Modernismo ou Modernismos?

Comumente a Semana de 22 representa, nos Estudos Literários, o início de uma nova fase no Brasil, consolidando o maior marco da Literatura Brasileira. Alfredo Bosi, a exemplo, referiu-se à Semana como divisor de águas na história da cultura brasileira. Joaquim Inojosa considerou-a como a proclamação de nossa independência. Menotti Del Picchia, como a verdadeira revolta brasileira.

Diante desse contexto, poucos estudos não tão recentes, como História do modernismo brasileiro, de Mário da Silva Brito, apresentavam, ainda que timidamente, alguns acontecimentos importantes realizados antes da Semana de Arte Moderna que foram decisivos para sua concretização. A Primeira Guerra Mundial, a intensa imigração e os movimentos sociais da década de 20 são citados em sua obra, na qual, apesar do autor reconhecer tais aspectos, ainda considera a Semana como o grande marco na Literatura Nacional.

Cinco anos após a publicação de Mário da Silva Brito, Joaquim Inojosa publicava Os Andrades e outros aspectos do modernismo, em 1975, exaltando Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia como a trindade mosqueteira e as vozes mais altas da Semana de Arte Moderna de 22. Além disso, segundo Inojosa o termo “modernismo” foi criado na Semana de 22 para substituir “futurismo” e “com ele proclamar a independência cultural do Brasil”.

A grande maioria dos demais estudos relevantes sobre esse tema não destoavam muito desses percursos, isto é, menciona-se brevemente, ou simplesmente não se menciona, movimentos em outros locais do país além de São Paulo, assim como artistas de outros estados, e os momentos antecedentes a realização da Semana que foram decisivos para seu acontecimento.

Contudo, quanto mais nos distanciamos desse período histórico, surgem novas reflexões questionando a consideração da Semana de 22 como início de um novo movimento e, em virtude disso, encontramos estudos abordando o período anterior à Semana como período marcado por inúmeras lutas, as quais se encontravam abrandadas nas criticas literárias em virtude da efervescência da realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo.

Dessa forma, o termo “Modernismo”, que veio até o momento demarcando um período literário como singular e homogêneo, tem sido substituído por “Modernismos” com intuito de fazer alusão aos movimentos literários manifestados no Brasil, enfatizando que esses não se restringiram à capital paulistana.

No artigo “Antigos Modernistas”, Francisco Foot Hardman considera que a crítica e as histórias culturais e literárias, quando presas à noção de “vanguarda”, comprometem aspectos culturais importantes iniciados na sociedade brasileira. Para o autor, é possível verificar três defeitos nocivos causados pela historiografia que se restringia a interpretar o passado cultural brasileiro com as lentes de 22. São eles:

A exclusão de amplo e multifacetado universo sociocultural, político, regional que não se enquadrava nos cânones de 1922, em se tratando, embora, de processos intrínsecos aos avatares da modernidade; b redução das relações internacionais na cultura brasileira a eventuais contatos entre artista brasileiros e movimentos estéticos europeus, quando, na verdade, o internacionalismo e o simultaneismo espaço-temporal já se tinham configurado como experiências arraigadas na vida cotidiana do País; c definição esteticista para o sentido próprio de modernismo, abandonando-se, com isso, outras dimensões políticas, sociais, filosóficas e culturais decisivas à percepção das temporalidades em choque que põem em movimento e fazem alterar os significados da oposição antigo/moderno muito antes de 1922. (HARDMAN, 1992, p.168).

 

Ao discorrer sobre os três defeitos apontados pela redução do Modernismo a um período homogeneizado, Francisco Foot Hardman faz observações essenciais que justificam a substituição do vocábulo Modernismo por Modernismos, pois como observado acima, esse busca contemplar a abrangência do movimento em nosso país. Ademais, o emprego de três vocábulos marcantes – exclusão, redução e abandono – deixam transparecer a enorme perda sofrida pela Literatura Brasileira ao reduzir um período tão amplo e diversificado, como foi o Modernismo no Brasil.

Nesse sentido, encontramos no texto do autor exemplos pertinentes para justificar suas considerações: algumas obras e pensadores da década de 1870, analisadas por José Veríssimo, já apresentavam ideais e reivindicações suficientes para nomearem o período de modernismo; a oposição entre campo e cidade; os efeitos da imigração estrangeira e a contradição entre nacionalismo e cosmopolitismo estavam presentes na literatura brasileira há, pelo menos, meio século antes da Semana de Arte Moderna. Fica evidente, portanto, que a sociedade brasileira já vinha sofrendo transformações que produziam fatos culturais modernos sobre diferentes pontos de vista.

