Um estudo sobre a questão Multicultural: análise bibliográfica

 

Andrius Estevam Noronha

 

Este texto aborda uma análise da primeira parte da obra editada no Brasil pelo crítico da cultura Stuart Hall (2003), jamaicano, residente na Grã-Bretanha desde 1951, cujo tem repensado a cultura no meio de uma globalização complexa e contraditória, momento em que as identidades culturais se tornam lances discursivos para quem os faz. O capítulo referente a questão multicultural é na verdade um ensaio apresentado na palestra anual “Corrida Contra o Tempo” (Race Against Time) do Instituto de Educação da Universidade de Londres, e está dividido em três momentos: o primeiro, uma crítica aos termos multiculturalismo e multicultural; o segundo, uma análise dos efeitos transruptivos da questão multicultural (Barnos Hesse); e terceiro, a tentativa de resgate de uma nova lógica política multicultural.

Homi Bahba (2003) menciona que o multiculturalismo seria um termo valise que se expandiu de forma heterogênea e que o multicultural tornou-se significante e oscilante. Além disso, acredita que o termo multiculturalismo está discursivamente enredado com raça, etnicidade, identidade e diáspora, e é utilizado “sob rasura”. Embora os termos multiculturalismo e multicultural sejam interdependentes, apresentam formas distintas: enquanto o multiculturalismo é um termo substantivo e visto geralmente como singular; o multicultural apresenta-se como um termo qualificativo e plural, pois descreve as características sociais e os problemas de governabilidade em sociedades onde diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, porém retêm algo de sua identidade “original’.

O multiculturalismo significa filosofia específica ou doutrina que sustenta as estratégias multiculturais. Desta visão emerge a crítica ao multiculturalismo, cuja provém da idéia de que visto do singular seria reducionista, afinal é um termo que refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais. São exemplos da pluralidade do multiculturalismo o corporativo, o revolucionário, o comercial, etc. Além disso, o multiculturalismo é uma idéia profundamente contestada, seja pelos liberais conservadores, seja pela esquerda e até pelos modernizadores. Mas, as práticas do multiculturalismo que definem e caracterizam as sociedades da modernidade tardia são essenciais ao manifestar a importância da diversidade cultural, principalmente por integrar as contribuições das pessoas de cor à sociedade. Além do mais, tem se alterado e intensificado após a Segunda Grande Guerra ocupando lugar central no campo da contestação política.

Historicamente, as sociedades multiculturais, étnicas ou culturalmente mistas têm sido produzidas com os deslocamentos dos povos e com a migração. Adjunto a este fenômeno, Hall (2003) cita o colonialismo, cujo insere o colonizado no tempo homogêneo vazio da modernidade global, sem abolir as profundas diferenças ou disjunturas de tempo, espaço e tradição. Isto significa que o colonialismo pressupõe Estados-Nação conscientemente fabricados a partir de um quadro étnico mais fluido. No entanto, o multiculturalismo traz consigo uma reconfiguração estratégica das forças e relações sociais devido ao fim do velho sistema imperial europeu e das lutas pela colonização e independência nacional, devido também, ao fim da guerra fria e à globalização.

Para Hall (2003), as sociedades modernas que passaram por crises (ausência de cultura nacional ou cívica em culturas nativas, pobreza e subdesenvolvimento, desigualdades social, ordem econômica liberal não regulamentada) assumem um caráter multicultural ou “etnicizado”. Isto indica que há uma relação entre o ressurgimento da questão multicultural e o fenômeno do pós-colonial. Afinal houve uma rearticulação de poder social entre período colonial e pós-colonial. Atualmente, estas relações são deslocadas e reencenadas como lutas entre forças sociais nativas, como contradições internas e fontes de desestabilização no interior da sociedade descolonizada, ou entre ela e o sistema global.

