Entre Subalternidade e Pioneirismo

Maria Clara Sales Carneiro Sampaio / Unifesspa

No último dia 5 (cinco) de abril de 2018, a prefeitura do município de Marabá, no estado do Pará, organizou uma série de eventos em virtude do aniversário de 105 (cento e cinco) anos da cidade. As comemorações acabaram por envolver uma certa cobertura em veículos de notícias de caráter nacional e muitas menções nos meios de comunicação locais e regionais. Entretanto, ao se buscar outras informações sobre as origens da cidade em variados sítios da internet, por exemplo, acaba-se por se encontrar informações díspares no que se refere ao ano em que se convencionou marcar o início da história da cidade. Se na página oficial da prefeitura o ano de fundação de Marabá é 1913, no teor do verbete da enciclopédia digital colaborativa (Wikipédia), o ano de fundação da cidade aparece como 1809 (com outra data de refundação em 1894). O presente texto faz parte de pesquisas recentes que visam compreender melhor a história urbana do sudeste do Pará a partir dos silêncios nas narrativas tradicionais acerca das contribuições político-sociais das mulheres, das populações indígenas e quilombolas e outros grupos subalternos.

A existência de divergências acerca do evento e/ou do ano de fundação de qualquer cidade brasileira não só não é incomum, como é reveladora das disputas sobre a memória e sobre o lugar de fala daqueles que decidem – arbitrariamente ou não – que Marabá foi fundada em 1913 e não em 1809 (ou até mesmo em 1894). Curiosamente, com pelo menos mais um de um século de existência oficial, muito da história desse município ainda está para ser escrita. O mesmo pode ser dito de outras dinâmicas urbanas de diversas cidades médias da Amazônia Oriental, como nos tem mostrado as pesquisas do geógrafo Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior, professor da Universidade Federal do Pará. Conquanto as lutas pelo campo na mesorregião do sudeste paraense já têm um expressivo acumulo de discussões e temas acadêmicos já consolidados, falta-nos mais estudos de história urbana para a mesma região. Para além dos trabalhos já consagrados de historiadores como Idelma Santiago da Silva e   Airton Pereira do Reis, novas pesquisas de história urbana têm cativado jovens pesquisadores e pesquisadoras como é o caso da graduanda em histórica pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Cinthia da Silva Furtado. Furtado tem se debruçado sobre a invisibilidade do ativismo feminino em Marabá.

Estudos relativamente esparsos frequentemente vinculam a história da fundação de Marabá ao papel que o pequeno núcleo urbano localizado no encontro dos rios Tocantins e Itacaiúnas teve nos conflitos entre oligarquias dos estados de Goiás e do Maranhão, no início do período republicano no Brasil. Esse núcleo urbano no encontro dos dois referidos rios corresponde atualmente ao distrito da Velha Marabá, também conhecida como Marabá Pioneira. Desta premissa parte, por exemplo, o argumento do religioso e intelectual hipano-brasileiro, Luiz Palacín Gomez, em seu livro Coronelismo no Extremo Norte de Goiás: O Padre João e as Três Revoluções de Boa Vista – Tocantinópolis, publicado em 1990 pelas Edições Loyola de São Paulo. Em consonância com a tese de Gomes, podemos encontrar reflexões mais recentes que vão no mesmo sentido, como é o caso da dissertação de mestrado do historiador paulista José Jonas Almeida, defendida na Universidade de São Paulo em 2008:

