Algumas reflexões sobre a prisão de Padre Amaro e de Inácio Lula da Silva

Estes dias fiquei refletindo um pouco sobre a prisão do padre José Amaro Lopes de Souza. Acredito que ela se efetivou no mesmo contexto da prisão de Inácio Lula da Silva. Padre Amaro foi preso no 27 de março deste ano.

Airton dos Reis Pereira / UEPA

Estes dias fiquei refletindo um pouco sobre a prisão do padre José Amaro Lopes de Souza. Acredito que ela se efetivou no mesmo contexto da prisão de Inácio Lula da Silva. Padre Amaro foi preso no 27 de março deste ano. Inácio Lula da Silva em 7 de abril, isto é, dez dias depois. Padre Amaro é vigário da Paróquia Santa Luzia e coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em Anapu, no sudoeste do Pará, desde 1998. Lula é ex-presidente da República. Amaro está num presídio em Altamira, no Pará, junto com outros presos, impedido de receber visitas. Nesse local estão presos cerca de 400 pessoas, num prédio que tem a capacidade para receber apenas 190 detentos. Lula está na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, no Paraná, numa sala individual. É acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A sua prisão é desdobramento de um processo instaurado em março de 2016, do já conhecido “Caso Triplex”. Padre Amaro foi preso preventivamente acusado de associação criminosa, ameaça, extorsão, constrangimento ilegal, assédio sexual, esbulho possessório, lavagem de dinheiro, contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, bem como violação as regras do direito canônico.

Não se trata aqui, portanto, de uma mera comparação entre as prisões para ver quem tem maior privilegio nas carceragens ou coisa parecida. A questão que nos parece óbvia é que se trata de prisões com o objetivo de “matar moralmente” as vítimas. Lula é acusado pela prática de corrupção. Como sabemos, embora disseminada no seio da sociedade, as pessoas, de uma forma geral, repudiam a corrupção. Prender um ex-Presidente da República, que teve um mandato com 80% de aprovação no final de seu governo, como corrupto pode significar, em certa medida, atingi-lo moralmente além de impedi-lo de concorrer ao Planalto nas próximas eleições.

A prisão de Padre Amaro não foi diferente. Prender um padre muito querido pelas famílias de camponeses, na Transamazônica, e acusa-lo de chefiar uma “associação criminosa” com fim de cometer diversos crimes como mencionado anteriormente pode significar muita coisa: atingi-lo moralmente e impedi-lo de apoiar os trabalhadores e trabalhadoras rurais que lutam pela terra naquela parte do território amazônico. Não só muitos fiéis da Igreja Católica estão acreditando nessa narrativa criada pelos fazendeiros e pelo delegado Rubens Matoso Ribeiro, responsável pelo inquérito, mas alguns padres, freiras e bispos. Por isso, talvez, uma certa inércia de uma parte da alta hierarquia da Igreja com relação a esse caso. Quer dizer, para muitos trata-se de um escândalo no seio da Igreja, um padre ser acusado por “assédio sexual”, “importunação ofensiva ao pudor”, “extorsão” e de ser chefe uma “associação criminosa” com fins de “invadir propriedades alheias”. Por outro lado, pode-se estar concretizando o desejo de fazendeiros e da polícia em colocá-lo no mesmo presídio onde está Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão”, acusado como mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang em 12 de fevereiro de 2012. Ou seja, essa trama infundada na versão dos fazendeiros nos permite refletir que se deseja mostrar para a sociedade que padre Amaro, que acusou “Taradão” pelo assassinato de Dorothy, está preso no mesmo lugar onde o seu acusado está.

