José Inaldo Chaves Jr.
FAHIST/UNIFESSPA
Após alguns anos acompanhando e participando da construção da Faculdade de História na UNIFESSPA e do seu jovem curso de licenciatura, posso, com alguma segurança, considerar que o último dia nove de abril foi histórico para todos/as nós.
A Aula Magna do ano letivo de 2018, proferida pela professora Dra. Lucélia Cardoso Rabelo – grande especialista na temática da educação especial e inclusiva – marcou um daqueles “pontos de viragem” que vez por outra acometem indivíduos e coletividades. Para nós da Faculdade de História, assinalou um momento de consideração perante as ações desenvolvidas desde 2014, quando iniciamos nossas atividades, mas também de esperança e otimismo perante os imensos desafios que marcam a defesa da educação como direito humano fundamental em uma região de fronteira afligida pela violência e exclusão extremas de amplos setores sociais, em particular as populações indígenas e quilombolas, camponeses e as (in)visíveis pessoas com deficiência (SANTIAGO DA SILVA, 2010; PEREIRA, 2015).
Com o título “Pessoas com Deficiência e seu Direito à Educação: histórico, políticas e práticas no cenário brasileiro”, a aula da professora Lucélia Rabelo, da Faculdade de Educação da UNIFESSPA, tratou do histórico das lutas e conquistas dos movimentos de pessoas com deficiência no Brasil. O auditório lotadíssimo, na Unidade I do campus de Marabá, ouviu e interagiu diante da lúcida reflexão acerca da história dos movimentos políticos das pessoas com deficiência que, nas últimas décadas, têm revigorado as causas sociais e defendido a criação e pleno acesso às políticas públicas de saúde, educação, acessibilidade tecnológica (tecnologias assistivas) e mobilidade urbana e arquitetônica.
Aquele momento com a professora Lucélia tocou-me em particular. Fui instigado em cada minuto a rever posturas em sala de aula e a corrigir caminhos pedagógicos. Do ponto de vista da pesquisa em História, recordo que as pessoas com deficiência continuam transitando ao largo das produções historiográficas, invisibilizadas mesmo perante seu protagonismo político crescente no cenário dos movimentos sociais do país. Suas reivindicações por educação de qualidade também têm tido pouco eco no ensino da História escolar e nos debates sobre a formação docente na área.
Mesmo assim, pessoas com deficiência ocupam postos da maior relevância na Administração Pública em todos os níveis, são medalhistas nas mais variadas modalidades do esporte nacional, estão na política e no mundo do trabalho. Estão na ciência e na historiografia. Um de meus melhores exemplos é o colega de profissão e parceiro no ofício de Clio Valter Lenine Fernandes, primeiro surdo a defender um Doutorado em História Econômica na USP e tomar posse, após aprovação em concurso público, como professor da secretaria municipal de Educação de São Paulo. A busca por igualdade de oportunidades, sem com isso deslegitimar as diferenças, tem dirigido a luta por direitos políticos, civis, sociais e econômicos desse segmento social que já alcança os 24% da população brasileira, segundo dados recentes do IBGE.
Tal como os movimentos indígenas e “caminhando no silêncio”, segundo o sugestivo título do livro de Emílio Figueira (2008), a construção de uma agenda positiva para as pessoas com deficiência coincidiu com a redemocratização na década de 1980, quando, de acordo com Mario Cleber Lanna Júnior (2010), emergiu um sentimento de pertencimento na medida em que as dificuldades diárias enfrentadas por cadeirantes, cegos ou de baixa visão, surdos e mudos, deixaram de ser vistas como meras “limitações” de seus “portadores/as”. Se antes eram as pessoas com deficiência que deveriam se adequar aos ditames da “normalidade social e estética” ou rumarem ao isolamento e à depressão, a partir da emergência dessa significativa coletividade política, o Estado e a sociedade foram vistos como os verdadeiros deficientes por negarem a inclusão e acessibilidade em condições de igualdade na diferença.
Nesse sentido, Izabel Maior e Fábio Meirelles (2014) destacam ainda que a luta contra a discriminação e a desigualdade, antes travada solitariamente, passando a ser coletiva, mirou fundamentalmente a cobrança por políticas públicas que entendessem a inclusão das pessoas com deficiência como uma obrigação do Estado brasileiro, com plena garantia constitucional (como apontam artigos 7º, 23º, 24º, 37º, 203º, 208º e 227º da Constituição Federal de 1988) e amplíssimo respaldo em diferentes tratados internacionais de direitos humanos, como a mais recente Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, da ONU, em 2006, da qual o Brasil foi signatário.
