Fotografia e História: a participação das mulheres nos movimentos sociais
Geovanni Cabral
A fotografia em preto e branco sempre me chamou a atenção. Essa combinação que permite imaginar suas cores, formas, texturas — algo que vai além do campo visual na relação que se estabelece entre a imagem e o olhar do observador. Estar diante de uma fotografia, de algum álbum ou de uma exposição é algo que logo nos remete a um tempo, a uma história, a um instante de produção. Percebemos os ângulos, os posicionamentos, as estratégias de enquadramento, os silêncios e as leituras que fluem diante de nossa percepção. Muitas vezes, perguntamos com que intenções elas foram tiradas? Para quê? A pedido de quem? Por que este e não aquele foco? E muitas são as indagações (nem sempre com respostas); na maioria das vezes, o silêncio dita a regra.
Nas pesquisas que venho desenvolvendo com fotografias no campo do ensino de História, me chamam a atenção aquelas que direcionam para um engajamento político, as que os fotógrafos denominam fotografia documental. Aquelas que carregam em sua luz uma historicidade, um instante que traz possibilidades de leituras e conexões na sua apreensão e no seu congelamento. Cabe ressaltar que essas leituras não partem do princípio de que a fotografia é o testemunho da realidade, a “visão histórica” como tal e qual. Muito pelo contrário. Pensamos a fotografia nesse conjunto de intenções, memória, documento, multiplicidade temporal, técnica, criações, montagem e desmontagem. Como afirma Boris Kossoy (2016, p. 24 e 25): “[…] assim como as demais fontes históricas, as fotografias não podem ser aceitas imediatamente como espelhos fiéis dos fatos. Assim como os demais documentos, elas são plenas de ambiguidades, portadoras de significados, não explícitos, e de omissões pesadas, calculadas, que aguardam pela competente decifração.”
Com isso, utilizar fotografias na sala de aula, por exemplo, requer certos cuidados no que diz respeito a essas relações passado/presente e tempo/espaço; devemos ter um olhar mais que decifrador, percebendo, em sua fixação imagética, técnica de produção e uso, tendo em vista que as “aparências enganam”. Dependendo de sua criação, a fotografia pode muito bem apresentar distorções, evidenciando olhares, gestos, comportamentos, divergências e determinadas montagens para efeito de credibilidade e representação. Por isso, Carlos Drummond de Andrade (1984, p. 4) em um poema chamado A câmara viajante, traz uma reflexão acerca dessa máquina, que registra, fixa, mas chama a atenção para o ser que produz, que visualiza, que capta a imagem:
Que pode a câmara fotográfica?
Não pode nada.
Conta só o que viu.
Não pode mudar o que viu.
Não tem responsabilidade no que viu.
A câmara, entretanto,
Ajuda a ver e rever, a multi-ver.
O real nu, cru, triste, sujo.
Desvenda, espalha, universaliza.
A imagem que ela captou e distribui
Obriga a sentir,
A, criticamente, julgar,
A querer bem ou a protestar,
A desejar mudança. […]
Nesse debate entre realidades, tramas, produções e técnicas, as fotografias documentais carregam consigo uma narrativa visual que, diante de suas representações, possibilitam-nos caminhar e pensar em suas perspectivas históricas. Dentre essas imagens — e me reportando ao título desse ensaio, Fotografia e História: a participação das mulheres nos movimentos sociais — algumas fotografias do acervo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) têm em seus registros a presença de mulheres em diferentes momentos de atuação e engajamento político. Essas fotografias, que apresentam essa função pública, segundo Ana Maria Mauad (2013, p. 13) “[…] indicam que se torna pública para cumprir uma função política, que garante a transmissão de uma mensagem para dar visibilidade às estratégias de poder, ou ainda, às disputas de poder.”Representam uma memória pública captada pelas lentes do fotógrafo que busca denunciar ou documentar os instantes históricos vivenciados por agentes sociais diversos.