 

Foto: Divulgação/Pontifícias Obras Missionárias

As denúncias contra padre Amaro não são por acaso. Elas fazem parte dos rumos que o país tomou, a partir dos meados de 2016 com o impeachment de Dilma Rousseff. Foi então que passamos a presenciar a acedência das forças conservadoras no campo e, sobretudo, o recuo da política de Reforma Agrária em todo o país. Como sabemos, os ruralistas tiveram papeis decisivos na aprovação do Código Florestal Brasileiro, em 2012, agora querem mais: cobiçam as terras indígenas, os territórios quilombolas e as unidades de conservação. Diante desse cenário assustador não são meras coincidências que grandes proprietários tem tentado negociar com Michel Temer, protagonista do Golpe em 2016, a aprovação de uma lei que altera o destino do Parque Nacional de Jamanxim, no estado do Pará, uma das áreas mais preservadas da Amazônia brasileira. Uma vez alterado, essas terras poderão ser destinadas à exploração madeireira, mineral e à criação de bois. Não tem sido também por acaso, o desmonte do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Ouvidoria Agrária Nacional. São órgãos que, embora existindo oficialmente, perderam a capacidade de intervir na questão indígena e agrária do país. Desde então tem aumentado o número de assassinatos no campo. Em 2016, segundo os dados da CPT, foram assassinadas 6 pessoas no estado do Pará. Em 2017 foram 22. Ou seja, um aumento de 266,6 %. Ainda para a CPT, entre 1985 e 2017, ocorreram no Brasil, 1.438 casos de conflitos no campo e 1.904 assassinatos. O estado do Pará se apresenta como o primeiro do ranking dos conflitos e das mortes no campo, com 466 casos e 702 vítimas. Com relação aos massacres de trabalhadores rurais, nesse mesmo período, o estado do Pará aparece também como campeão, com 56,52% dos casos e com 56,82% das vítimas do total de 46 casos e 220 mortes.

Nos dois casos: de Lula e de Padre Amaro, assistimos um poder judiciário que tem práticas que coadunam com as perspectivas das elites. A prática da polícia, como no caso da prisão do padre Amaro, não tem sido diferente. Os advogados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) constataram que as acusações que o delegado Rubens Matoso Ribeiro fez por meio do inquérito policial, instaurado em 4 de março de 2018, nada mais são do que as acusações infundadas dos latifundiários e grileiros que ocupam a Gleba Bacajá, naquele município, fazem ao religioso. Ou seja, o delegado simplesmente plasmou em seu inquérito as acusações dos ruralistas para prender, incriminar e desmoralizar o padre Amaro e o legado que a missionária Dorothy Stang deixou naquela região.

Padre Amaro, como pároco da Igreja local e como membro da CPT, tem apoiado os trabalhadores rurais que reivindicam a posse da terra em áreas públicas ilegalmente ocupadas por grandes fazendeiros na Gleba Bacajá. A Ouvidoria Agrária Nacional, ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, publicou em 11/09/2015, por exemplo, que quatro áreas, da Gleba Bacajá (Lotes 44, 46, 83 e 97) estavam, naquele momento, em intensos e violentos conflitos. Afirma que constataram a presença ostensiva de pistoleiros na área, assassinatos de trabalhadores rurais, despejos sem ordem judiciais, destruição de casas e roças dos trabalhadores, desmatamento ilegal, grilagens de terras, extração ilegal de madeiras e casos de ameaças de morte.

Vale dizer que o Lote 44, de 3.103,03 hectares, foi objeto de um Contrato de Alienação de Terras Públicas (CATP) pelo INCRA no ano de 1977. Como as cláusulas do contrato não foram cumpridas, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) requereu o cancelamento do registro do imóvel. Na ocasião apareceu como suposto comprador do lote, o Sr. José Albano Fernandes Sobrinho. O contrato foi então anulado. Mas José Albano entrou com recurso junto ao Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1). Contudo, o TRF1 não só confirmou a anulação do contrato como determinou a reintegração da União na posse do imóvel, com a retirada imediata do gado do suposto proprietário. Acontece que a decisão nunca foi cumprida e o INCRA até o momento não assentou as 38 famílias de trabalhadores rurais sem terra que reivindicam a área. Os outros lotes possuem trajetórias semelhantes ao Lote 44.  O Lote 83, por exemplo, tem como pretensos donos o Sr. Derby Antônio e Reginaldo Pereira Galvão, o “Taradão”.  Este, como mostrado anteriormente, é acusado de ser o mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang em 12 de fevereiro de 2005.

