Por Renata SIUDA-AMBROZIAK*
Durante a II Guerra Mundial, a minha terra tornou-se o palco da maior carnificina que se pode imaginar. Em cada esquina morreram dezenas, centenas, ou milhares de pessoas. Essa situação de praticamente cada um de nós, poloneses, ter perdido os familiares tem a ver muito com a memória da Guerra e do Holocausto na Polônia e com as controvérsias recentes ligadas às mudanças na narrativa e no discurso internacional sobre a II Guerra Mundial em geral e o Holocausto em particular.
Parece que por razões ideológicas, econômicas e políticas, as interpretações do crime contra a humanidade que aconteceu nos tempos da guerra estão começando a ser desenvolvidas de maneiras novas, surpreendentes e, ao mesmo tempo, bem perturbadoras. Especialmente quando aparecem as tentativas para explicar o Holocausto pela “coautoria” dos poloneses e aparece no discurso diplomático a expressão “campos de concentração poloneses”.
Vejamos simplesmente os fatos – o Holocausto foi planejado e preparado pela Alemanha nazista, mas executado na Polônia ocupada. Antes da guerra a Polônia gozava da maior concentração de judeus na Europa e da segunda maior do mundo, depois dos Estados Unidos. Foi decerto precisamente por causa da numerosa população judaica na Polônia que os locais de extermínio foram estabelecidos pelos nazistas no território polonês. Mas o Holocausto foi institucionalmente organizado e sistematicamente levado a cabo pelos alemães nazistas.
A II Guerra Mundial eclodiu com a agressão da Alemanha nazista na Polônia, em 1 de setembro de 1939. Em 17 de setembro de 1939, segundo o Tratado de Ribbentrop-Molotov, também as tropas soviéticas invadiram a Polônia, colaborando perfeitamente na destruição do país com os nazistas. Nas terras polonesas sob ocupação soviética, os judeus, junto com os poloneses, foram enviados aos campos de trabalho penais ou brutalmente executados com tiros covardes na cabeça dos prisoneiros desarmados (Katyn, Miednoye).
Ainda em 1939 os nazistas começaram a criar no território polonês ocupado as grandes concentrações de judeus nos guetos urbanos (o maior – de Varsóvia com 400 mil pessoas) e a estabelecer os primeiros campos de concentração (primeiro Stutthof, e em 1940 Auschwitz – uma verdadeira fábrica de morte com câmaras de gás e crematórios, onde se matavam até 20 mil pessoas diariamente, usando Zyklon-B e monóxido de carbono).
Naquele tempo os poloneses já tentaram fazer o alarme sobre o que estava acontecendo, passando informações precisas sobre o Holocausto para os aliados. Infelizmente, sem resultados. Havia voluntários poloneses que entravam nos campos de concentração nazistas para descrever a realidade, mas naquele tempo ninguém ouvia. Mais até − alguns governos europeus colaboravam tranquilamente com o III Reich do Hitler…
Em 1941 foi emitido pelos nazistas um decreto sobre a aplicação da pena de morte aos poloneses que ajudavam aos judeus a sobreviver, por exemplo escondendo-os nas suas casas − em nenhum outro país ocupado pelos alemães estava em vigor uma lei tão rigorosa como na Polônia. Logo depois, em 1942, apareceu o plano para a “solução final da questão judaica na Europa” − o extermínio em massa da população judaica nos campos de concentração na Polônia.
Ao mesmo tempo o Dr. Josef Mengele começou os seus experimentos médicos criminosos no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, e os alemães nazistas começaram a liquidar os guetos e a deportar os seus habitantes aos campos de concentração. Em 19 de abril de 1943, começou a revolta armada dos judeus no gueto de Varsóvia − um gesto de desespero contra a sua liquidação. O levante durou até 8 de maio de 1943. Depois de sufocar brutalmente a revolta, os nazistas proclamaram oficialmente o Terceiro Reich “limpo de judeus”.
