A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DO ROMANCE E O ROMANCE BURGUÊS

O romance como gênero literário é considerado uma forma literária moderna, tendo no século XIX sua consolidação como gênero. Contudo, como afirma Vitor Manuel de Aguiar e Silva em sua obra Teoria da Literatura, a narrativa em prosa existe desde a era helênica como por exemplo Satiricon de Petrônio. (SILVA, 2011, p. 672). O termo romance surge na Idade Média, designando a linguagem popular oriunda do latim. Paul Zumthor, citado pelo crítico português, em seu Ensaio da Poética Medieval informa a proximidade entre o termo romance e estória de tradição popular, transformando-se no século XVI em novelas romanescas como Gargantua e Pantagruel de François Rabelais. Evidencia-se nestas narrativas o tom satírico e populesco que marca a cultura medieval no contraponto das manifestações literárias dominantes como a epopeia.

Mikhail Bakhtin, em sua obra Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance, ao tratar das formas composicionais e históricas desse gênero, evidencia o contraponto entre essas manifestações e os gêneros poéticos dominantes até o fim do século XVIII. Segundo o autor, a linguagem do gênero poético, por ser a manifestação literária oficial, manifesta-se a partir de uma linguagem oficial e, portanto, desenvolve-se no que o crítico russo chama de corrente das forças centrípetas da vida verbo-ideológica centralizadora e unificante. Diferentemente deste gênero, os textos populares e prosaicos resultam da manifestação cultural da plebe, presente nos palcos das barras de feira, por meio das encenações e narrativas satíricas, fazendo com que se constituíssem historicamente na corrente das forças descentralizadoras e centrífugas (BAKTHIN, 2010, p. 83). Desse modo, por estar ligado às profundezas dos folclores primitivos, o romance constitui-se em narrativa preferencial manifesta muitas vezes de forma oral nas feiras e praças públicas, evidenciando sobretudo pelo seu estilo cômico o arremedo das línguas e dialetos populares que faz do romance um lugar de manifestação do plurilinguismo social. Não se trata, como observa o autor, de uma estilização em relação à linguagem oficial, mas como oposição e, por isso, apresenta-se como paródia e polêmica às línguas oficiais de seu tempo, o que, conforme Bakhtin, caracteriza-se como plurilinguismo dialogizado.          Para estabelecer as diferenças básicas das formas romanescas, Bakhtin estabelece duas linhas estilísticas. A primeira linha estilística refere-se aos romances da Antiguidade que organizam e ordenam estilisticamente o plurilinguismo da língua falada e dos gêneros epistolares correntes e semiliterários. Nele há a multiformidade dos gêneros, mas que busca uma formação mais nobre da linguagem, distanciando-se da linguagem grotesca popular. As formas mais conhecidas são o romance medieval de cavalaria, o romance pastoril, o romance barroco e o romance iluminista, sendo o mais popular deles o Amadis. A segunda linha estilística resulta das variações dos romances antigos de aventura e de costumes. Manifestam um plurilinguismo baixo e de expressões grosseiras, está enredado por associações vulgares e triviais (p.178). As principais manifestações dos romances ligados a essa segunda linha estilística são O Asno de Ouro de Apuleio e Satíricon de Petrônio, Gargantua e Pantagruel de François Rabelais, Dom Quixote de Miguel Cervantes entre outros. À medida em que o romance se constitui em gênero por excelência na modernidade essas duas linhas se cruzam e se misturam de diversas maneiras (p. 171). Contudo, é possível ainda reconhecer nos romances mais modernos a predominância de uma dessas duas linhas.

 

 O ROMANCE E A AFIRMAÇÃO DO INDIVÍDUO

 

Com a afirmação de uma individualidade exacerbada e a valorização da vida privada na sociedade burguesa moderna, dá-se o ensejo do romance formal que determina as narrativas em prosa. Tematizando a vida cotidiana do homem comum, o romance torna-se no romantismo o gênero literário por excelência. Como observa Bakhtin, diferentemente da imagem do homem grego nos romances antigos, a imagem do homem romântico é a de um indivíduo particular e privado. Já não estabelece mais uma ligação substancial com seu país, cidade, grupo social, nem com sua família. É agora um homem solitário e perdido num mundo estrangeiro. (p.229)

