No dia 31 de julho, em Salvador, no Wish Hotel da Bahia[1], José Eduardo Agualusa, durante uma entrevista coletiva, falou sobre a sua participação na abertura do Fronteiras Braskem do Pensamento, que tem como objetivo, na edição de 2018, estimular o debate sobre “O mundo em desacordo – democracia e guerras culturais”. O tema da palestra de Agualusa, que ocorreu no dia primeiro de agosto, às 20h30, no Teatro Castro Alves, foi “A leitura como utopia – literatura, democracia e justiça social, o caso angolano”, e o escritor, na “prévia”, comentou alguns pontos importantes, como a defasagem da literatura brasileira contemporânea do que diz respeito ao “Brasil real”, a necessidade de formar escritores e a importância da literatura como instrumento de democratização.
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Para Agualusa, “um livro é sempre um espaço de debate” e uma obra “que não consiga promover uma discussão, provavelmente não merecia ser” publicada, porque os “livros que importam são aqueles que inquietam, que sobressaltam, e que eventualmente irritam a pessoa, mas que levam o leitor a pensar e a conversar com outros leitores”. Assim, o literário – a literatura – se transforma em um espaço para o exercício da empatia, um lugar de afetos e afetações a partir do qual o indivíduo vivencia, no limite do possível, a existência do outro, os valores e incertezas de uma vida que não é a sua, mas que, no literário, se aproxima e se mescla com ela. “No mundo em que vivemos hoje”, aponta o autor do Catálogo de sombras, “onde há construção de muros, a literatura faz o contrário: cria pontes e aproxima”.
Ao falar sobre a importância da formação de escritores, Agualusa salienta que “é preciso, em primeiro lugar, criar leitores”, e complementa: “se você for à Feira de São Joaquim e criar instrumentos para os filhos daqueles feirantes contarem àquelas histórias, dentro de poucos anos você terá grandes escritores”. Dessa forma, sem as condições necessárias, sem os “instrumentos” e os recursos utilizados na cultura da terra, o que teremos, dentro de alguns anos, será muito solo, fértil e boa, esperando, de ventre aberto, o plantio que não chega, a germinação que só existe em potência, que não sai da expectativa. Um pouco depois, questionado acerca da internet, sobre o caráter democrático da rede e, ao mesmo tempo, sobre os elementos que, de uma forma ou de outra, propiciam a proliferação do ódio, o escritor comentou:
A internet é o mundo. O que acontece na maioria das vezes nesses espaços, é que as pessoas não são responsabilizadas. Portanto expressam seu ódio. O que é preciso fazer, em primeiro lugar, é tornar a internet um espaço mais responsável. As pessoas precisam ser responsabilizadas pelas suas atitudes e pelas suas afirmações. Também é importante formar as pessoas. Talvez começar a preparar os jovens, já na escola, a usar a internet de uma forma mais responsável.
Formar leitores para formar escritores e formar pessoas enquanto os leitores florescem se torna, assim, um movimento fundamental rumo à democracia, a espaços mais democráticos de convivência, porque a habilidade de responder pelas próprias ações, de agir conscientemente, está ligada, de muitas maneiras, à formação do indivíduo como cidadão. De acordo com o Dicionário de ciências sociais, publicado pela Dom Quixote, a democracia é:
[…] a forma de governo de um povo adulto cujo os membros são capazes de reflexão, de crítica, de participação, de solidariedade. É, pois, um conjunto de obrigações e uma reciprocidade de serviços, um sistema consciente de direitos e de deveres. (BIROU, 1982, p. 105)
Obviamente, não é possível refletir sem os instrumentos necessário à reflexão e a criticidade, como consequência direta dessa “falta” de recursos, perde a força, se torna anêmica, frágil, letárgica. Para garantir a participação efetiva do povo na democracia, ou seja, para que uma democracia seja, de fato, uma democracia, as ferramentas certas e as condições de aprendizagem precisam ser oferecidas, precisam estar à disposição. Em outras palavras, se o povo não tem o que é necessário para exercer a democracia, a dēmo-kráteia (governo do povo) não tem o que é necessário para acontecer. Todo cidadão tem o direito de entender as limitações que o direito de uns traz para a liberdade de outros, que a liberdade de cada indivíduo está limitada, de certa forma, pela liberdade dos demais; tem o direito de conhecer os próprios direitos, para que neles, e a partir deles, possa reconhecer os seus deveres.