A queda do muro de Berlim em 1989 e a imposição pelos EUA de nova ordem mundial (ocidentalização) trouxeram como conseqüência tensões sob a forma multicultural (problemas pendentes de desenvolvimento social e ressurgimento de nacionalismos étnicos e religiosos mal resolvidos). Novas formas de etnicidade têm emergido sendo resultantes desta globalização desigual ou da modernização falha, revalorizando os discursos nacionalistas mais antigos (invenção da tradição e narcisismo das pequenas diferenças), seria uma reinvenção do passado-no presente (nação como motor da modernização).

A globalização contemporânea é associada ao surgimento de novos mercados financeiros desregulamentados, ao capital global e aos fluxos de moeda que têm o poder de desestabilizar as demais economias, além disso, é associada às formas  transnacionais de produção e consumo, ao crescimento de novas indústrias culturais impulsionado pelas tecnologias de informação, bem como ao aparecimento da “economia do conhecimento”. Está caracterizada pela compressão tempo-espaço e pelo desarraigamento irregular das relações sociais e por processos de destradicionalização. Todos estes efeitos remetem-se à sociedades ocidentais e periféricas. A globalização é tanto um sistema de desigualdades e instabilidades como contraditória, pois tende culturalmente à homogeneização (dominante), mas também causa efeitos diferenciadores nas sociedades, porém sendo um sistema de con-formação da diferença e não de sua obliteração. Daí emerge um modelo de poder discursivo.

A proliferação subalterna da diferença diz que adjunto ao eixo global vertical do poder cultural, econômico e tecnológico vêm uma visão de mundo composta de muitas diferenças locais. Neste contexto, a luta entre os interesses locais e os globais estão latentes. O conceito de Différance formulado por Jacques Derrida (1973) é adequado para este contexto, pois diz que é através do movimento do jogo que se produz as diferenças e seus efeitos, ou seja, uma onda de similaridades e diferenças. Para Bahba (1998), é um significado que está sempre em processo e posicionado ao longo de um espectro e opera no tempo liminar das minorias. Tais estratégias surgem nos vazios e nas aporias que constituem sítios potenciais de resistência, intervenção e tradução. Daí emergem os localismos, algo novo acompanhado da globalização, o exterior constitutivo da globalização dando vez ao particular e ao específico. Assim, o local resiste ao fluxo homogeneizante do universalismo com temporalidades distintas e conjunturais, portanto, não tem caráter estável ou trans-histórico, nem inscrição política fixa. Um exemplo de impulso político articulado com outras forças é a migração. De acordo com Goldberg (2013, p. 29), “movimento e migração (…) são as condições de definição sócio-histórica da humanidade”.

A Inglaterra é citada como exemplo de força transruptiva dentro da instituição política e social devido à tradição histórica de país com cultura homogênea e unificada. Porém, é sabido que há várias formas de ser “britânico”. Territorialmente a Grã-bretanha é uma ilha “fixa e eterna”, tendo se tornado Estado-Nação ainda no século XVIII com o Pacto Civil, ou seja, tornando a Irlanda sua colônia e, portanto, racializando os Irlandeses. A identidade nacional foi constituída projetada por um “outro”, portanto, em relação contínua com a diferença. Entretanto, a questão multicultural constitui um fenômeno pós-Segunda Guerra Mundial, onde imigrantes caribenhos e imigrantes asiáticos expulsos da áfrica “aportaram” na ilha, sendo seus rumos marcados pelas antigas relações de dependência e subordinação herdadas do tempo do Império. Uma nova configuração de exclusão social, desemprego, pobreza e desigualdades em geral se instalaram associadas ao racismo e as relações de gênero. Lateralmente à sociedade “britânica” majoritária emergiram comunidades culturais, ou seja, minorias étnicas cujas perpetuam elos de continuidades com seus locais de origem.

Diante da complexidade multicultural, as escolhas identitárias de grupos étnicos são políticas e associativas, pois ao mesmo tempo em que são fiéis às tradições, escolhem a posição do grupo ao qual desejam ser associados. Isto significa que estas comunidades não estão emparedadas em uma tradição imutável e seria um erro confundir suas formas diaspóricas com uma vagarosa transição para a assimilação completa. Na verdade tornaram-se comunidades cosmopolitas, pois tornaram-se os significantes mais avançados da experiência metropolitana do pós-moderno urbano.