Em sua obra A Ascensão do Romance, Ian Watt afirma que o romance é quem reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora que marca a forma literária moderna, conferindo um valor sem precedentes à originalidade e à novidade (WATT, 2010, p. 13). À medida que a classe burguesa pós Revolução Francesa ascende ao poder, passa a contrapor-se ao discurso nobiliárquico da nobreza o discurso da vida privada e cotidiana como expressão da individualidade. Esse discurso evidencia e potencializa o rompimento da comunhão maior com a natureza e a sociedade, encontrado no romance, sobretudo nos diários e autobiografias, sua melhor expressão literária. Como apresenta Watt, alguns aspectos tornam-se fundamental nessas narrativas: os relatos de viagem apresentados por homens comuns como por exemplo os diários de Henri Bougainville que teve grande sucesso na França durante o século XVIII. Esses diários ensejam a caracterização e apresentação descritiva dos ambientes exóticos com os quais esses viajantes têm contato e o recurso à memória dando ao romance uma estrutura mais coesa (p. 23).

O recurso à memória evidencia duas características que potencializam a individualidade burguesa: a primeira em sentido histórico, uma vez que, como mostra Michel Foucault em sua obra Em Defesa da Sociedade, na medida em que o século XVII e XVIII são marcados por uma trama epistêmica que se estabelece no seio da nobreza em disputa interna pelos privilégios da corte de Luís XIV, o recurso à história torna-se arma de disputa por esses privilégios. O filósofo evidencia que, nessa trama, a burguesia, que também se interessa por esses privilégios, localiza-se do lado fora por não ter história, porque a burguesia é a-histórica na concepção de história que se estabelece nesse contexto. A burguesia, portanto, busca na filosofia, sobretudo na imagem do bom selvagem de Jean Jacques Rousseau o seu lócus discursivo. (FOUCAULT, 2002, p. 252) Desse modo, tanto a apropriação dos diários de viagem produzidos por seus pares quanto as narrativas memorialistas e autobiográficas tornam-se expressão significativa da disputa por fora que a classe burguesa fará em busca de privilégios políticos. A segunda característica refere-se à técnica de fluxo de consciência que Watt entende como sendo o exemplo mais evidente e extremo nessa busca pela memória. Por meio da técnica do fluxo de consciência, o passado é recuperado como experiência individualizada e não coletiva. Os romances de Daniel Defoe e Samuel Richardson são mostrados como um importante exemplo para evidenciar essas duas características que determinam a composição do romance moderno.

 

O INDIVIDUALISMO E A MORAL BURGUESA

 

Dentro dos acontecimentos históricos que marcam sobretudo o século XVIII e que culminam em 1789 na Revolução Francesa, evidencia-se a cisão cada vez mais forte entre o indivíduo e a sociedade. Esta sociedade já não é há muito tempo a comunidade local, mas o modelo monárquico em crise, cujos efeitos dessa crise atinge diretamente a vida cotidiana da burguesia e da plebe. As narrativas passam cada vez mais a evidenciar a tensão entre esse indivíduo que já não se reconhece mais como parte e, mais que isso, que se vê em oposição ao modelo monárquico de sociedade.

Nancy Armstrong em seu ensaio “A Moral Burguesa e o paradoxo do individualismo”, publicado no livro A Cultura do Romance organizado por Franco Moretti, mostra como o romance se torna esse lugar privilegiado para resolver o conflito entre interesses individuais e interesses coletivos. Essa resolução dá-se de duas maneiras: as narrativas passam a incluir os excluídos à medida que se amplia e se torna mais flexível e heterogêneo ou o protagonista sufoca seus impulsos antissociais para se adaptar às normais culturais, resultando disso em uma personagem mais profunda e mais complexa, atormentada pelos conflitos internos (MORETTI, 2009, p. 337). Evidencia-se a manifestação desse tipo de romance nas heroínas de Jane Austen que se arrependem de suas irreverências diante da hierarquia social ou se adaptam por meio do casamento que lhes permite uma ascensão social mais alta do que poderiam esperar como no caso do romance Orgulho e Preconceito.