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Durante o ato da leitura, durante o movimento, longo e contínuo, da formação do leitor, o indivíduo precisa se colocar, como sugere Agualusa, em uma posição aberta ao desenvolvimento da empatia e, por conseguinte, à construção da cidadania – se entendermos como cidadão “todo indivíduo que pertence a uma nação, cuja Constituição lhe reconhece direitos e na qual ele próprio reconhece ter deveres” (BIROU, 1982, p. 64). O processo empático, segundo o dicionário de Alain Birou, consiste:
(…) numa percepção afetiva e numa compreensão psicológica dos outros, como meio caminho entre a projeção do eu e a identificação com outra pessoa. É a compreensão do outro como um “tu” que me diz respeito. “Representa uma intensão cognitiva, uma vontade participativa, um esforço imaginativo, uma tentativa de previsão e de antecipação”. (BIROU, 1982, p. 137)
Na dinâmica de “outrar-se”, o “eu” percebe a existência de um “tu” e dessa percepção surge, através do estimulo à reflexão, ao posicionamento crítico, à participação e à solidariedade, uma gama de questionamentos importantes para o desenvolvimento de espaços democráticos. A escrita – tendo em conta o que o escritor angolano apontou sobre as suas motivações – seria a intensificação dessa tentativa de entender o outro, um esforço de alteridade e de reconhecimento da interdependência:
Eu acho que a minha principal motivação, desde o início, é tentar compreender o outro. Mas quero, sobretudo, tentar compreender a maldade. Tento entender o porquê as pessoas fazem coisas terríveis.
Dessa maneira, ao “conhecer o outro, você acaba conhecendo melhor a si mesmo” e, no caminho, a sociedade. Ainda que o todo seja maior do que a simples soma das partes, como apontou Aristóteles, na Metafísica, compreender as partes, compreender-se como parte, colabora, certamente, na compreensão, ou, pelo menos, da percepção do todo.
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Quando indagado sobre os escritores brasileiros, se “não valorizam a cultura local”, o autor d’O vendedor de passados respondeu:
Acho que sim. O escritor tem que ir à procura das pessoas. E, de fato, as melhores histórias não estão na classe alta e nem na burguesia. Se você for ver a literatura brasileira contemporânea e criar um modelo a partir dessa literatura, só existem brancos e de classe média alta. A literatura brasileira contemporânea está totalmente defasada do Brasil real.
Mesmo que a afirmação acerca da defasagem dos escritores brasileiros contemporâneos deixe à margem grandes autores – como Ferréz, tentando “salvar pela palavra”, Allan da Rosa, Rose da Cooperifa, o recentíssimo Geovani Martins, ou, saindo do “eixo”, Arlindo Fernandez, Samuel Medeiros, Reginaldo Costa de Albuquerque, Henrique Pimenta, entre outros – se adotarmos como base a pesquisa Personagens do romance brasileiro contemporâneo, dirigida por Regina Dalcastagnè, doutora em Teoria Literária pela Unicamp e professora da UnB, de fato, dizer que “só existem brancos e de classe média alta” não é um exagero. De acordo com o estudo, o “modelo” dos romancistas brasileiros publicados pelas grandes casas editoriais tem se mantido o mesmo por, pelo menos, quatro décadas: homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Em uma declaração dada à Revista Cult, Dalcastagnè destaca que, quando “as grandes editoras publicam livros que tratam sempre dos mesmos temas e trazem um perfil de autor muito parecido, estão dizendo ao leitor o que é considerado literatura e quem pode ser chamado de escritor no Brasil”[2]. Assim, a literatura e as dinâmicas do campo literário estão, necessariamente, ligadas à política, à democracia e, de muitas formas, ao exercício da cidadania.
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Vencedor do Jabuti, um dos mais tradicionais prêmios literários do Brasil, Menalton Braff, em sua crônica “Fora do eixo literário”, publicada na Carta capital, em 2013, afirma: “Rio e São Paulo não são regiões, são o Brasil. O resto, os outros estados, bem, são os consumidores do que se faz ‘no Brasil’. Segundo o que pensam, somos todos periféricos e devedores das metrópoles”[3]. A literatura, como instrumento de democratização, tem o poder de contribuir para que o Brasil real – imenso, plurifacetado e com sérios problemas socioeconômicos – supere os limites impostos, histórica e politicamente, pelo eixo.
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Depois do mundo líquido, com a rarefação e a evaporação em curso, alguns constroem palacetes no vento, esboçando contornos e cores e cheiros, sonhando lugares de plena harmonia; outros lutam para solidificar ilhotas e ancoradouros, conservando o que resistiu ao fluxo intenso da “segunda modernidade”; e há, ainda, os que tentam fundir terra e céu, buscando um lugar no mundo em desacordo. Agualusa acredita que “você tem que partir da utopia para conseguir melhorar a realidade”, partir do sonho, e defende que, em resumo, o Brasil tem que reaprender a sonhar. Eu, particularmente, concordo com Henry David Thoreau, em Walden: “If you have built castles in the air, your work need not be lost; that is where they should be. Now put the foundations under them”[4].
REFERÊNCIAS:
BIROU, Alain. Dicionário de ciências sociais. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982.
THOREAU, Henry David. Walden. Lisboa: Antígona, 2009.
THOREAU, Henry David, Walden and Civil Desobedience. New York: Penguin, 1983.
[1] Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/a-literatura-brasileira-esta-defasada-do-brasil-real-diz-agualusa/
[2] Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/quem-e-e-sobre-o-que-escreve-o-autor-brasileiro/
[3] Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cultura/fora-do-eixo-literario4546.html
[4] Se você construiu castelos no ar, seu trabalho não precisa ser perdido; é onde eles deveriam estar. Agora coloque as fundações sob eles.