O delegado Rubens Matoso instaurou o seu inquérito tendo como base a suposta tentativa de ocupação do Lote 44 (Fazenda Santa Maria), da Gleba Bacajá, de Silvério Albano Fernandes por famílias de sem-terra. Silvério Albano Fernandes é irmão de Laudelino Délio Fernandes, acusado de participação no assassinato de Dorothy Stang. Segundo a assessoria jurídica da CPT, Délio Fernandes junto com Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão”, e outros fazendeiros da região de Anapú, faziam parte da “Máfia da SUDAM”, organização que foi denunciada pelo Ministério Público Federal por fraudar projetos agropecuários e se apropriar de recursos da SUDAM. Segundo a CPT, Délio Fernandes foi denunciado pelo desvio de quase 5 milhões de reais, por meio de notas e contratos falsos. Nessa época, Dorothy Stang denunciou que Délio teria se apropriado ilegalmente dos Lotes 56, 58 e 61, da Gleba Bacajá. Dorothy denunciou também Silvério Albano Fernandes de se apropriar ilegalmente do Lote 75 da Gleba Bacajá.

Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão”, um dos supostos proprietários do Lote 83, foi denunciado em 2002 por se associar ao Silvério Albano Fernandes para controlar o Lote 55. Quando Dorothy Stang foi assassinada, Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida”, um dos acusados pelo crime, se refugiou na fazenda de Délio Fernandes, onde permaneceu até sua fuga. Regivaldo Pereira Galvão, mandante do assassinato de Dorothy, foi condenado a 30 anos de reclusão, está preso desde 13/09/2017 por decisão do Superior Tribunal Federal (STF).

Fonte: Agência Brasil.

A CPT afirma que tão logo Silvério Albano Fernandes denunciou o Padre Amaro pela suposta tentativa de ocupação de sua fazenda, houve uma articulação dos fazendeiros de Anupú para também acusar o religioso. Dez fazendeiros que foram retirados de áreas que ocupavam ilegalmente por decisão judicial em ações propostas pelo INCRA, a partir do ano de 2005, foram à delegacia para acusar o padre. Foram essas acusações que o delegado de polícia plasmou em seu inquérito. Ou seja, provavelmente o delegado não fez qualquer tipo de investigação. Acatou tão somente, os desejos da classe patronal da região, trazendo, inclusive, para o texto do inquérito certas palavras e expressões que facilmente podem ser encontradas nos Boletins de Ocorrência que fazendeiros fizeram na delegacia de polícia e nas notas da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (FAEPA) e de Sindicatos dos fazendeiros de Anapú, Pacajá, Uruará e de outros municípios vizinhos que foram juntadas ao inquérito policial. O presidente da FAEPA, Carlos Fernandes Xavier, em nota assinada em 29/03/2018, acusa o padre Amaro, Dorothy Stang, o bispo emérito do Xingu, dom Erwin Kräutler, a Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB), a CPT e o desembargador Dr. Gersino da Silva Filho, ex-Ouvidor Agrário Nacional. Padre Amaro não só é qualificado como “subversivo”, mas “pernicioso elemento, que deveria ser expulso da Igreja Católica, por comprometer o bom nome dos verdadeiros sacerdotes”. Já alguns bispos são acusados de fazerem parte da “ala esquerdista” da CNBB, “Sindicato dos Bispos”, que pretende nada mais do que “implantar no solo cristão deste país os espúrios credos marxistas”. A referida nota afirma também que há “malsinadas organizações que defendem o socialismo bolivariano da Venezuela e Cuba destilar as cantilenas das ‘armações’ e ‘perseguições’”.

Vale ressaltar que Dorothy Stang, antes de ser assassinada, foi também acusada por fazendeiros de Anapú e pela polícia por diversos crimes porque apoiava os trabalhadores que reivindicavam a terra para trabalhar e sustentar as suas famílias.