Corroborando com esse pensamento, Daniel Faria, em O mito modernista, afirmou que, assim como outros estudiosos, pretendia questionar a simplificação do contexto cultural, político e social oriundos da delimitação do termo Modernismo, no Brasil. Para isso, analisou a trajetória de dois autores, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia, com a relação da escolha de alguns termos, como futuristas e posteriormente modernistas, como “armas táticas de legitimação” e como “opção estético-política”.

Ao traçar esse percurso, Daniel Faria faz importantes observações que nos fazem entender por que a proporção do movimento modernista em São Paulo ganhou notoriedade muito maior se comparado a outras regiões do país.

Como se sabe, o Parnasianismo além de ditar princípios, representava a preferência literária da maioria da população brasileira até meados de 1910. Assim, as manifestações artísticas que não se enquadravam nos moldes parnasianos eram, consequentemente, ignoradas pelo público ou conquistava poucos adeptos e leitores. Tais movimentos eram, por sua vez, isolados e com pouca visibilidade, inclusive, aqueles iniciados na cidade de São Paulo que, por questões políticas, obtiveram proporções diferentes, isto é, inicialmente alcançaram maior popularidade se comparado com as manifestações modernistas de demais localidades.

Nos últimos anos da década de 1910, havia, em São Paulo, um grupo de intelectuais que tinha como propósito a reinvenção do cenário literário brasileiro. Formado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Luís Aranha, a busca por reconhecimento e visibilidade pública intensificava-se gradativamente.

Esse cenário, para Daniel Faria, não passava da prevalência de um grupo específico responsabilizado pela revitalização da arte no Brasil. Receberam homenagens em espaços notáveis como o Trianon, foram rotulados como os grandes super-heróis do movimento Modernista (Mário de Andrade como papa do modernismo e Oswald de Andrade como o bispo) e recebiam ajudas de pessoas influentes no cenário político do país, o que lhes possibilitava maior visibilidade.

Em O mito modernista, o percurso de Mário de Andrade e Menotti Del Picchia, nomeados respectivamente como o “ícone sagrado” e “herança maldita”, são abordados sobre um viés menos comum daqueles que, comumente, observamos na crítica literária.

Ambos possuíam projetos diferentes, mas que seguiam trajetórias paralelas. Mário de Andrade e Menotti Del Picchia estavam do mesmo lado da Revolução Constitucionalista e participaram do governo paulista de Armando de Sales Oliveira. Por outro lado, Menotti participava da vida política do PRP (Partido Republicano Paulista) enquanto Mário estava, a partir de 1927, ao Lado do PD (Partido Democrático). Além disso, Menotti foi eleito deputado estadual em 1926 e redator do Correio Paulistano durante quase toda a década. Mas, foi a partir de um mesmo núcleo retórico que os autores delinearam, durante a década de 20, argumentos distintos. Enquanto Mário de Andrade traçava temas da humilhação e do sacrifício de si como motes de legitimação, Menotti Del Picchia delineava imagem do martírio encenado diante das multidões.

Nesse sentido, é necessária a consideração dos rumos políticos que o país seguia na época, uma vez que esses provocaram condições propícias para mudanças e inovações, também, no mundo artístico. E, é por intermédio dessas considerações que Daniel Faria, na tentativa de destruir os mitos modernistas, propõe reflexões relevantes entre os anos 1920 a 1930, ressaltando que todas as limitações feitas sobre os estudos das manifestações modernistas no Brasil, provavelmente, eliminam artistas e movimentos não pertencentes a um grupo específico e consagrado como o composto por Mário e Oswald de Andrade. Ademais, ajudam-nos a entender a utilização do termo pré-modernismo como uma maneira de sagrar a Semana de 22 como um marco na Literatura Nacional, levando-nos a propagar a indagação de Daniel Faria: existe apenas uma história a ser contada?

A resposta, obviamente, negativa, nos faz refletir e repensar a situação quase “marginal” dos movimentos com características inovadoras e modernistas não pertencentes à cidade de São Paulo. Porém, mesmo sabendo que sem a realização da Semana de Arte Moderna haveria o Modernismo, é difícil destruir um “mito” que possibilitou o anúncio e reconhecimento de um movimento que não alcançava as proporções desejadas.

 

Referências Bibliográficas:

FARIA, Daniel. O mito modernista. Uberlândia: EdUFU, 2006

HARDMAN, F. Foot. Antigos modernistas. In: A vingança da Hileia. São Paulo: Unesp, 2009. [1ª. ed.: In: Tempo e História. São Paulo: Comp. Letras, 1992].

 

É doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, graduada em Letras pela mesma instituição. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e Sociedade, Literatura e espaço urbano e poesia brasileira.

Deixe um comentário