Veredas Mortas e Veredas Altas: o papel da Literatura.
Como é tradição de qualquer coluna, o autor apresenta-se dizendo quem é e o que pretende oferecer com seu escrito. Farei um caminho diferente: vou apresentar o título desta coluna – Veredas Literárias. Os leitores mais familiarizados com a Literatura Brasileira rapidamente associam o título ao grande escritor mineiro Guimarães Rosa e sua obra Grande Sertão: Veredas. Essa associação não é gratuita: quem já leu este romance sabe da beleza em acompanhar as veredas narrativas de Riobaldo que, atravessando suas memórias, nos leva aos caminhos da alma.
Talvez, numa próxima oportunidade, eu possa tratar desse delicioso romance, mas não o farei aqui, não o farei agora. Me empresto dele para enveredar nos sentidos das duas veredas que sustentam as memórias de Riobaldo e, com elas, oferecer minha compreensão da Literatura. Quem o leu, sabe da tentativa do narrador, quando líder dos jagunços, de fazer um pacto com o Diabo. Para tanto, percorreu mata noturna até chegar no lugar chamado de “Veredas Mortas”. Aconteceu o pacto? Nem Riobaldo poderia nos dar esta resposta. O certo é que na encruzilhada para o Lugar não onde dão nenhum aviso todas as estradas vão para as Veredas tortas – veredas mortas. Ele sai de lá com seus íntimos esvaziados sem saber ao certo o que ocorrera, mas se dando conta de sua coragem mudada em valentia de jagunço. Veredas Mortas é o lugar de encontro com o demo; é o ponto das memórias em que Riobaldo experimenta a mudança de seu destino. Os jagunços liderados pelo narrador e acompanhado por Diadorim buscam vingar a morte de seu líder Joca Ramiro assassinado traiçoeiramente por Hermógenes. A vingança é desejo de grupo, mas também é desejo de Diadorim – filho de Joca Ramiro – a quem a alma apaixonada de Riobaldo quer satisfazer. E dá-se a grande batalha na qual Diadorim mata o assassino de seu pai, mas acaba por ser assassinado. Diadorim era minha neblina – a dor da morte de seu amado, faz com que o jagunço abandone tudo rumo a um único destino: às Veredas Mortas. Quer lá repor Diadorim em vida, mas no percurso que cobra suas memórias lançando-o no esquecimento de si mesmo, Riobaldo descobre, por meio de um sitiante, que o lugar se chamava “Veredas Altas”. Veredas Mortas como pacto com o diabo em busca da valentia e Veredas Altas como o lugar da palavra, cuja função é a de restituir o seu amor por meio das memórias. Lugar de poder e lugar de palavra me parecem ser as melhores alegorias da Literatura.
Já é lugar comum afirmar que a literatura trabalha com o imaginário e – por tal labor – explora nossos sonhos, medos, alegrias, tristezas, desejos, angústias, enfim, aquilo que comumente chamamos de alma, nosso sopro de vida. Riobaldo menino na fantasia de se fazer homem-jagunço para liderar os demais jagunços vai em busca das Veredas Mortas fazer pacto com o diabo, mas se depara com a dúvida: houve o pacto? Eu mudei porque o pacto se concretizou ou porque a minha fantasia de um possível pacto me deu a coragem que eu não tinha? A Literatura é este lugar da dúvida. Ao percorrermos um romance, um conto, uma poesia que nos causa um grande impacto, ficamos na dúvida em relação ao que podemos ter nos transformados e se de fato houve alguma transformação. O encontro entre o horizonte de expectativa do leitor com o efeito estético da obra literária provoca um deslocamento no leitor chamado pelo formalismo russo de efeitos de estranhamento. As convenções sociais que definem nossa visão de mundo fazem com que tenhamos um horizonte de expectativa muitas vezes simplificado e um tanto quanto fantasiado das coisas e dos acontecimentos. Por ser convenção social, essas visões tendem a corresponder à visão de mundo de grupos dominantes e suas respectivas instituições, chamado de ideologia pela teoria marxista. O horizonte de expectativa de Riobaldo é de que todo grande líder de jagunço fez pacto com o diabo. Ao se ver impelido pelos colegas, e sobretudo por Diadorim, a assumir a liderança, ele segue em direção às Veredas Mortas com o intuito de experimentar o pacto. Da relação entre expectativa e experiência nasce a dúvida como lugar de estranhamento. Portanto, o efeito estético da obra literária é o lugar privilegiado da experiência que coloca em questionamento as verdades das convenções sociais. Sendo o preconceito – alimento da intolerância, do ódio e da violência – produto das convenções sociais, a literatura, ao questionar essas verdades sedimentadas, provoca no leitor o estranhamento, fazendo-o refletir sobre as verdades do mundo e repensar seu lugar no mundo.
Mas nem sempre esse estranhamento nos demove de nossas verdades fincadas pelas convenções sociais. Com seu íntimo esvaziado, Riobaldo volta para a tropa homem corajoso e lidera o grupo em busca de vingança da morte de seu líder Joca Ramiro. O jagunço agora experimenta nas suas verdades as incertezas provocadas pela experiência e a dúvida daquilo que possa ter se tornado. É na batalha final que ele se depara com a verdade para além de qualquer convenção ou fantasia: se o seu corpo está fechado pelo pacto, isto não impede a ferida mortal que coloca em definitivo um fim em sua vida de jagunço: a morte de Diadorim. No desespero, Riobaldo retorna aos caminhos das Veredas Mortas para repor Diadorim em vida. O lugar já não tem o mesmo nome. O narrador descobre que seu nome certo é Veredas Altas. Já não é mais a dúvida com a qual se depara, mas a impossibilidade de retorno. Morre o jagunço, nasce o narrador. A travessia nega o pacto: o diabo não há; o que existe é o homem humano com suas dores, experiências, memórias, narrativas, palavras. Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho é sempre novo. Riobaldo quer restituir a vida a Diadorim e o faz por meio do contar suas memórias – o Sertão. Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. As Veredas Altas é o lugar de restituição do pensamento, o lugar da palavra. Como alegoria da arte literária, as Veredas Altas é o lugar no qual o narrador pode restituir suas memórias e dar vida a quem está morto. Refúgio das palavras.
Se pareceu convincente ao leitor, pago-me da tarefa desta apresentação. Como professor e apaixonado por Literatura, agrada-me entende-la como o lugar que, ao mesmo tempo que potencializa nossas fantasias, também as perturba, provocando em nós questionamentos sobre o mundo e sobre nós mesmos. Para lembrar o ensinamento do grande mestre e crítico literário Antonio Candido, a literatura tem como função o prazer (que ele chama de função psicológica), pois nos permite caminhar pelas veredas dos nossos sonhos e fantasias, mas, ao mesmo tempo, essa função traduz-se em função educativa, pois, ao nos colocar em contato com o universo particular do autor, nos coloca em contato com suas experiências e visões de mundo que nos ajuda a reavaliar o mundo e nós mesmos. Essa reavaliação tem o efeito humanizador, pois, por meio da troca entre o nosso horizonte de expectativa e a experiência estética do autor, ampliamos os nossos horizontes e passamos a ver o mundo com outros olhos. Para fechar, deixo ao leitor uma das lições mais bonita do jagunço-narrador Riobaldo:
“(…) podemos afirmar que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.”