Ensaios, crítica, crônicas e resenhas.

Opúsculo sobre os limites de uma leitura religiosa em Daniel Faria

Algumas considerações sobre os limites de uma leitura religiosa dos escritos – e, principalmente, dos poemas – de Daniel Faria, poeta português contemporâneo, a partir das considerações e apontamentos feitos por Francisco Saraiva Fino, importante crítico e divulgador da obra fariniana.

Em “Para o instrumento difícil do silêncio – fulgurações da palavra poética na obra de Daniel Faria: um percurso”, um artigo fundamental para a crítica fariniana,  antes de adentrar a parte intitulada “Limites de uma leitura religiosa da poesia de Daniel Faria e a definição de uma mística do verbo”, Francisco Saraiva Fino nos previne acerca do impulso de uma leitura puramente teológico – e, por isso, reducionista – da poesia fariniana:

A tentação de interpretar uma parte assinalável da poesia de Daniel Faria através de uma relação com o universo religioso em sentido mais estrito, confundindo vários poemas como manifestações pessoais de devoção ou como expressão idiossincrática de uma crença interior constitui uma evidência demasiado assinalável para ser ignorada por completo; de facto, não deveremos excluir a real necessidade de uma experiência pessoal de fé, mas dela fazer depender uma produção poética tão diversificada seria condená-la a uma limitação que em nada se coaduna com a complexidade do fenómeno poético, essencialmente vocacionado para a partilha da linguagem com o outro. (FINO, 2008, p. 394)

As interpretações de viés religioso constituem, segundo Paolo Alexandre Nené, uma das três linhas de força ou tendências críticas que predominaram na primeira década após a morte do poeta, a saber: a puramente teológica, que tende a circunscrever a obra; a passional ou afetada[1], onde não se faz nenhuma questão de sentido, deixando de lado aspectos hermenêuticos; e a terceira, em clara desvantagem nesses primeiros anos, mais literária e científica, ou, se preferirmos, mais acadêmica[2]. Essa primeira reação não causa estranhamento, mas, pelo contrário, é bastante compreensível, dado que os poemas têm uma forte carga de interpextualidade, “com o particular destaque para o texto bíblico, ostensivamente presente sobretudo nas referências vetero-testamentárias, as que merecem uma maior quantidade de alusões” (FINO, 2008, p. 397).

No entanto, é preciso também reconhecer que a intertextualidade não se limita aos textos bíblicos ou, ainda, a uma leitura atenta de autores místicos

mas direcciona-se com relevância para uma panóplia assinalável de poetas da modernidade, como Rilke, Herberto Helder, Ruy Belo, Paul Celan, Luiza Neto Jorge, Carlos Drummond de Andrade, António Ramos Rosa, Maria Gabriela Llansol ou Sophia de Mello Breyner Andresen, os mesmos que fazem da sua poesia, de acordo com Manuel Frias Martins, “legatária dos precursores que ela própria escolheu”. (FINO, 2008, p. 397-398)

Essa discussão, porém, sobre “fazer depender” a produção do poeta de uma experiência de fé[3] – ou, ainda, fazer os aspectos teológicos dependerem da experiência poética – ainda que tenha sua relevância crítica nos primeiros momentos de apresentação e apreciação de um “poeta maior”, de uma poesia nova e, de tantas formas, diferente em seu tempo, de uma obra que começava a ganhar um corpo de leituras especializadas, nos parece um tanto equivocada e – como apontou Fino sobre a submissão da poética à inegável “experiência de fé” – restritiva e limitadora. Se, durante os anos que sucederam à morte do poeta, uma afirmação mais taxativa se fazia necessária, para garantir uma leitura mais abrangente da obra – leitura essa, sem a menor dúvida, pertinente e necessária – hoje, depois de trabalhos como os apresentados no colóquio de 2009 e a tese de Nené, podemos considerar a regalia de ponderar sobre as naturezas em choque – não dando a uma delas o papel principal, mas entendendo a própria obra como originária de um contato por vezes conflitivo. Parece-nos que o que de fato ocorre é uma relação de aproximação, onde os estreitamentos têm valor paralelístico e visam atingir uma significação outra, dentro de uma equidade possível, para um fim comum.

