Educação inclusiva: algumas reflexões a partir do Projeto de Pesquisa “Saberes e práticas da formação docente”, município de Marabá, na Amazônia Oriental brasileira
Airton dos Reis Pereira
Mírian Rosa Pereira
O Ministério da Educação (MEC) divulgou, no dia 31 de janeiro deste ano, o Censo Escolar da Educação Básica 2017. Tratou-se de uma pesquisa anual do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Como já era de se esperar, em razão da tendência dos anos anteriores, os dados mostram que ocorreu um aumento do número de pessoas com deficiência matriculados em classes comuns do ensino regular. Enquanto houve uma diminuição do número de estudantes matriculados no sistema educacional do país, passando de 48,8 milhões, em 2016, para 48,6 milhões em 2017, o percentual de estudantes em situação de deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades, incluídos em classes comuns, passou de 85,5%, em 2013, para 90,9%, em 2017. Ou seja, em 2017, o número de matrículas desse grupo na educação básica foi de 827.243 enquanto que em 2016 foi de 751.065. Esse aumento pode parecer significativo, mas diversos especialistas concordam que embora o Brasil tenha conseguido aumentar a inserção de estudantes em situação de deficiência no sistema de ensino, isso vem ocorrendo em passos lentos. Provavelmente, o número de crianças deficientes fora da escola ainda é grande.
Esses dados demonstram um processo evolutivo do número de matrículas, mas o acesso às atividades da educação ainda está aquém das necessidades desse público. Segundo o Censo Escolar, somente 40,1% dos alunos em situação de deficiência conseguem atendimento educacional especializado, evidenciando que a exclusão continua mesmo diante do aumento do número de matrículas desse grupo na educação básica.
Em Marabá, no sudeste paraense, localizado a 555 quilómetros da capital do estado, a situação não é diferente. Segundo os dados da Secretaria Municipal de Educação, o número de pessoas com deficiências matriculadas, em 2017, no ensino fundamental foi de 1.812, sendo 1.647 na área urbana e 165 no campo. Desse total, 706 recebem atendimento educacional especializado, sendo 666 na área urbana e 40 no campo. Contudo, segundo a Secretaria Municipal de Educação, o município conta com apenas 29 Salas de Recursos Multifuncionais (SRMs) e com 54 professores para o atendimento especializado desses alunos. Para ajudar nesse atendimento, o município contratou 250 estagiários de cursos de graduação em licenciaturas de instituições de ensino superior pública e privada. Visando melhor funcionamento dessas SRMs, o Ministério Público Estadual, através da 13ª Promotoria de Justiça de Marabá, vem realizando reuniões periódicas com pais de alunos em situação de deficiência e com representantes das redes de ensino estadual e municipal, pesquisadores na área da educação especial e conselheiros do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência.
O município de Marabá conta ainda com dois centros especializados: o Centro de Apoio Pedagógico (CAP) para deficiente visual e o Centro de Apoio ao Surdo (CAS). O CAP foi criado em 2004, mas só em 2011 que foi incorporado à política de atendimento às pessoas com deficiência municipal, conforme a Portaria nº 1.762/2011. Contudo, somente no final de 2016 que passou a ter uma sede própria em uma unidade escolar desativada. Entretanto, a sua estrutura física não dispõe de acessibilidade arquitetônica, já incluída na pauta de reivindicações dos deficientes visuais junto ao Ministério Púbico Estadual de Marabá, que por sua vez ainda não foram atendidos.
Já o Centro de Apoio ao Surdo só foi criado em 2014, através da Portaria nº 4624/2014-GP, a partir do contexto da educação de alunos surdos da Escola Municipal Jonathas Pontes Athias e da experiência inicial de implantação de escolas polo para educação bilíngue, quando o município aderiu ao programa de implantação de Centrais de Interpretação de Libras do Governo Federal. Ambos ainda não têm estrutura física própria, com demanda de providência sugerida pelo Ministério Público.
Segundo aos dados do INEP, no Brasil, 26,1% das creches e 25,1% das pré-escolas têm dependências e vias adequadas aos estudantes com deficiência ou mobilidade reduzida; 32,1% das escolas de educação infantil possuem banheiro adequado a alunos com deficiência ou mobilidade reduzida. Já com relação ao ensino fundamental, banheiros adequados a alunos com deficiência ou mobilidade reduzida estão disponíveis apenas em 39,9% das escolas. Em relação à adequação das vias e dependências para o mesmo público, o percentual é de 29,8%.