Os efeitos  transruptivos para uma estratégia ou abordagem política à questão multicultural tratam desde as categorias “raça”e “etnia”, a compreensão da cultura e o questionamento dos discursos dominantes da teoria política ocidental e as fundações do Estado liberal. Nesses termos, a categoria “raça” é vista sob rasura, ou seja, em uma nova configuração com etnicidade. Raça está associada à cor (biologia) e é uma construção política e social, uma categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão. O racismo tem, portanto, uma lógica discursiva própria de efeito de naturalização. Já a etnicidade está associada a características culturais e religiosas, pois articula a diferença com a natureza (o biológico e o genético) desde que se desloque pelo parentesco e /ou pelo casamento endógeno. Na verdade são dois registros de racismo, onde os discursos da diferença biológica e cultural estão em jogo simultaneamente, ou seja, estão articulados e combinados de acordo com o momento multicultural.

A forma como se compreende a cultura diante do binarismo tradição/modernidade é abordada de forma crítica pelo Hall, cujo menciona que o hibridismo é o termo mais adequado para caracterizar culturas mistas e diaspóricas. Afinal, o hibridismo trata da lógica cultural da tradução, de um processo de tradução cultural, em que a ambivalência (dentro/fora) define bem a lógica cultural da modernidade ocidental.  Pois, na tradução cultural, é necessário negociar com a diferença do outro, algo que revela a insuficiência radical dos próprios sistemas de significado e significação.

O liberalismo ocidental é a cultura do particularismo que se universalizou, mesmo tendo como base a cidadania universal e a neutralidade cultural do estado. O estado liberal diante da questão multicultural tem aspectos positivos e negativos. Os nacionalismos cívicos dizem respeito aos termos políticos e territoriais, mas podem ser vistos como comunidades imaginadas, pois pressupõem sentimento de pertencimento e necessidade de identificação. Esta é construída a partir de diferenças que atravessam a nação. Entretanto, é somente dentro da cultura e da representação que a identificação com esta comunidade imaginada pode ser construída. É o sistema de representação cultural que dá significado a nação. Embora a nação constantemente se reinvente, ela é representada como algo que existe desde as origens dos tempos. Entretanto, o particularismo da demanda por reconhecimento da diferença não deve servir de contraste do universalismo da racionalidade cívica. Vale lembrar que a crescente diversidade cultural somada aos efeitos da globalização produziu uma crise de identidade nacional na Grã Bretanha que resultou numa sociedade de várias comunidades, uma sociedade multiculturalmente diversa.

O papel do Estado liberal (formal) diante da questão multicultural tem sido questionado, afinal sua “neutralidade” garante autonomia pessoal e liberdade individual para a busca do bem, desde que seja feito no domínio privado. O público e o privado aproximaram-se, ou seja, o “pessoal” tornou-se “político”. Politicamente, o liberalismo constitui um dos grandes sistemas discursivos do mundo moderno. Isto tudo reforça o individualismo e denuncia uma visão errônea de direitos coletivos e uma definição frágil de cultura. Na verdade, a identidade de um sujeito se constitui na sua relação com o outro, com seu exterior constitutivo, a cultura. A identidade está entrelaçada às identidades coletivas e pode ser estabilizada apenas em uma rede cultural.

Já o Estado liberal reformista da social democracia reconhece as necessidades sociais diferenciadas, bem como a crescente diversidade cultural de seus cidadãos, admitindo certos direitos grupais e outros definidos pelo indivíduo. Desta forma adotou estratégias de redistribuição para garantir a igualdade de condições tão cara ao liberalismo formal e avançou na prática rumo ao equilíbrio entre pluralismo cultural e as concepções liberais de liberdade individual. Porém é um movimento gradativo e incerto devido a crescente visibilidade e presença das comunidades étnicas.