As fotografias que captam a atuação das mulheres nos movimentos sociais, no sul e sudeste do Pará, permitem perceber que elas não estão de braços cruzados esperando o tempo passar. Muito pelo contrário, as mulheres têm um papel importante nesse processo de luta pela terra. O historiador Airton Pereira (2017, p. 34) relata que “[…] em muitas ocupações de terra, diversas mulheres participaram ativamente nas frentes dos confrontos e foram, em diversos momentos, submetidas à suma série de violências.”.
Podemos mencionar uma fotografia de João Roberto Ripper, localizada na pasta “Vários momentos da História da região e da luta do trabalhador rural pela posse da terra”, do acervo da CPT (Figura 1). Uma trabalhadora rural despejada, no município de Marabá, em 1979. Um ano em que foram registrados intensos conflitos de terras e violência na Amazônia oriental, conforme levantamento de Airton Pereira (2015).
Essa mesma fotografia faz parte do livro Imagens Humanas, de João Ripper, editado em 2009 (página 42); uma seleção de 195 imagens envolvendo esse “olhar de denúncia e defesa”. Observando essa fotografia, encontramos não apenas o trabalho de um conceituado fotógrafo, que vem atuando há 35 anos em registros da luta pela terra, da vida do camponês e dos movimentos operários. Mas também uma mulher que amamenta seu filho em pleno despejo de sua terra. Um semblante que pode exprimir dor, sofrimento, angústia e tantos outros sentimentos que emanam dessa leitura. Para Ripper, “[…] a técnica e a sensibilidade têm de andar juntas, porque a fotografia é uma extensão da personalidade de quem fotografa.” Nesse contexto, ele aproxima sua máquina e foca, nesse instante, uma mulher que protege seu filho. Uma mulher que, como tantas outras, nas horas de desespero, violência e determinações judiciais, procura meios de proteção.
Em outra fotografia (Figura 2), da qual não localizei o autor, a participação da mulher fica mais evidente no que se refere ao cotidiano de sua atuação nos acampamentos. É ela quem cuida dos filhos, quem prepara a comida, toma conta dos mais velhos, ajuda o marido na construção e organização da casa e, ainda, encontra espaço e tempo para enfrentar a violência de fazendeiros e pistoleiros. Airton Pereira (2017, p.42) chama a atenção para o fato de que […] em outros momentos, estando na cidade, enviavam recados para os grupos de posseiros, avisando-os sobre diligência da polícia ou de um suposto ataque de pistoleiros. Em certas situações, eram elas que levavam munições para os homens entrincheirados, passando por barreiras policiais […].
Percebemos, na análise anterior, que não estamos falando de uma mulher dona de casa e agricultora, apenas. Mas, de uma mulher dinâmica, que resiste e defende sua família e sua história, sendo, inclusive, capaz de se arriscar junto aos policiais, fazendeiros ou pistoleiros. A fotografia é composta por cinco mulheres adultas, três crianças e um rapaz; dessas, duas seguram uma faixa com os dizeres “Queremos terra para morar”. A disposição das pessoas na foto nos possibilita pensar no engajamento político dessas mulheres protegendo seus filhos, mas, ao mesmo tempo, denunciando sua indignação pela construção e ocupação de suas terras pela Usina Hidrelétrica de Tucuruí. A violência se estendia por todos os lados, diante do consentimento do aparelho estatal que, a serviço de fazendeiros e empresas estrangeiras, viravam as costas às diversas famílias que se viam expropriadas de suas terras.