Já em Marabá, segundo essa mesma pesquisa do INEP, o município possui 264 escolas, sendo 227 públicas e 37 privadas, com o total de 47.005 alunos matriculados no ensino fundamental. Desse total de escolas, 73% não dispõem dependências acessíveis às pessoas com deficiência e 62% não tem sanitários adequados a esses estudanes, ou seja, as estruturas das escolas são insuficientes para atender a essa população. Por essa razão, talvez, tem sido as reclamações tanto de professores quanto de estudantes que as escolas, às vezes, apresentam sérios problemas, colocando em risco a integridade física das pessoas em situações de deficiência que frequentam a instituição, como calçadas quebradas ou irregulares, espaços sem sinalização ou com pisos escorregadios; ausência de rampas com corrimões; portas que impedem a locomoção de cadeiras de rodas; banheiros sem as barras de apoio e, na maioria das vezes, sem pisos antiderrapantes, etc. Estes fatos por si só, já demonstram a negação e a exclusão dos direitos das pessoas deficientes no município.
É interessante lembrar que o movimento pela inclusão de pessoas em situações de deficiência iniciou na segunda metade da década de 1980 nos países desenvolvidos, amparado nos diversos tratados internacionais. Como parte desse processo, podemos destacar a Conferência Mundial sobre Educação para Todos, ocorrida em 1990, em Jomtien, na Tailândia, quando foi elaborada a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (UNESCO, 1998).
Em 1994, a Conferência Mundial de Educação Especial, em Salamanca, na Espanha, com representações de 88 governos e de 25 organizações internacionais. O resultado final dessa assembleia foi a Declaração de Salamanca reafirmando o compromisso com a Educação para Todos e apresentou medidas para uma educação inclusiva, no sentido de promover a dignidade humana e o exercício dos direitos humanos.
Como o Brasil é signatário dos acordos internacionais, os resultados dos movimentos nos países europeus e da América do Norte repercutiram positivamente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9394, de 1996, quando foi definida a educação especial como modalidade de educação escolar que deveria ser oferecida na rede comum de ensino. Nos anos que se seguiram, o Brasil, por meio do Ministério da Educação, lançou o “Programa Educação inclusiva: direito à diversidade” e o “Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais” e, por meio do Decreto N° 6.949/09, incorporou à legislação do país as diretrizes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas. Recentemente foi promulgada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/15) com o objetivo de estabelecer o cumprimento de medidas para a garantia de bem-estar e a promoção da dignidade humana das pessoas em situação de deficiência. Entretanto, os estados e os municípios ainda não fizeram chegar às suas escolas as garantias determinadas por essa lei.
Como é possível perceber, o atendimento às pessoas em situação de deficiência pelo sistema educacional brasileiro compreendia a escola especial e a escola regular. O aluno frequentava uma ou outra modalidade de ensino. Mas, nos últimos anos, fruto de intensos debates, reflexões e práticas educativas é que se têm buscado medidas para efetivar uma educação inclusiva que promova a dignidade da pessoa humana. Foi desse modo que se buscou garantir a todos os alunos a aprendizagem em classes de ensino comum. Entretanto, a inserção dos alunos em situação de deficiência nas escolas, esboça também uma política de contradições e invoca a resistência pelos defensores da educação como condição de emancipação humana. A escola precisa ser dotada com meios e recursos adequados, para oferecer apoio necessário àqueles que encontram barreiras no processo de aprendizagem. Ou seja, a escola, nessas condições, deve, necessariamente, não só acolher a todos, mas valorizar a diversidade e considerar as desigualdades naturais ou adquiridas inerentes a cada pessoa ao mesmo tempo em que seja provida de recursos indispensáveis à escolarização.
Mas ao se pensar sobre a escola inclusiva e aberta à diversidade, não é possível deixar de fora o papel que o professor desempenha. Este pode ser entendido como uma figura central do fazer educacional. De certa forma e de uma maneira geral, é ele que atua diretamente com as situações concretas da educação em sala de aula. O professor é aquele que enfrenta de maneira direta o processo de inclusão do aluno em situação de deficiência. A sua prática profissional precisa primar, entre outras coisas, para ações mais igualitárias, para que a sala de aula seja de fato um espaço de inclusão e potencializadora da dignidade da pessoa humana.
Frente aos problemas enfrentados por professores e por alunos em situação de deficiência no município de Marabá e com interesse de compartilhar experiências e fortalecer a educação pública, a inclusão educacional e social, alguns docentes e técnicos administrativos da Universidade do Estado do Pará, Campus de Marabá, passaram a desenvolver um trabalho junto a um grupo de professores da educação básica, tanto no processo de formação, quanto na produção de materiais didáticos acessíveis, por meio do Projeto de Pesquisa “Saberes e práticas da formação docente: da avaliação da educação inclusiva à produção de materiais didáticos destinados às pessoas com deficiência” apoiado pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (FAPESPA). O público central desse projeto, que está em andamento, são os professores de ciências naturais da educação básica da rede pública que ensinam química e biologia para alunos em situação de deficiência matriculados nas classes de ensino comum.
