“O queer é uma atitude antiassimilacionista, politicamente ativa e constantemente questionadora… O queer pretende ser, portanto, um conceito inclusivo que se refere aos dissidentes. ” (CORTÉS,2008, P.206). “Um espaço queer não é exatamente um lugar, mas uma atitude de apropriação de parte da cidade contemporânea para a permanente ideia de autoconstrução. (…)que busca entender a cidade como um processo constante” (CORTÉS,2008, P.207).
Este texto discorre sobre a atitude queer de um espaço contestador por natureza, queer em diferentes níveis. O Espaço Comum Luis Estrela, originado na madrugada do dia 25 para 26 de outubro de 2013, quando um coletivo de ativistas adentrou casarão situado na Rua Manaus, 348, Belo Horizonte, em Minas Gerais que estava abandonado faziam vinte anos e ocuparam seu interior. Reunidos desde o mês de abril do mesmo ano, após meses de encontros e discussões, de um vasto mapeamento de imóveis públicos o
ciosos na cidade, assumiram a tarefa de construírem um espaço comum, autogerido, que abrigasse cultura em toda sua mutabilidade, que pudesse trazer significações para além do valor até então atribuído ao espaço. (ELEUTÉRIO et al, 2014, p. 4). Assim surgiu o Espaço Comum Luiz Estrela, O nome presta homenagem ao artista de rua Luiz Estrela, morto no dia 26 de junho de 2013, na cidade de Belo Horizonte.
Em Belo Horizonte as políticas patrimoniais sustentam-se na esfera da representação, desvinculadas do que Izabela Tamaso (2015) define como sistema patrimonial local, entendido como a comunidade e seus representantes. Segundo a autora,
Tangenciar o patrimônio nas suas esferas local e oficial fomentando essa relação através de sua conexão com o lugar constitui um amplo desafio deste campo disciplinar. (TAMASO, 2015). Nesse sentido, no imóvel que abriga o Espaço Comum Luiz Estrela, qualquer relação existencial de vivência com o bem foi negada à comunidade, única entidade capaz de conferir significado ao mesmo. Era necessária a ressignificação daquele bem.
Esta situação de descaso e a apatia perante os fatos, além de mais uma vez explicitar a necessidade de revisões conceituais nos modelos brasileiros de patrimonialização, retoma a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que em seu artigo nº 216 introduz a dimensão intangível do patrimônio, que se caracteriza mais por processos que por produtos, como formas de expressão, modos de criar, fazer, viver e na mudança de ênfase do sujeito atribuidor do valor patrimonial, compartilhando Essa premissa, até então vinculada somente ao Estado, com a própria sociedade, que adquire proeminência nas decisões.
Nesse sentido, as metodologias empregadas no Espaço Comum Luiz Estrela atendem plenamente e extrapolam esta definição, por ser elaborada inicialmente pela sociedade organizada e posteriormente com parcerias com o poder público, dando um protagonismo até então inédito para a sociedade e a comunidade detentoras dos bens e da atribuição de valores.
Fundamental destacar neste ponto, ao lado da mudança de perspectiva operada com o deslocamento dos sujeitos atribuidores de valor, que as ações patrimoniais empreendidas a partir de então deveriam incluir as comunidades na concepção e execução das políticas patrimoniais, numa orientação de atuação compartilhada. Não basta mapear, identificar e Proteger o patrimônio é preciso, antes, que a sociedade, a comunidade diretamente afetada, Participe desse processo e construa, organicamente, não só a política, mas as ações de salvaguarda desses bens. (ELEUTÉRIO et al, 2014, p. 7)
Todo esse debate foi fundamental no enfrentamento político e jurídico que se seguiu à tomada do Espaço. A posse oficial do espaço Por parte dos ocupantes foi legitimada, após longo embate, com a publicação do Termo de Cessão de Uso do imóvel, pelo período de vinte anos, no fim de 2013.
Como resultado dessa autogestão, ao invés do tradicional projeto de restauração foi apresentada uma proposta que aponta os usos potenciais para cada espacialidade, vinculada ao processo de ocupação, a ser apresentada ao Conselho Deliberativo do Patrimônio. Nesse sentido, o Laboratório Comum de Patrimônio e Memória operou uma mudança epistemológica na forma de lidar com o patrimônio cultural. Com isso, a proposta é que sejam empreendidas uma série de oficinas a partir destas diretrizes, das especificidades construtivas, dos desejos de transformação espacial, realizando, simultaneamente, as intervenções no casarão. Não haverá, pois, um projeto acabado que englobe toda a edificação. A salvaguarda do patrimônio passará a ser concebida e edificada pela sociedade, não sendo mais condicionada, sujeitada por ela. (ELEUTÉRIO et al, 2014, p.10)
Perante isso, O coletivo cunhou uma outra abordagem do patrimônio a partir do protagonismo da sociedade. Transformando-a na prática cotidiana a que denominaram de laboratório de Patrimônio, desenvolveram uma dinâmica de construção coletiva, colaborativa e interdisciplinar, com uma orientação processual, efetivada no tempo e no espaço, possibilitando a interação entre os sujeitos e objetos relacionados. (ELEUTÉRIO et al, 2014, p.3)
“O espaço queer (…) é, no conjunto, mais ambivalente, aberto, poroso, autocrítico, irônico e efêmero. Frequentemente o espaço queer não se apresenta em uma ordem que se possa reconhecer, e, quando o faz, parece mais uma irônica e retórica torção que uma ordem.” (CORTÉS,2008, P.206).
Por aplicar um conjunto de ações preservacionistas focado no compromisso social, na mobilização comunitária e investimento no potencial humano , a ação Patrimônio em Processo – Restauração do Espaço Comum Luiz Estrela é um dos vencedores da 30ª Edição do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, o que atesta o reconhecimento e o impacto das ações inovadoras ali empreendidas, que ironicamente, divergem de muitos cânones já sólidos no campo da restauração, o que demonstra seu potencial renovador, capaz de propiciar uma grande oxigenação de ideias e propor novas bases conceituais para este campo, deixando explícita a função dos ditos espaços Queer: contestar a ordem vigente, renovando-a.
Referências bibliográficas:
CORTÉS, José Miguel G.Políticas do Espaço:arquitetura, gênero e controle social – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
ELEUTÉRIO, FOUREAUX, GOMES, et al. Salvaguarda do patrimônio cultural como desígnio da sociedade: o Espaço Comum Luiz Estrela. Local: Editora, 2014.
TAMASO, Izabela. Os patrimônios como sistemas patrimoniais e culturais: notas etnográficas sobreo caso da cidade de Goiás. Local: Editora, 2015.