No dia 24 de julho de 1944, no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, num só dia foram mortos cerca de 40.000 seres humanos. Foi um recorde na história da indústria nazista de morte. Em 1 de agosto de 1944 o exército subterrâneo polonês promoveu um levante em Varsóvia. Intensos combates com a Alemanha duraram até 2 de outubro de 1944, resultando na matança de quase 200 mil varsovienses. A cidade ficou quase completamente destruída.
Em 25 de novembro de 1944, Himmler ordenou explodir as câmaras de gás e os crematórios de Auschwitz-Birkenau e apagar os vestígios do assassinato em massa. Em 18 de janeiro de 1945 as tropas SS alemãs começaram a evacuar o campo − 66 mil prisioneiros foram levados para o Ocidente na “marcha da morte”, que matou mais de 15 mil seres humanos. Em 26 de janeiro de 1945 − tropas soviéticas, agora aliadas, libertaram o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, onde ainda havia 7.000 esqueletos-prisioneiros. Em 30 de abril de 1945 − Adolf Hitler cometeu suicídio no bunker em Berlim.
A guerra resultou na morte de mais de 6 milhões de cidadãos poloneses, dos quais 3 milhões eram judeus poloneses. Muitos deles sobreviveram graças à ajuda dos poloneses. Atualmente, o título de “Justo entre as Nações do Mundo”, outorgado àqueles que arriscaram conscientemente as suas vidas para salvar aos judeus, foi dado a mais de 6 mil cidadãos poloneses – o maior número entre todas as nações do mundo.
No entanto, o agressor que invadiu a Polônia em setembro de 1939, organizando o Holocausto de uma maneira fria, bem pensada e sistêmica, depois de 1945 teve uma chance do desenvolvimento democrático e econômico sem precedentes graças à situação da Guerra Fria. A Polônia ficou atrás da Cortina de Ferro, destruída, saqueada pelos alemães e soviéticos e traída pelos aliados, que a deixaram, depois de se ter aproveitado dos cientistas poloneses quebrando o famoso código de Enigma e dos milhares dos soldados poloneses lutando no Ocidente.
Entre eles os famosíssimos pilotos poloneses que defenderam Londres dos bombardeios dos nazistas, à mercê de Stalin e da “democracia popular” proclamada pela União Soviética, vista pela maioria esmagadora da população como uma outra ocupação. As tropas polonesas, incluídas no exército aliado, nem foram convidadas para comemorar o final da II Guerra Mundial…
Mais ainda − a divisão entre “perpetradores e agressores” e “vítimas”, tão claramente visível durante e logo depois da guerra, cedeu agora lugar às discussões já não tão unilaterais. Por isso os poloneses reagem muitas vezes emocionalmente. No nosso olhar, a maneira como a II Guerra Mundial e o discurso do Holocausto estão sendo ultimamente apresentados parece absurda, concentrando-se nos poucos casos de colaboradores poloneses e omitindo a generalizada fraternidade dos poloneses e judeus na luta e a ajuda dos poloneses aos judeus durante o Holocausto, confirmada por pesquisas detalhadas.
As narrativas históricas comprovadas estão dolorosamente colidindo com os pontos de vista dos que frequentemente nem passaram pela ocupação alemã, mas acham que possuem o direito de colocar a culpa naqueles que em razão dela passaram pelo maior sofrimento…
Em tal situação torna-se cada vez mais difícil manter indiscutível a verdade sobre a Guerra e o Holocausto. Parece que agora a cada dia aumenta a tensão, provocando terremotos nas relações internacionais pela atitude estranha da “divisão da culpa pelo Holocausto” entre os agressores e as vítimas.
A Polônia perdeu na guerra quase 40% dos seus cidadãos, entre eles judeus. O destino dos judeus poloneses durante o Holocausto não foi algo único ou separável do destino da etnia polonesa em geral. Mas agora fala-se antes de tudo sobre o antissemitismo na Polônia durante a guerra ou a indiferença dos poloneses em relação aos judeus fechados nos guetos ou nos campos de concentração. Infelizmente, não mostrando os fatos acima expostos, por exemplo as punições com a morte aplicadas àqueles que aparentemente não sabiam mostrar essa indiferença, assim como a todos os membros das suas famílias… Ou a indiferença cruel dos aliados frente aos relatórios sobre o Holocausto providenciados pelos poloneses nos primeiros anos da Guerra.