No final do século XIX, a área correspondente ao Baixo Tocantins era ocupada por alguns núcleos urbanos, pequenos povoados, vilas e aldeias, com destaque para as cidades de Cametá, Mocajuba, Arumateua, Baião, à qual Marabá estava vinculada em seus primeiros tempos, como também Alcobaça, limite para a navegação dos antigos vapores vindos de Belém, antes das corredeiras de Itaboca. Na origem do processo de povoamento da área onde hoje se encontra Marabá estava a fundação do Burgo Agrícola, estabelecido por Carlos Gomes Leitão e de um grupo de famílias provenientes de Goiás […]. Foi logo após o estabelecimento do Burgo Agrícola que foi descoberto o caucho (borracha) nas matas em torno da bacia do rio Itacaiúnas. A exploração do caucho impôs a necessidade da ocupação do pontal pela facilidade de se controlar o aceso à mata, sobre os caucheiros que extraíam o produto e também do tráfego fluvial por parte dos comerciantes que negociavam o produto na capital, Belém. Nesse pontal formou-se um núcleo a partir de uma casa comercial fundada por um maranhense chamado Francisco Coelho, em 1898, cujo nome passou a designar a futura cidade: Marabá (ALMEIDA, 2008, p. 35).

As próprias denominações “Velha Marabá” e “Marabá Pioneira” são muito interessantes para aguçar as reflexões sobre a memória e a história do município. De fato, no distrito da Marabá Pioneira, não só se encontram alguns dos prédios históricos da cidade, como também foi construída a orla do rio Tocantins, bastante frequentada pela população local principalmente nos meses do verão amazônico (entre julho e setembro).

Em 2013, foi publicada pela mineradora Vale S. A. (antiga empresa estatal Vale do Rio Doce), a obra Marabá: Ontem e Hoje, que reúne relatos de dezenas dos mais antigos habitantes da cidade. A organização dos relatos, sob a coordenação de Mirtes Rocha Morbarch Nassar, dá-se em duas partes. A primeira é:

De 1910 a 1950, temos a Marabá da primeira metade do século XX, com a formação da cidade, a atividade garimpeira, a economia da castanha e o comércio, a usina de força e luz, as festas do Canela Fina os arraiais, os cordões, as lendas e os causos de assombração (NASSAR, 2013, p. 8). É possível pensarmos, portanto, que as ocupações do espaço do pontal (Marabá Pioneira), para muitos, só se integra como espaço de memória urbana a partir das primeiras décadas do século XX.

A segunda parte da referida obra é descrita como: De 1960 em diante, temos o fim do ciclo da castanha, a chegada da pecuária, a Guerrilha do Araguaia, Serra Pelada e os garimpos de diamante, a grande enchente de 1980, a energia firme e a expansão da cidade para outros núcleos, nova base econômica (NASSAR, 2013, p. 10).

A memória oficial da cidade, destarte, parece incluir apenas os ciclos econômicos extrativistas da castanha e do caucho e, posteriormente, o momento histórico dos grandes projetos governamentais da ditadura civil-militar. É privilegiando sempre o caráter do pioneirismo – de uns poucos homens que conseguem compreender os rios e as matas – que se constroem grande parte das narrativas sobre a história de Marabá. No território de disputa pela memória da cidade não são apenas as datas de fundação que sinalizam conflitos sociais pela hegemonia da narrativa da história oficial: populações subalternas raramente são incluídas nesses discursos. Dentre os relatos escolhidos para compor o já referido livro organizado por Nassar, por exemplo, há apenas um relato de um homem indígena. Na maior parte das narrativas, mesmo provenientes de interlocutoras mulheres, repete-se uma história de alguns poucos homens – pioneiros! – como podemos ver no trecho a seguir, registrado da fala da Sra. Rita Campos Amoury, que veio da cidade maranhense de Carolina para Marabá nos anos 1920:

Quem descobriu Marabá foi Francisco Coelho, maranhense. Antônio Maia, maranhense. Alfredo Monção, maranhense. João Anastácio de Queiroz, maranhense. Eu me recordo só de maranhense. Então eles são muito importantes para Marabá (AMOURY Apud NASSAR, 2013, p. 18).

