por fim, o primeiro homem na lua (Neil Alden Armstrong – julho de 1969 – americano).
A partir de uma análise inicial, verificamos que vários elementos da linguagem cinematográfica empregados no filme expressam características da época de sua produção. No fotograma 1, os marcianos atacam pela primeira vez os humanos. A cor vermelha é utilizada para ilustrar o perigo que os invasores representavam para à Terra. Podemos traçar uma analogia entre a representação do comunismo que, aos olhos americanos, representavam um perigo para sua nação.
Fotograma 1 – Primeiro ataque marciano, em que o vermelho é utilizado para representar perigo.
Esse padrão se repete em outras cenas, como podemos notar nos fotogramas 2 e 3.
Fotograma 2 – Marcianos atacam novamente.
Fotograma 3 – Marcianos atacam o pastor Collins.
Nos fotogramas 4 e 5, observamos que o cientista da trama ocupa posição central, ressaltando o papel crucial para o desenvolvimento das nações atribuído à ciência no período:
Fotograma 4 – Clayton Forrester ocupa posição central entre a população curiosa a respeito do primeiro cilindro marciano que caiu na Terra.
Fotograma 5 – Clayton Forrester ocupa posição central entre os membros do Exército.
No fotograma 6, os cientistas reunidos confabulam e efetuam hipóteses a respeito do funcionamento do organismo marciano, bem como do olho artificial que fora obtido por Clayton Forrester em um embate travado com um alienígena. No fotograma 7, os cientistas realizam um experimento para simular a visão marciana. No fotograma 8, os cientistas realizam um experimento para analisar uma amostra de sangue marciano que também foi obtido por Clayton Forrester. Essas etapas (observação de um fenômeno, formulação de hipóteses e realização de experimentos) ilustram de maneira genérica o método científico, como uma sequência de passos. Todos eles são executados rapidamente, sem qualquer dificuldade. Apesar de, atualmente, serem considerados um retrato ingênuo do fazer científico, na época, essa percepção de ciência não só era comum, como utilizada para reforçar sua importância como conhecimento absoluto e inquestionável.
Fotograma 6 – Cientistas formulam hipóteses sobre o olho artificial marciano.
Fotograma 7 – Cientistas executam um experimento para simular a visão marciana.
Fotograma 8 – Cientistas executam um experimento para compreender a composição do sangue marciano.
Sobre os marcianos, estes são retratados como superiores do ponto de vista tecnológico e, por isso, ameaçadores. No fotograma 9 abaixo, é possível notar como a angulação plongée foi empregada para sugerir a inferioridade humana perante os marcianos.
Fotograma 9 – Os humanos são filmados com angulação plongée, ou seja, de cima para baixo, dando a sensação de que são inferiores aos marcianos.
Considerações finais
Na obra de Wells fica evidenciada a crítica que o autor faz ao desenvolvimento excessivo da Inglaterra. Sua obra surge no final da Era Vitoriana (1837-1901), marcada pelo entusiasmo inglês proveniente da condição econômica favorável que o país possuía como consequência de seu pioneirismo nas revoluções industriais. O movimento de opressão e de dominação pelos marcianos na história de Wells se assemelha ao comportamento humano dos ingleses nesse período. Em ambos os casos, o conhecimento científico representa a ferramenta que será utilizada como instrumento de dominação, a qual só pode ser realizada através da utilização de conhecimentos que não fazem parte do arcabouço do dominado. Nessa perspectiva, a ciência é retratada como reprodutora de desigualdades, em que as espécies mais fracas são massacradas, em prol da sobrevivência das espécies mais evoluídas.
Na adaptação cinematográfica de 1953, observamos que diversos aspectos foram modificados de acordo com peculiaridades do período em questão. A principal modificação se refere ao personagem central da história. No filme, a trama gira em torno do cientista Clayton Forrester (Gene Barry), que não existia na história original. A presença de um cientista no filme reflete o enaltecimento científico dos americanos no período da Guerra Fria. A partir dessa adaptação, verificamos que alguns elementos da linguagem cinematográfica, como planos, angulações e cores, são utilizados para expressar esse sentimento de elevação científica frente ao combate comunista.
Tanto o livro quanto o filme de 1953 podem ser utilizados como subsídios para uma discussão sobre a natureza do conhecimento científico e os valores que as sociedades atribuem a ele ao longo dos anos. Ao notar as diferenças entre as obras e especialmente o papel dado à ciência no filme de 1953, podemos concluir como o empreendimento científico nunca é neutro e também pode ser um instrumento de demonstração de poder e dominação.
Bibliografia
CHARLMERS, A. F. O que é ciência, afinal? São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914 – 1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOBSBAWM, E. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
VANOYE, F.; GOLLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a Análise Fílmica. Campinas: Papirus, 2013.
VALIN, A. B. Imagens vigiadas: uma história social do cinema no alvorecer da Guerra Fria 1945-1954. Tese (Doutorado em história social) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006
WINTER, O. C.; MELO, C. F. A era espacial. In: WINTER, O. C.; PRADO, A. F. B. A. A conquista do espaço do Sputnik à missão centenário. São Paulo: Livraria da Física, 2007.
WELLS, H. G. A Guerra dos Mundos. Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2016.