Tais disputas tiveram resultados muitos prolíficos, expostos numa extensa legislação infraconstitucional que garante acesso à educação especial e inclusiva, ao mercado de trabalho e às cotas, às tecnologias assistivas, à saúde, à acessibilidade e mobilidade nos espaços públicos. Um dos documentos legais mais completos e que revela o longo percurso realizado pelos movimentos sociais é a importantíssima lei 13.146/2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Nada obstante os avanços no campo legal, os obstáculos à efetivação desses direitos têm sido hercúleos e vão desde a brutalidade arquitetônica de nossas cidades e equipamentos públicos, à precária assistência às famílias e a inacessibilidade dos serviços de saúde até ao negado direito à educação de qualidade como condição para a emancipação humana e chegada e permanência no mercado de trabalho. Na educação, os principais gargalos parecem ser a precária infraestrutura das escolas e universidades e a baixíssima qualificação do professorado, que, via de regra, desconhece os princípios básicos da educação especial como campo do conhecimento e as exigências específicas da escolarização dos alunos com deficiência. Porém, talvez o pior de todos os males seja mesmo a ignorância e a falta de conhecimento, responsáveis pela discriminação hodierna.
Todavia, mesmo diante de tantos desafios, as histórias de enfrentamento, resistência e árduas conquistas das pessoas com deficiência se repetem e estimulam outras a seguirem o caminho da luta. A Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, apesar dos muitos problemas de sua inserção regional num momento de aguda crise política, perda de direitos e contingenciamento dos investimentos na educação pública por parte do Governo Federal, vem recebendo um público discente cada vez mais diverso composto por, dentre outros seguimentos, pessoas com deficiência. Uma vez inseridos no espaço universitário, discentes como nosso aluno Ademar Santos, do curso de História, um campeão na vida e no esporte, cobram e instigam a Administração Pública Federal a desenvolver ações no sentido de garantir o pleno direito à educação superior.
É para responder a essas demandas inadiáveis que o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão Acadêmica (NAIA) da UNIFESSPA, sob a coordenação da Dra. Lucélia Rabelo e com a colaboração de técnicos da instituição e discentes bolsistas de diferentes cursos, tem trabalhado incansavelmente para instrumentalizar as condições de aprendizagem aos discentes com algum tipo de deficiência. A parceria com as faculdades e institutos tem sido muito produtiva e os resultados são muito animadores. Certamente, a primeiríssima obra do NAIA e dos nossos discentes com deficiência é chamar a atenção da comunidade acadêmica para a pauta da dignidade humana e da visibilidade de segmentos da sociedade historicamente excluídos.
Foi nesse contexto que, no âmbito do Núcleo Docente Estruturante da Faculdade de História da UNIFESSPA, em Marabá, surgiu a proposição da temática da aula inaugural e o convite à doutora Lucélia Cardoso Rabelo. O grupo de professoras e professores que integram o NDE discutia exaustivamente os desafios pedagógicos colocados diante do ingresso crescente à Universidade de grupos sociais que sempre estiveram “de fora” dela. Felizmente, os tempos em que a academia se conformava ao papel de “torre de marfim”, destinada a poucos iluminados e privilegiados, parecem estar ficando para trás, ao passo que se faz urgente que o debate sobre a acessibilidade também desemboque na busca por estratégias de permanência no Ensino Superior nas mais diversas áreas do conhecimento científico. Na História não seria diferente e, dessa feita, conceitos como interculturalidade, diversidade, decolonialidade e ecologia dos saberes, manejados recentemente por epistemologias mais libertas dos tradicionais modelos científicos eurocêntricos, surgem como “ponta de lança” dessa reflexão tão atual quanto inadiável (SANTOS, 2004, 2006; SILVA, 2000; WALSH, 2009; LANDER, 2005).
