Fragmentos de um arquivo fotográfico: trilhas de uma pesquisa na Comissão Pastoral da Terra-Marabá-PA
Geovanni Cabral
Nos últimos meses, venho desenvolvendo uma pesquisa na Comissão Pastoral da Terra (CPT), tendo como foco as fotografias dos movimentos sociais e dos conflitos pelo uso e ocupação da terra em Marabá-PA e cidades vizinhas. Tal imersão nesse acervo documental partiu de um projeto apresentado à Faculdade de História da Unifesspa, denominado “Ensino de História, fotografias e movimentos sociais: o arquivo da Comissão Pastoral da Terra CPT-Marabá. A pesquisa teve como um de seus objetivos reunir essas imagens mediante sua diversidade temática, possibilitando, dessa forma, seu uso e sua problematização nas aulas de História, associando ensino de História, fotografia e memória.
Percorrer os arquivos fotográficos da CPT foi algo bastante desafiador. Questionava-me sobre que registro imagético iria encontrar acerca dessa região, tendo em vista os inúmeros conflitos pela terra, assassinatos, desapropriações e desmatamentos. Como essas fotografias estariam organizadas e quem as produziu? Que “tempo congelado” estava nos álbuns fotográficos acerca da cidade, que poderia ser utilizado nas aulas de História? Aos poucos, fui me aproximando desses arquivos, como um arqueólogo diante de suas escavações.
Chegando à CPT, fui bem recebido por Iranete e José Batista, aos quais já havia sido apresentado em uma das visitas à Pastoral. Estava ansioso para poder escrever, anotar e fotografar; registrar cada detalhe, cada vestígio que pudesse encontrar. Aos poucos, o silêncio se fez presente, uma luz branca insidia sobre a mesa, as fotografias se espalhavam sobre a mesa. Olhos fitos diante das informações, das memórias, das representações construídas em temporalidades distintas. Como historiador, comecei o trabalho sistemático, registrando e contando as fotos, verificando temáticas que se aproximavam ou distanciavam. Era o início de um longo percurso nesses arquivos; a dinâmica da cidade, a luta dos trabalhadores, as práticas sociais seguiam diante de meus olhos, fazendo-me relembrar de cenas do filme Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore de 1990, em que um garoto se divertia com os fragmentos de películas de filmes italianos.
O acervo fotográfico da CPT é composto por vários álbuns e envelopes que se distribuem por diversidade temática e ano de produção. Em muitos, serão encontradas etiquetas que direcionam o historiador, apontam o caminho para os movimentos e conflitos agrários. Em outros álbuns, não se tem o caminho, o direcionamento das imagens, o que é próprio da natureza de um arquivo que se insere na desordem de sua localização, aguçando a curiosidade em suas pastas. Mas, tal fato não foi impeditivo, muito pelo contrário, suscitou novas experiências investigativas.
Que fotografias foram encontras, a princípio, nos álbuns da CPT? Que representações da cidade de Marabá ou de seu entorno foram localizadas? Não irei, aqui, descrever todas as fotografias encontradas, pois, fugiria de meu objetivo que é relatar esse percurso de encontro, olhares e leituras. Farei isso em outro momento especificamente. A princípio, as fotografias que se apresentavam em minha frente registravam a romaria de libertação, a luta pela reforma agrária, a ocupação de terra, o movimento de trabalhadores pela posse da terra, o desmatamento, os inúmeros assassinatos e massacres, os conflitos com a polícia, o encontro de mulheres em diversas ações, os projetos em assentamentos, o registro do cotidiano de homens e mulheres em acampamentos, assentamentos e conflitos.
Essa diversidade temática permite pensar, refletir e problematizar acerca da região e de suas fronteiras. Seus desafios frente ao homem do campo, à exploração do trabalho escravo, à memória de homens e mulheres, à luta entre o posseiro e o sem-terra. Nas fotografias desses arquivos, encontraram-se as memórias e os cenários de desrespeitos, a negação dos direitos humanos e a violação da vida e da terra. Nessas imagens, foram encontrados registros efêmeros das práticas cotidianas da luta pela terra no sul e sudeste do Pará, envoltos em intenções de produção, cenários, ideologias e mensagens. Contudo, encontrou-se uma fonte documental que, ao ser analisada em sua especificidade histórica de produção, possibilitou conhecer esse tempo passado e presente que se constituem nos cenários fotográficos.
A fotografia tem uma história e, partindo desse ponto, sabe-se que sua criação é permeada por uma produção e recepção. Sendo uma realidade construída, está associada a elementos estéticos, comunicativos, políticos e intencionais. Sua análise permite caminhar entre o antes, o durante e o depois de sua produção e materialização. É o lado humano que capta e registra esse tempo, escolhe o melhor ângulo, compõe cenários e fotografa o que deseja e, também, o acaso. Analisando as fotografias da CPT, é possível deparar-se com essas questões que envolvem o universo de sua produção, da questão autoral, do registro preciso no momento do despejo e do corpo estirado no chão, mas também daquela foto que capta os anônimos, os cenários não escolhidos, os instantes silenciados.
A pesquisa continua; os desafios também, diante dessa leitura do tempo congelado, representado. A princípio, meu objetivo era mostrar na disciplina de prática continuada a importância desse acervo para problematizar os conflitos agrários na região, tendo como fonte o uso dessas fotografias e atentando para o fato de que essas imagens são representações de uma realidade e não verdades históricas, como muitos acreditam ser a fotografia, o testemunho do real, tal qual aconteceu. Analisar criticamente tal fonte permite caminhar por esse universo de produção, tecnologia e intenções. Levar essas fontes documentais para a sala de aula, inserir em atividades pedagógicas, fazer comparações entre registros diferentes de tempo, a meu ver, constituem algo de suma importância, principalmente para o ensino fundamental e médio que se veem inseridos nessa efemeridade imagética.
Compreender a luta pela terra no sul e sudeste do Pará por meio desses registros possibilita aos estudantes uma maior compreensão da sua região, da sua história que nem sempre é contada nos livros e materiais didáticos. Muitas dessas histórias de lutas e enfrentamentos são silenciadas, esquecidas e negadas. Quantas narrativas se perderam nas águas e margens dos rios Itacaúnas e Tocantins? Contudo, quantos registros orais e imagéticos permanecem resistindo ao tempo e à memória? Sabe-se das lágrimas que ficaram congeladas na face de mulheres e homens, dos olhares tristes diante da fome, do abandono do estado e das políticas públicas, dos “gritos” das árvores ao serem ceifadas, das crianças sem esperança. Porém, encontra-se também o registro do sorriso, do trabalho honesto e da luta pela sobrevivência nas lavouras e na floresta.