As fotografias da CPT não são apenas registros vinculados ao movimento de ocupações e desapropriações, mas de enfrentamento contínuo, em que homens e mulheres “vítimas da ausência das políticas públicas” lutam por seus direitos. Quantos agricultores foram brutalmente assassinados diante de suas famílias? Quantas mulheres foram violentadas na frente de seus filhos, abusadas, exterminadas? Quantas vidas se perderam nessas terras da Amazônia a mando de fazendeiros, em razão de sua sede por terra e poder”? Muitos foram os casos registrados, pela CPT. Só para ter uma ideia, Airton Pereira (2017, p. 30) contabiliza que, só em 1985, foram registrados 108 assassinatos. Entre janeiro de 1985 e novembro de 1986, no estado do Pará, tivemos 11 mulheres assassinadas em conflitos agrários (BEZERRA; ALVES, 2017, p. 59 e 60)
Esses dados remetem a uma fotografia (Figura 3) de autor desconhecido, de parentes de posseiros assassinados na Fazenda Ubá, localizados em São João do Araguaia. Uma chacina com requintes de crueldade. Entre 13 e 18 de junho de 1985, oito pessoas foram assassinadas por pistoleiros a mando do fazendeiro José Edmundo Ortiz Vergolino, por invadirem as terras de seu castanhal. Inclusive, foram mortas uma adolescente e uma mulher grávida. Esse massacre ficou conhecido como “chacina de Ubá”. Um caso de grande repercussão nacional e internacional. O julgamento ocorreu em 2006 com o fazendeiro condenado a 152 anos de prisão junto com um dos pistoleiros, o Sebastião Terezona; outros ficaram foragidos. Algo que chamou a atenção da imprensa foi o fato de a condenação do fazendeiro; até então, apenas os pistoleiros eram condenados (MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS, 2006).
Podemos refletir a partir dessa imagem que, além da dor marcada pela ausência do ente querido, é possível pensar em uma mulher viúva que terá que enfrentar as dificuldades para criar seus quatro filhos. Não se pode precisar se essa senhora que inclina o olhar para a criança é sua avó ou a mãe do marido assassinado; geralmente, essas avós integravam e faziam parte da mesma casa no assentamento. Com olhos curiosos diante do fotógrafo, a imagem revela crianças e adultos atentos aos sinais da câmara que, por instantes, fixará seus movimentos em determinado tempo e espaço.
Esse texto buscou, em poucas palavras, ressaltar o papel das mulheres nos movimentos sociais e da luta pela terra. Tendo como eixo investigativo as fotografias, elas apontam e sinalizam o quanto sua atuação é determinante para a organização dos assentamentos e dos conflitos. Nas fotos, essas mulheres — que em muitos momentos são vistas apenas como acompanhantes do marido ou donas de casa — são visualizadas como pessoas atuantes em várias esferas de sua trajetória social e política. Tão vítimas quanto o homem, sua força enfrenta preconceitos, posicionamentos políticos, violência que procuram neutralizar sua participação e suas ações. Apesar de serem produzidas em momentos distintos, as imagens abarcam, em seu conteúdo, temáticas que se conectam, interligam-se diante de suas representações femininas e dos diversos papeis assumidos por mulheres em contextos múltiplos.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A câmara viajante. In: MARIGO, Luíz Claudio et al. Mata Atlântica. Rio de Janeiro: Chase, 1984.
BEZERRA, Rosemayre; ALVES, Ailce Margarida Negreiro. In: SILVA, Idelma Santiago de. [et al]. Mulheres em perspectiva: trajetória e resistência na Amazônia. 1ª ed. Belém, Pará, Paka-Tatu, 2017.
KOSSOY, Boris. Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. 5ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
MAUAD, Ana Maria. Fotografia pública e cultura do visual, em perspectiva histórica. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA MÍDIA. v, 2., n.2, 2013.
______. O olhar engajado: fotografia contemporânea e as dimensões políticas da cultura visual. ARTCULTURA. Uberlândia, v. 10, n.16, p.33-50, jan-jun, 2008.
MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS. Mandante da Fazenda Ubá é condenado. Disponível em http://www.mdh.gov.br/importacao/noticias/ultimas_noticias/2006/12/MySQLNoticia.2006-12-14.120
PEREIRA, Airton dos Reis. Do posseiro ao sem terra: a luta pela terra no sul e sudeste do Pará. Recife: EdUFPE, 2015.
______. A participação das mulheres trabalhadoras rurais na luta pela terra no sul e sudeste do Pará (1975-1990). In: SILVA, Idelma Santiago de. [et al]. Mulheres em perspectiva: trajetória e resistência na Amazônia. 1ª ed. Belém, Pará, Paka-Tatu, 2017.
RIPPER, João Roberto. Imagens Humanas. Textos de Carlos Walter [et.al]. Trad. James Mulholland, Rio de Janeiro, Dona Rosa Produções Artísticas, 2009.
Gostei muito do artigo, as pesquisas nos campos da Fotografia, História e Memória encantam-me. Parabéns