No campo do ensino de História e em tempos em que o humanismo recebe ataques frontais, ameaçando inclusive conquistas civilizatórias que pensávamos estarem consolidadas, a perspectiva que compreende o acesso à educação histórica como direito não deve descuidar em contar as histórias invisíveis e, como princípio investigativo, interessar-se pela diferença não enquanto sintoma de anormalidade, antes como reflexo da interculturalidade e da riqueza da experiência humana que cotidianamente confronta nossas certezas mais arraigadas.
Além da referência conhecidíssima à obra de Jorn Rusen sobre os processos de aprendizagem em História (RUSEN, 2007), penso que o recurso à “diferença” e ao “divergente”, na chave metodológica proposta Michel de Certeau, deve ser como um farol aos que lidam com a pesquisa e o ensino de História que, no atual contexto, não podem descuidar em considerar a Didática da História a partir da multiplicidade étnico-cultural, físico-regional e socioeconômica que habita nossas salas de aula (CERTEAU, 2008). Entretanto, considerar a diversidade também representa uma profunda transformação interior.
Sendo assim, a agenda política das pessoas com deficiência provoca positivamente os profissionais da História, que passam a problematizar seus próprios métodos e técnicas de ensino e pesquisa de modo a garantir a oportunidade da plena cognição histórica a todos e todas. Esse tem sido o fundamento a dirigir os debates e encaminhamentos na Faculdade de História e, em particular, no seu NDE, no tocante a elaboração de ações que garantam qualificação de excelência no campo da docência em História aos nossos/as discentes, inclusive os indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência, considerando suas diferenças, seus lugares sociais e, sobretudo, seu direito à educação de qualidade, como assegura a Constituição Federal.
Naturalmente, uma queixa e preocupação comuns tem estado em nós professores. Ela diz respeito à formação precária ou inexistente para enfrentar salas de aulas com público cada vez mais plural. Reclamamos, com alguma frequência, que não dispomos dos instrumentos teóricos e práticos, sem falar nas tecnologias necessárias à adequação e acessibilidade de nossas aulas e conteúdos às pessoas com deficiência. Também alegamos não estarmos preparados para dialogar com os saberes e culturas fortemente orais das comunidades tradicionais. De fato, a universidade enquanto “torre de marfim” e as algemas de uma epistemologia forjada para a dominação impediram e estancaram durante séculos as possibilidades de um diálogo franco com a alteridade e com o divergente. É hora de mudarmos; é hora de repensarmos nossas práticas docentes e de produção de conhecimento.
Ao brindar-nos com sua magnífica palestra no último dia nove de abril de 2018, a professora Lucélia Rabelo ajudou-nos nesse árduo caminho de construção de uma sociedade mais inclusiva e solidária. E esse percurso desejamos trilhar ao lado de outros muitos parceiros, como o discente do curso de História na UNIFESSPA e atleta Ademar Santos, em Marabá, e o historiador Valter Lenine Fernandes, em São Paulo, além de tantos outros/as que, como nós, não desistem de acreditar na educação como chave da emancipação humana e da justiça social.
REFERÊNCIAS:
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.
FIGUEIRA, Emilio. Caminhando em Silêncio: Uma introdução à trajetória da pessoa com deficiência na história do Brasil. São Paulo: Giz Editorial, 2008.
LANNA JUNIOR, Mário Cléber Martins (Comp.). História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, 2010.
MAIOR, Izabel de Loureiro; MEIRELLES, Fábio. A Inclusão das Pessoas com Deficiência é uma Obrigação do Estado Brasileiro. In: LICHT, Flavia Boni; SILVEIRA, Nubia (orgs.). Celebrando a Diversidade: o direito à inclusão. Ebook,
Planeta Educação, São Paulo, 2010.
PEREIRA, Airton dos Reis. Do posseiro ao sem-terra: a luta pela terra no sul e sudeste do Pará. Recife: Editora UFPE, 2015.
RUSEN, Jorn. História viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico. Trad. Estevão Rezende Martins. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Corttez Editora, 2004.
______, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez Editora, 2006.
SILVA, Idelma Santiago da. Fronteira cultural: a alteridade maranhense no sudeste do Pará (1970-2008). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2010.
SILVA, T.T. Teoria cultural e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
WALSH, C. Interculturalidad y (de)colonialidad: perspectivas críticas y políticas. In: CONGRESO DA ASSOCIATION POUR LA RECHERCHE INTERCULTURELLE, 12., 2009, Florianópolis. Anais… Florianópolis: UFSC, 2009.