Sim, com certeza houve aqueles poloneses que foram pagos pelos judeus pela ajuda. Houve outros que chantageavam e ameaçavam denunciá-los. Pessoas sem honra e sem vergonha. E os historiadores têm que se deparar com isso. E se deparam. Assim deveria ser. Porque em cada grupo há pessoas diferentes, decentes e indecentes. Nunca somos todos santos. Mas é difícil dizer, preservando a verdade histórica, que foram, na sua maioria, os poloneses que ajudaram no Holocausto ou que os campos de concentração eram “campos poloneses”, como se ouve hoje pelo mundo.
Os poloneses, na sua esmagadora maioria, nunca se renderam durante a guerra, nunca colaboraram com os nazis, contruindo o maior movimento de resistência aos ocupantes, jamais visto no mundo na forma de todo o Estado Polonês Subterrâneo e arriscando a vida dos seus familiares para salvar as vidas dos judeus, apesar de conhecerem bem demais as consequências das suas ações − são eles os mais numerosos entre os “Justos do Mundo”.
Por isso, as perguntas e as dúvidas estranhas que se ouvem agora sobre os poloneses, que, estando numa situação quase que igualmente precária, deveriam ter-se arriscado ainda mais para ajudar os judeus, mostram uma lógica bem perversa – em frases como “os nazistas não teriam aniquilado tantos judeus se os poloneses se tivessem oposto mais àquela matança”, uma vítima judia torna-se mais inocente e mais importante do que as outras, polonesas…. Mas somente aos olhos de Hitler os judeus constituíam uma categoria especial, e pensar desse modo equivale a aceitar a lógica dos assassinos nazistas.
A vida humana tem sempre o mesmo valor, independentemente da nacionalidade, religião, gênero, raça, nível de educação… Dizer que alguns valem mais e outros menos, que é preciso sacrificar uns para salvar os outros é mais uma barbaridade. “Não matarás!”. E ponto final. Assim nunca precisarás te justificar. E procurar “bodes expiatórios”.
Mas as tensões continuam voltando e reaparecendo, causando uma grande indignação na Polônia com a política histórica consciente, que quer livrar da responsabilidade pelo Holocausto os seus autores, criando uma imagem antissemita dos poloneses e repercutindo no mundo dos meios de comunicação de massa, com o aparecimento de expressões como “campos de concentração poloneses”. A ignorância histórica prejudica tanto a verdade como a sagrada memória das vítimas, tanto judeus como poloneses, conduzindo à relativização do crime hediondo da guerra e do Holocausto, inextricavalmente entrelaçados.
Por isso é um grande desafio para nós − não deixar esquecer as recordações e memórias, não deixar manipular os fatos históricos, não permitir que a verdade histórica se torne uma “verdade aplicada”, na qual foram os poloneses antissemitas que começaram a II Guerra Mundial, atacando a Alemanha, construíram sozinhos os campos de concentração para se aniquilarem a si mesmos, mataram-se a si mesmos nos levantes e tiroteios nas ruas.
Ainda mais, exterminaram a maioria da sua própria população de origem judia, que precisamente na Polônia, por muitos séculos, encontrou a paz, a estabilidade e as possibilidades de se desenvolver econômica e culturalmente, sem as perseguições ocorridas no resto da Europa. Não parece isso um absurdo total? Infelizmente, é assim a nossa “politicamente correta”, a nova “verdade histórica” sobre a Guerra e o Holocausto…
*Renata Siuda-Ambroziak, PhD
Vice-Diretora do Instituto das Américas e Europa na Universidade de Varsóvia
Professora de Estudos Latino-Americanos no Centro de Estudos Americanos, Grupo de Pesquisa sobre América Latina e Caribe
Editora-chefe da Revista del CESLA – Revista Internacional de Estudos Latino-Americanos (www.revistadelcesla.com)
Editora da Revista Brasileira de História das Religiões (http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/RbhrAnpuh/index)
Professora Visitante e Pesquisadora Sênior da CAPES / Brasil, na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
https://uw.academia.edu/RenataSiudaAmbroziak
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