Uma narrativa de feitos de homens com aparentemente poucas experiências de subalternidade, como podemos ver, acompanham as ainda as poucas obras sobre a história de Marabá. Seja na obra de Gomez, de Almeida ou nas páginas do recente livro Marabá: Ontem e Hoje, a invisibilidade de grupos sociais subalternos é patente. As características do pioneirismo, identificado como característica positiva nas narrativas de caráter oficial, só são atribuídas aos homens de fora – maranhenses – que parecem ter compreendido o potencial econômico e estratégico do pontal formado na confluência dos rios Tocantins e Itacaiúnas. As mulheres, as populações indígenas e outros setores sociais subalternos não só quase não aparecem nas poucas obras sobre o assunto, como também não são caracterizados como pioneiros e visionários. O silenciamento desses grupos nas narrativas sobre a construção da cidade raramente são interrompidos. As descrições acerca dos bairros da Velha Marabá que constam da dissertação de mestrado do já referido historiador paulista José Jonas de Almeida, por exemplo, detalham a presença feminina da seguinte forma:

A mulher marabaense, embora pudesse dedicar quase todo o seu tempo às atividades domésticas, dava preferência ao convívio externo com as vizinhas e com a rua. De acordo com Maria do Carmo Ciampone ‘as casas são desleixadas e sujas, permanecendo as mulheres, grande parte do tempo, sentadas em bancos na frente da casa’. A renda baixa impedia a compra de equipamentos para a habitação, como os móveis, o que explicaria, em parte, um certo desinteresse pela conservação da moradia” (ALMEIDA, 2008, p. 68 e CIAMPONE apud ALMEIDA, 2008, p. 68).

As descrições acima sobre a “mulher marabaense” são, talvez, frutos de olhares externos. Enquanto Almeida desenvolveu sua pesquisa nos anos 2000, na Universidade de São Paulo (USP), Maria do Carmo Ciampone pelo que se conseguiu averiguar até o momento era uma estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP) que havia visitado Marabá em meados dos anos 1970. Nenhum dos dois trabalhos pesquisou assuntos relacionados às histórias das mulheres desta região. Contudo, o trecho que se escolheu para compor o presente artigo parece confirmar essa dissonância entre o pioneirismo e o papel das mulheres e outros grupos subalternos na construção da história da cidade de Marabá.

Faz-se necessário se destacar que não consideramos prudente a tentativa de tipificar uma “mulher marabaense”, posto que além das disparidades econômicas, a cidade hoje conta com diversos núcleos urbanos que possibilitam diferentes formas de sociabilidade para mulheres pertencentes a diferentes grupos sociais. Mas a pergunta que deixamos de provocação para a continuidade desta pesquisa que se inicia permanece sendo: Porque nem as mulheres, nem indígenas, nem os quilombolas são considerados pioneiros?

 

Graduada em Direito pela PUC-SP (2001-05) e em História pela USP (2002-06), Desenvolveu as pesquisas de mestrado e de doutorado no Programa de Pós Graduação em História Social da USP. Com apoio Fapesp, realizou estágio internacional na Yale University (2010-11), como Visiting Assistant in Research. É, atualmente, Professora Adjunta da Faculdade de História (FAHIST) da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Também é coordenadora da Pós-Graduação Lato Sensu " Ensino, Educação Histórica e Direitos Humanos" da FAHIST-Unifesspa.* Ministra cursos nas áreas de História das Américas, Históriado Brasil e História do Direito (na Faculdade de Direito - FADIR). Tem experiência de pesquisa em Arquivos Nacionais e Internacionais, em especial nos Estados Unidos e Reino Unidos. Os temas de principal interesse estão relacionados à Escravidão e Abolição, Diversidade e Tolerância, Relações de Trabalho e Migrações, Relações Raciais e de Gênero. Líder do grupo * Raça trabalho e poder: africanidades, identidades negras e ideologias na história da Amazônia* -RTP – AINIHA/Cnpq por onde desenvolve o projeto “Circulações Atlânticas, raças, trabalho e migrações em perspectivas transnacionais no século XIX”.

Deixe um comentário