Como apontou Luís Adriano Carlos, em “A poesia de Daniel faria”, trata-se de “um criador que teve a arte de fundir em estado líquido a mística e a poesia […], porquanto os seus versos traduzem uma rigorosa objectividade da experiência espiritual como elevação estética da palavra e da consciência” (CARLOS apud FINO, 2008, p. 401).

À vista disso, torna-se inegável reconhecer a potência poética e literária da obra fariniana, bem como sua óbvia e ampla extensão referencial, indo dos textos bíblicos e dos poemas homéricos à intertextualidade com grandes nomes da poesia portuguesa, mas não se pode e não se deve negar, também, que se trata de uma poética afetada de modo decisivo pela experiência não só mística – num sentido lato – mas também religiosa – no sentido mais estrito e rigoroso possível; de uma poética que surge da situação radical de um homem religioso – de um seminarista e, na altura da conferência, de um postulante do mosteiro beneditino de Singeverga. Como realidade radical – entendida à maneira de Ortega y Gasset – queremos dizer a vida humana compreendida em toda a sua impartível complexidade, onde “sujeito e objetos coimplicam-se”: “a realidade radical é amálgama sujeito-circunstância na qual tudo o mais se dá, todas as outras realidades lhe são inescapavelmente radicadas” (ASSUMÇÃO, 2012, p. 61).


[1] O adjetivo “afetada”, da forma como aqui o utilizamos, não deve ser entendido como pejorativo, mas, única e exclusivamente, como “tomada de afeto”, “apaixonada”.

[2] Para o pesquisador, as linhas seriam: 1) de perspectiva teológica, tendendo a esgotar a obra, a circunscrevê-la; 2) das leituras apaixonadas, em que não se trata mais da busca de um significado ou de uma dimensão hermenêutica; 3) de alguns artigos literários. Cf. NENÉ, Paolo Alexandre. Ici et ailleurs. Horizons, mouvements et ecriture dans la poesie de Daniel Faria/ Aqui e além. Horizontes, movimentos e a escrita na poesia de Daniel Faria. 2015. 559 f. Tese – Ecole doctorale Europe latine et Amérique latine – ED 122/ Departamento de estudos portugueses e românicos, Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3/ Faculdade de Letras – Universidade do Porto, Paris, 2015, p. 16.

[3] José Ricardo Nunes, por exemplo, ainda que não discorde da posição de Fino, aponta que o “processo de aprendizagem desenrola-se no âmbito de uma relação com o divino, de cuja permanente busca a poesia vai dando conta” (NUNES apud FINO, 2008, p. 401). Assim, mesmo não se tratando de uma leitura reduzida, que leva em conta apenas o que há de teológico nos poemas, acaba classificando a produção do “rapaz raro” – ou tendendo a classificá-la – como uma espécie de “teopoética” – um exercício teológico através da literatura.

 

REFERÊNCIAS

FINO, Francisco Saraiva. “Para o instrumento difícil do silêncio, Fulgurações da palavra poética na obra de Daniel Faria: um percurso”. Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas, vol. XXIII, Porto: 2006 [2008].

ASSUMÇÃO, Jéferson. Homem-massa: A filosofia de Ortega y Gasset e sua crítica à cultura massificada. Porto Alegre: Editora Bestiário, 2012.

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Lucca Tartaglia é doutor em Letras Vernáculas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui mestrado em Letras (Estudos Literários) pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa (2014) e graduação em Letras (Língua Portuguesa / Literaturas de Língua Portuguesa) pela mesma instituição (2013). É colaborador, como pesquisador, no grupo Formação de Professores de Línguas e Literatura (FORPROLL), linha de pesquisa Estudos de cultura, linguagens e suas manifestações, vinculado ao CNPq.

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