A Psicologia Junguiana entre naturalizações e reformulações cognitivas de gênero. Por uma psique andrógena.
Clarissa De Franco
Obs.: E sse não é um texto acadêmico.
Se necessitar de referências bibliográficas,
pode solicitar para a autora no e-mail
A Psicologia é uma ciência que transita entre as áreas biológicas e sociais, e com isso, demonstra um potencial de aproximação das chamadas ciências duras com as humanidades. A temática de gênero é um palco frutífero para desenvolver esta importante tarefa, uma vez que os distintos campos do conhecimento exibiram durante anos discursos conflitivos que ressaltaram ao público leigo a dicotomia entre natureza e cultura e outras, tão presentes no debate de gênero.
Considerar a artificialidade deste pensamento binário, rígido e mutuamente excludente das dicotomias entre masculino e feminino e formular propostas conciliatórias tem sido um esforço de teóricxs ligados à História da Ciência recente, como o trabalho de muitas epistemólogas feministas, as quais podemos citar Londa Schienbinger, Helen Longino, Donna Haraway, entre outras.
De uma forma bastante diferente do que propõe o momento atual deste debate, o psiquiatra e psicólogo suíço Carl Gustav Jung – cuja proposta de teoria psicológica é denominada Psicologia Analítica – traz algumas sementes que servem à reflexão para a temática de gênero e aproximação das ciências, bem como à dissolução de compartimentos rígidos do conhecimento. É importante lembrar que Jung viveu em um tempo em que as reivindicações de direitos e políticas públicas de gênero ainda se debruçavam sobre direito à voto das mulheres em muitos países, em que a patologização das sexualidades não convencionais ainda era uma realidade forte, no qual ainda não se formulava a possibilidade civil de casamento entre pessoas do mesmo sexo ou a alteração oficial e pública da identidade de gênero. Teoria Queer, Judith Butler e toda essa corrente que nos tempos atuais é quente, nada disso ainda existia.
De maneira pouco convencional e quebrando paradigmas da ciência da qual era herdeiro, Jung propôs que o funcionamento da psique ocorre em uma dinâmica que equilibra elementos complementares e que por vezes ocupam funções aparentemente opostas no funcionamento psíquico e que esta dinâmica estaria ancorada em um reservatório de informações inconscientes que extrapolam o universo individual, chamado de inconsciente coletivo. Postulou que tais estruturas da dinâmica psíquica, como persona, sombra, animus, anima, self seriam arquétipos que possuem representações em todas as pessoas de todas as épocas.
Sempre que falamos de estruturas que perpassam os humanos, humanas e humanxs de todas as épocas, as antenas das ciências sociais se levantam, afinal, o acultural é um caminho fácil para naturalizar o que é construído socialmente, a partir de referenciais e vivências que reforçam e cristalizam constructos que aparentemente “sempre foram assim” ou são “naturalmente assim”.
Para abordar a questão de gênero, propomos um breve exercício nesse texto de utilizar os referenciais da Psicologia Junguiana de modo a considerar as nuances de pensamento entre naturalizações e reformulações cognitivas.
Começamos por uma perspectiva que pode ser interpretada como naturalizante de padrões e conceitos sobre masculino e feminino, quando da postulação dos arquétipos Animus e Anima, que foram definidos por Jung como princípios masculinos e femininos inconscientes presentes na psique de todo ser humano, princípios tais com potências positivas e negativas em ambos.
De um modo geral, Anima seria associada a Eros e seu aspecto de entrelaçamento, relacionamento, afetividade. Já Animus estaria relacionado com Logos, que frequentemente se traduz em racionalidade, raciocínio, discriminação (no sentido de separação). Eis um evidente mecanismo naturalizador de gênero que se repete em diversas estruturas sociais, o de associar a masculinidade à razão e a feminilidade aos domínios emocionais.
Embora não se possa negar o reforço a dicotomias de gênero naturalizados nesse ponto da teoria de Jung, se seguirmos mais profundamente seus argumentos, no entanto, reconheceremos que ele postula uma psique andrógena, híbrida em termos gênero/sexo. Tal postura acadêmica contém uma semente subversiva importante, já que “libera” a psique humana de não ser previamente determinada a um destino de gênero. Nesse sentido, Jung pressupõe uma psique livre, fluida, com potencial para arranjos múltiplos e não binários de gênero.
Destacamos que Jung definiu Anima e Animus como personificações do inconsciente, cuja função primordial é produzir uma síntese simbólica, que conecte consciente e inconsciente, de forma a criar uma relação dialética entre eles. Os arquétipos da anima e do animus, juntos, representam a união de opostos que produz uma síntese psicológica. Jung chama esta síntese de coniuctio, emprestando a metáfora da Alquimia.
Desse modo, masculino e feminino não seriam representações diretas e literais de como ser homem e como ser mulher ou ainda de como devem ser homens e mulheres, mas sim princípios energéticos com potencial de tornarem-se algo além de si, por meio do encontro com o outro pólo.
Essa ambiguidade que podemos observar em sua teoria, que ora trabalha com estruturas herdadas que se remetem a padrões disto e daquilo, e ora aponta a semente de disrupção e subversão da lógica herdada, é marca expressiva desta abordagem em Psicologia, que enxerga a psique e o processo de individuação humano como pendular, oscilando entre pólos em busca de um equilíbrio energético.
Um mérito de sua teoria está na reconciliação entre conhecimentos científicos e não científicos na busca por explicações amplas e profundas do funcionamento psíquico humano. Oxalá possamos utilizar essa sabedoria de integrar conhecimentos sagrados, profanos, esotéricos, científicos, leigos, construtivistas, biológicos, sociais, filosóficos, tecnológicos, para resgatar a semente subversiva, hibrida e andrógena que postulou Jung para a psique.
Clarissa De Franco é psicóloga, Doutora em Ciência das Religiões, em trabalho de Pós-Doutorado na área de Estudos de Gênero.