Em janeiro de 2016, durante um almoço na Universidade Federal do Rio de Janeiro, dois grandes amigos iniciaram uma inflamada discussão sobre a “natureza” da crítica literária. De um lado, um analista do discurso defendia – sem defender – que a crítica é, ou deveria ser, ciência; do outro, um estudioso da literatura, especialista em poesia portuguesa, argumentava que a atividade crítica – no âmbito literário, pelo menos – se afasta, em dado sentido, da investigação científica e se aproxima, em seu processo, do fazer artístico. Dessa forma, arte e ciência, no campo daquela discussão, eram entendidas como ideias antagônicas.
Havia, na ocasião, um conflito claro entre as noções pressupostas e uma evidente falta de coordenação dos termos, mas não se tratava de nenhuma palestra ou aula ou comunicação… era um papo de almoço, uma conversa entre amigos sobre temas que tamborilavam entre o passado e o futuro, entre Camões e a política e os relacionamentos e os animais de estimação e as vontades e projetos e sonhos. “Arte” e “ciência” eram, ali, dois vocábulos que apontavam para uma gama considerável de caminhos e os debatedores, através dos mesmos nomes, refletiam sobre coisas mais ou menos diferentes, mais ou menos parecidas.
Enfim, graças à moça do suco, a crítica literária deu lugar ao “com açúcar ou sem açúcar” e seguimos pelo itinerário pouco previsível dos assuntos que, sem mais nem menos, caiam sobre o tampo da mesa.
Desde então, quero escrever estas notas.
Escrevo estas notas, desde então, no celular, nas passagens, na borda das páginas e das ideias, no vão de uma tarefa e outra. Não é uma questão essencial – porque, verdadeiramente, são poucas as questões essenciais – mas é qualquer coisa que merece, pela persistência, alguma atenção, que vale, pela tenacidade, o risco de estar fora.
De acordo com a edição de 1979 da Enciclopédia Barsa, a mesma que eu utilizava antes do Google – sim, eu sou, aos 26 anos, uma criatura pré-histórico – a crítica, “a um só tempo arte e ciência, é o ato de criticar ou emitir um julgamento sobre obras de arte, literatura e ciência”. O crítico, ainda conforme o livro vermelho, “é alguém que anuncia juízos críticos, ou exerce a crítica (literária, musical, de teatro, artes plásticas, etc)”. Assim, posso concordar – e concordo – com a velha conselheira, a crítica é – me parece – qualquer coisa entre a arte e a ciência, a atividade crítica é – acho eu – um movimento entre os dois campos.
Muitas vezes, no que diz respeito à ciência, a dificuldade vem da circunscrição do conceito às ciências exatas e/ou naturais. Quanto à arte, o problema está, geralmente, na ideia de um total subjetivismo, de um juízo emitido a partir de uma escala individual de valores, a partir do gosto pessoal.
Eduardo Coutinho, em seu artigo “Criação e crítica: reflexões sobre o papel do crítico literário”, faz o seguinte apontamento:
O termo “crítica”, do grego “julgar”, “discriminar”, encerra em si a noção de “avaliação”; assim, a crítica literária seria um processo de avaliação de uma obra ou de obras literárias, e o “crítico” alguém que enuncia juízos críticos ou exerce a crítica literária. É nesse sentido que o termo vem sendo empregado desde o Renascimento, embora o que ele representa já se conheça desde a Antiguidade Clássica. Julgar uma obra é lhe avaliar o mérito à luz do gosto do crítico, ou de um corpo de critérios estabelecidos por ele mesmo ou pela época em que este viveu. No entanto, como o gosto implica alta dose de subjetividade, e os critérios estabelecidos variam de acordo com o momento – é uma questão fundamentalmente histórica –, o problema da avaliação crítica é dos mais graves no âmbito dos estudos literários.
Mesmo que, da forma como a conhecemos, a crítica tenha surgido entre os renascentistas – se firmando no séc. XVIII – o empenho crítico, como bem aponta Coutinho, já estava em Platão e Aristóteles, assim como em Plutarco, Cícero, Horácio, Tácito, e em Dante, com De vulgari eloquentia, e em Lope de Vega (Salve, Dom Didi!) e em muitos outros.