Para Derridá (1973), além dos vocabulários políticos contemporâneos, há dupla demanda por igualdade e diferença. Neste contexto, a noção de comunidade e sua interação com a nação deve ser repensada, assim como se deveria adotar uma estratégia que rompesse com a lógica majoritária e que tentasse reconfigurar ou reimaginar a nação como um todo de uma forma radicalmente pós-nacional. Nesta busca de diversidade cultural deve-se ter o cuidado para não se reverter em novas formas de fechamento étnico. Isto indica que a etnicidade e sua relação naturalizada com a comunidade é outro termo que opera sob rasura, afinal somos seres que pensamos dentro de uma tradição, somos localizados e carregamos traços de uma etnia. Porém, nosso sentimento de pertencimento é simplista, baseada em vínculos. O pertencimento cultural (etnicidade) é algo que todos partilham, é uma particularidade universal, ou uma universalidade concreta.

Uma sociedade multicultural sempre envolve mais que um grupo. Essa é a lógica da difference, cuja significa que o significado/identidade de cada conceito é constituído em relação a todos os demais conceitos do sistema em cujos termos ele significa, ou seja, uma identidade cultural particular não pode ser definida apenas por sua presença positiva e conteúdo, todos os termos da identidade dependem do estabelecimento de limites – definindo o que são em relação ao que não são. Cada identidade é radicalmente insuficiente em termos de seus outros, o universal é parte de minha identidade tanto quanto sou perpassado por uma falta constitutiva. Entretanto, o universalismo se opõe de cima a baixo à particularidade e à diferença. Pois o universal emerge do particular como um horizonte incompleto que sutura uma identidade particular deslocada, é portanto um significante sempre em recuo. Deve-se buscar um horizonte mais amplo que considere tanto a cultura específica quanto a cultura de origem, pois quando a primeira se expande seu elo com a cultura de origem se transforma ao ser obrigada a negociar seu significado como outras tradições.

Hall sugere que diante da questão multicultural se pense em algo novo, em formas novas de combinar a diferença e a identidade desde que se considere a liberdade e a igualdade junto com a diferença, o bem e o correto. Para isto é necessário uma estrutura de negociação democrática agonística. Afinal a questão multicultural sugere que o momento da diferença é essencial à definição de democracia como um espaço genuinamente heterogêneo. Deve-se tentar construir uma diversidade de novas esferas públicas nas quais todos os particulares serão transformados ao serem obrigados a negociar dentro de um horizonte mais amplo. Para isso é necessário que esse espaço permaneça heterogêneo e pluralístico e que os elementos de negociação dentro do mesmo retenham sua différance. Essa universalização e seu caráter aberto certamente condena toda identidade a uma inevitável hibridização (fortalecimento das identidades pela abertura de novas possibilidades).

A nova lógica política multicultural proposta por Hall pressupõe a democracia, pois busca causar uma reconfiguração radical do particular e do universal, da liberdade e da igualdade com diferença. Isto é, busca um horizonte comum, onde haja maior reconhecimento da diferença e maior igualdade e justiça para todos. Para que esta lógica “funcione” é necessária a expansão e radicalização das práticas democráticas da vida social e a contestação das formas de fechamento racial ou etnicamente excludente. Algo que é extremamente difícil, mas não impossível!

 

Referências bibliográficas

BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973.

GOLDBERG A, Silveira C. Desigualdad social, condiciones de acceso a la salud pública y procesos de atención en inmigrantes bolivianos de Buenos Aires y São Paulo: una indagación comparativa. Saude Soc [Internet]. 2013 [citado 21 Ago 2015]; 22(2):283-97

HALL, STUART. Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG: Brasília: Representações UNESCO no Brasil, 2003.

Graduado em Estudos Sociais Habilitação Em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2003), mestrado em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2006) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2012). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Amapá. Tem experiência na área de História, com ênfase em História, atuando principalmente nos seguintes temas: santa cruz do sul, elite local, ditadura militar, rio grande do sul e prosopografia.

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