Como é um projeto de pesquisa que se efetiva por meio de diversas atividades formativas, a equipe estabeleceu a partir de um acordo com todos os professores envolvidos, um encontro de formação por mês. Além das discussões de cunho teórico sobre a educação inclusiva e os processos de ensino-aprendizagem de estudantes em situação de deficiência, estão sendo realizadas oficinas práticas de produção de materiais didáticos acessíveis para se trabalhar o ensino de química e de biologia na educação básica.
Como resultado, já houve diversos materiais didáticos produzidos, por exemplo para ensinar os conteúdos da tabela periódica, das cadeias carbônicas, da evolução cromossômica, da representação de células vegetais e animais entre outros. São materiais acessíveis, atendendo a especificidades dos estudantes em situação de deficiência e sua interação social, apresentando contraste de cores e textura, peças em alto relevo, em dimensões tridimensionais e com identificação em braile e em libras os quais já estão sendo utilizados para auxiliar no processo de ensino de alunos cegos, com baixa visão e surdos.
Essa experiência de formação dos professores da educação básica que ensinam ciências naturais para alunos deficientes tem permitido novos debates e novas reflexões na busca da superação do estigma da deficiência e a promoção de mudanças na atuação profissional, como o enfrentamento das barreiras educacionais e o reconhecimento da importância da produção de materiais didáticos acessíveis como objeto facilitador no processo de ensino e aprendizagem. Ou seja, as atividades do projeto “Saberes e práticas da formação docente”, como mencionado anteriormente, além da pesquisa propriamente dita, que se efetiva à medida em que os atores envolvidos aprimorem a sua prática (TRIPP, 2005; FRANCO, 2005), tem procurado contribuir com as garantias dos direitos humanos, sobretudo visando o fortalecimento do movimento de luta das pessoas em situação de deficiência no município de Marabá.
E como parte desse processo tem sido as discussões sobre o papel da escola. As reflexões suscitadas têm apontado que uma escola que contribua, efetivamente, para que todas as pessoas, indistintamente, tenham direito às mesmas oportunidades de educação e de conhecimento, precisa entre outras coisas, não só atender as normas de acessibilidade, mas investir na formação continuada de seus professores e na produção de materiais didáticos que possibilitem que todos possam, juntos, aprender. Uma escola somente poderá ser considerada inclusiva quando de fato possibilitar o conhecimento a cada estudante, independentemente da etnia, sexo, idade, deficiência ou condição social. Isso não significa negar as dificuldades que os alunos podem ter, mas valorizar as diversidades, ou seja, as diferenças não podem ser vistas como dificuldades ou empecilhos, mas como potencializadoras no processo de ensino-aprendizagem
Referências
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura – MEC/ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo Escolar 2017: notas estatísticas. Brasília (DF): MEC/INEP, Janeiro 2018.
______. Presidência da República. Decreto nº 6.949, de 25 de
agosto de 2009. Diário Oficial da União, de 26/08/2009.
______. Ministério da Educação e Cultura – MEC/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SECADI, s/d. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16690-politica-nacional-de-educacao-especial-na-perspectiva-da-educacao-inclusiva-05122014&Itemid=30192 Acessado: 08 de novembro de 2017.
______. Ministério da Educação e Cultura – MEC/Conselho Nacional de Educação – CNE/Câmara de Educação Básica/CEB. Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010. Brasília, 2010. http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_10.pdf. Acesso: 11 de março de 2018.
______. Lei Brasileira de Inclusão. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm> Acesso: 11 de março de 2018.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pedagogia da Pesquisa-Ação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA–UNIESCO. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem Jomtien. UNESCO, 1998.
TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005.
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Airton dos Reis Pereira, é doutor em História (UFPE) e professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Campus de Marabá.
Mírian Rosa Pereira, é pedagoga da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Campus de Marabá, e Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Agradecimentos: Queremos agradecer toda a Equipe do Projeto de Pesquisa “Saberes e práticas da formação docente: da avaliação da educação inclusiva à produção de materiais didáticos destinados às pessoas com deficiência” (Danielle Rodrigues Monteiro da Costa, Danillo dos Santos Silva, Elzonete Silva Cunha, Francileide Pereira Martins, Lauriana S. Santos, Luely Oliveira da Silva, Maria José Costa Faria, Marinalda Gomes Apinages, Odinete Dias Vieira e Rayda Matias Lima) e todos os professores e professoras da educação básica de Marabá envolvidos no projeto por possibilitar não só o processo de pesquisa, mas profícuos debates sobre a educação inclusiva e produção de materiais didáticos no município. Aproveitamos também para estender os mesmos agradecimentos aos bolsistas PIBIC e Programa de Bolsa Estudantil: Amanda Santos Lopes, Claudiane Serafim de Souza, Kleylson Virgens e Shirlei Dias Ribeiro.
muito bom seus post … parabens vou acompanhar seu blog sempre ja esta nos favoritos obrigadaaaa