Se pensarmos, então, em uma tradição que tenderia mais para o impressionismo e em outra de inclinações cientificistas, a de caráter mais subjetivo – a de Anatole France, por exemplo – teria suas raízes no individualismo romântico e se basearia, principalmente, na filosofia de pensadores como Herder, Rousseau e Vico; enquanto a outra encontraria suas bases nos postulados de Burke, Goethe, Schlegel, Voltaire e outros. Assim, até a encruzilhada de Croce, passando pela crítica ética de John Ruskin, pela estética de Poe, Baudelaire e Wilde, pelo comparativíssimo, pelas impressões jornalísticas e pela crítica textual, a depender das metodologias, da época e do crítico, a atividade de criticar obras literárias tenderia mais para lá ou mais para cá, com vistas a um “resultado” mais objetivo ou mais subjetivo, mais “científico” – se unirmos o termo à ideia de objetividade – ou mais “artístico” – se aproximarmos a palavra do subjetivismo.
No mesmo artigo, Coutinho salienta que, de maneira geral, “a ‘crítica literária’ tem sido vista como uma atividade reflexiva, composta de três etapas, que podem ocorrer sucessiva ou concomitantemente”. Segundo o pesquisador:
A primeira seria uma resposta intuitiva à obra ou uma impressão provocada pelo contato com esta; a segunda, uma análise detalhada da obra, marcada pela sua descrição e interpretação; e a terceira, uma avaliação com base na exegese realizada e calcada em um código de valores e critérios estabelecidos pelo crítico e retirados da tradição ou da observação de novos padrões introduzidos pela obra.
Dessa forma, em um primeiro momento, o crítico, entregue ao seu gosto e a sua escala pessoal de valores, experimentaria a obra e recolheria impressões advindas dessa experiência. Depois, em uma segunda etapa, “sem dúvida a mais complexa” – Barsa e Coutinho concordam nesse ponto – seguiria para uma abordagem mais fechada, mais objetiva, recorrendo à “utilização de um método ou de métodos determinados”. Em seguida, finalizaria com uma “avaliação com base na exegese realizada”, a partir de um conjunto de critérios previamente definidos e retirados de um sistema de valores socioculturais historicamente construídos – uma das muitas definições possíveis de “tradição” – ou da constatação de traços inovadores na obra – ou seja, traços diferentes dos já apresentados na tradição, mas, de forma alguma – é preciso salientar – estranhos (externos) a eles.
Considerando o que vimos até o momento e voltando à edição da Barsa de 1979 – que tanto ressoa no artigo de Coutinho – podemos lançar o “pitaco”: a crítica literária parece mesmo ser, entre os passos inconstantes de um bêbado à meia-luz, arte e ciência a um só tempo. A enciclopédia – “antiga”, mas não “caduca” – enfatiza que o crítico “pratica uma ciência, pela observação das características da obra, seus defeitos e qualidades, pelo exame dessas obras, pelo método indutivo empregado nessa análise e no estabelecimento de princípios gerais”; e “uma arte, pela sensibilidade artística que deve revestir o crítico, pelo grau superior de sua receptividade ao valor estático, pelo impulso que o seu trabalho provoca nos criadores imaginativos”. Certo é, também, que há muita galhofa e muito excesso – como em tudo e em toda parte. Nessa toada, ciência sem arte não é crítica e arte sem ciência… também não.
Concluo que, para mim – como antes, naquela mesa, em janeiro de 2016 – não há conclusões ou considerações, verdadeiramente, finais. Concordo com a Vovó Barsa e creio que exista, de fato, um bocado de cientista e um tanto de artista em cada crítico, um teco de arte e um naco de ciência em cada texto que carrega intensões mais ou menos críticas. Só me parece estranho que uns queiram fabricar automóveis, como quem brinca de ser o mundo, e outros ambicionem, no mesmo ofício, escrever a nova Odisseia, compor um outro Dom Quixote ou o próximo Harry Potter. Só me parece estranho que tanta gente tenha tempo para se aborrecer e se irritar com isso tudo. A boa notícia, meus caros, é que, para a nossa sorte e felicidade geral, haverá sempre questões mais relevantes: com açúcar ou sem açúcar?
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS:
BONET, Carmelo M. Crítica literária. Tradução Luiz Aparecido Caruso. São Paulo: Mestre Jou, 1969.
COUTINHO, Eduardo de Faria. “Criação e crítica: reflexões sobre o papel do crítico literário”. In: Literatura comparada. Reflexões. São Paulo: Annablume, 2013, p. 99-108.
“Crítica”. In: ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro, São Paulo: Encyclopaedia Britannica Editores, 1997. v. 5, p. 22-25.
EAGLETON, Terry. A função da crítica. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fonte, 1991.
HABID, Rafey. A history of literary criticism: from Plato to the presente. Malden: Blackwell Publishing, 2005.