Quer dizer, padre Amaro é vítima dessas ofensivas no campo. Desde 2001 que vem sofrendo ameaças de morte. No passado Irmã Dorothy Stang foi também ameaçada e caluniada até que foi assassinada. Em razão da repercussão desse crime e da prisão de pistoleiros e mandantes parece que a estratégia dos fazendeiros em relação ao Padre Amaro é outra, ou seja, destruí-lo moralmente à medida que procuram afastá-lo da assessoria e do apoio aos trabalhadores e trabalhadoras rurais de Anapú.

Todavia, a prisão do Lula, líder nas pesquisas de intensão de votos, tem por objetivo impedi-lo de ser candidato à Presidência da República nas próximas eleições e desacreditá-lo junto à opinião pública, a prisão de Padre Amaro, tem por finalidade afastá-lo da CPT e da Paróquia Santa Luzia à medida que visa desmoralizar o seu trabalho junto aos camponeses de Anapú. Por esse meio, as elites dominantes pretendem continuar tirando os direitos sociais arduamente conquistados pelos trabalhadores e trabalhadoras, além de querer avançar nas privatizações e na entrega da exploração do petróleo às empresas estrangeiras, notadamente norte-americanas. Querem ainda paralisar por completo a reforma agrária, as demarcações de terras indígenas, alterar a lei dos agrotóxicos e aprovar leis que permitem atividades agropecuárias e minerária em territórios indígenas. Ou seja, matá-los moralmente, pode significar a continuidade do rumo que o Brasil tomou pós-golpe em 2016 subjugando ainda mais as camadas menos favorecidas, sobretudo as populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, camponeses, sem-terra e moradores das periferias das grandes cidades.

Referências

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário/Ouvidoria Agrária Nacional. Relatório de conflitos agrários emblemáticos envolvendo proprietários e trabalhadores rurais que demandam providências do terra legal, do ITERPA e do INCRA para a regularização fundiária e execução do programa de reforma agrária no estado do Pará, de acordo com documentos registrados na ouvidoria agrária nacional. Brasília, 11 de setembro de 2015.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – CPT. Nota Pública – Assassinatos, ameaças e agressões: o dia a dia de Anapu (PA). Goiânia, 11 de novembro de 2015.

_______. Nota Pública: o avanço da criminalização não vai parar nossa missão. Goiânia, 28 de março de 2018.

________. Assassinatos no campo batem novo recorde e atingem maior número desde 2003. Goiânia, 16 abril 2018. Disponível em: <https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/4319-assassinatos-no-campo-batem-novo-recorde-e-atingem-maior-numero-desde-2003>. Acesso em: 15 maio 2018.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – CPT Regional Pará. Nota de Repúdio –  Padre Amaro: uma prisão com indícios de armação. Belém       4 de abril de 2018.

COMISSÃO Pastoral da Terra denuncia onda de assassinatos em Anapu, PA. O Globo, Rio de Janeiro, 10/11/2015. Disponível em:  <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2015/11/comissao-pastoral-da-terra-denuncia-onda-de-assassinatos-em-anapu-pa.html>. Acesso em:15 maio 2018.

FEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO PARÁ- FAEPA. Nota oficial – Caem as máscaras. Belém, 29 de Março de 2018.

SUCESSOR de Dorothy Stang, padre Amaro Lopes é preso por suspeita de assédio sexual. Belém, Diário do Pará, 27 de março de 2018. Disponível em: <http://m.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-496673-sucessor-de-dorothy-stang-padre-amaro-lopes-e-preso-por-suspeita-de-assedio-sexual.html>. Acesso em: 15 maio 2018.

 

Airton dos Reis Pereira é graduado em História (2000), pela Universidade Federal do Pará (UFPA); mestre em Extensão Rural (2004), pela Universidade Federal de Viçosa (UFV); e doutro em História (2013), pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Filho de camponeses migrantes de Minas Gerais, foi posseiro e agente de pastoral da Diocese de Conceição do Araguaia e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no sul e sudeste do Pará. Atualmente é professor Assistente IV, do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Campus de Marabá. É também professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). É autor do livro “Do posseiro ao sem-terra: a luta pela terra no sul e sudeste do Pará” (Editora da UFPE, 2015) e possui diversos artigos publicados em revista e em jornais de circulação regional, nacional e internacional.

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