Nesse conflito paradoxal do indivíduo com seu meio social, Armstrong identifica o lugar em que a moral burguesa obtém a sua autoridade. À medida que se opõe ao sistema dos valores sociais, seja pela irreverência e/ou pela conquista social gratificante – que é uma forma de irreverência – faz brotar do núcleo desse indivíduo a sua força moral. Sem dúvida, evidencia-se o paradoxo da moral burguesa e da individualidade. Mesmo após 1848, com o poder na mão da burguesia, esta cisão mantém-se como orientadora dos romances do século XIX, como por exemplo em Charlotte Brontë. Para Armstrong, esse paradoxo evidencia que a moral burguesa se sustenta na lógica de resistência política, estabelecendo com ela uma relação intercambiável. É nesse processo de intercâmbio com a resistência política que a moral burguesa evidencia e resolve o paradoxo do indivíduo e, portanto, seu próprio paradoxo. Tem-se como valor a prática de autocontrole do indivíduo como forma de afirmação de sua individualidade. Recupera-se nesse autocontrole tanto o Estoicismo quanto a Ascese Cristã o ethos moderno da sociedade capitalista, manifesto sobretudo nas formas de controle da sexualidade. Este controle que marca a sexualidade capitalista não se trata de práticas repressivas conforme a Sexologia, Psicologia e, posteriormente, a Psicanálise no século XX. Trata-se, pelo contrário, de um controle positivo que, conforme enuncia Michel Foucault em sua obra História da Sexualidade: A Vontade de Saber, busca estender a vida por meio de tecnologias científicas identificadas como biopolítica. Como afirma Foucault, refutando a limitação do sexo na ordem do poder identificada como “hipótese repressiva”, o sexo não se julga apenas, administra-se (FOUCAULT, 2001, p.27)

 

ENTRE A PRÁXIS E A NATUREZA MORTA

 

Sem dúvida, a constituição desse indivíduo moderno dá-se por um conjunto de práticas discursivas e não discursivas que possibilitam a demarcação política de pertencimento da classe burguesa na diferenciação sobretudo em relação a plebe. Da passagem do século XVIII para o século XIX, desenvolvem-se diversas tecnologias científicas que tem o corpo como seu lugar de atuação para estender ao máximo a vida, sendo aplicadas em primeiro lugar à burguesia, penetrando muito posteriormente nas camadas mais baixas e funcionando de formas muito diferentes. Essa cisão entre indivíduo e sociedade manifesto nos romances, mais que um simples resultado da moral burguesa na literatura, evidencia o contexto cultural e social que pauta os novos escritores.

George Lukács desde a sua obra de juventude Teoria do Romance até seus escritos mais maduros fortemente influenciado pelos obras de Karl Marx, evidencia esta diferenciação entre o herói épico e o herói romântico. O herói do romance evidencia a inadequação ao seu destino, uma vez que sua subjetividade se manifesta mais ampla ou mais estreita que o mundo exterior. Essa inadequação entre indivíduo e destino também é marcada por Bakhtin em sua obra anteriormente citada. Lukács vê na manifestação mais estreita com o mundo exterior o caráter demoníaco do indivíduo problemático o qual se manifesta de forma veemente no idealismo alemão, sobretudo em Goethe e Schiller e que tem em Dom Quixote seu modelo. Já a manifestação mais ampla com o mundo exterior resulta na perda do simbolismo épico que se transforma em drama de personagem isolado que sucumbe facilmente ao patológico. (LUKÁCS, 2000, p. 119). Essa segunda manifestação caracteriza o que chama de romantismo da desilusão como herdeiro e sucessor do idealismo abstrato da primeira manifestação.

Em “Narrar ou descrever?”, o crítico húngaro, agora fortemente influenciado sobretudo pelos Manuscritos Filosóficos e Econômicos de Marx, busca na manifestação estética do romance a marca que define expressivamente a estética burguesa no romance. Para tanto, retoma a diferenciação entre a narrativa épica e a romanesca pela clássica definição apresentada na Poética de Aristóteles quando define os caracteres pela ação. Ao comparar os romances de Honoré de Balzac e Liev Tolstói com os de Emile Zola, Lukacs evidencia a mudança da narrativa para a descrição como predominância neste último e, portanto, no Naturalismo (LUKÁCS, 1967, p. 45). A representação dos elementos acidentais compõe a sustentação da narrativa. Contudo, se em Tolstoi, no seu romance Anna Karenina, quando narra a corrida de cavalos e a queda de Wronski mostra que, ao invés de descrever, Tolstoi opta pela narração de um acontecimento que resulta de acontecimentos anteriores – o fato de Anna contar a Wronski que está grávida – e desdobramento posteriores, como por exemplo a relação da protagonista com seu marido. Em Zola, há a predominância da descrição da cena de corrida de cavalos fazendo do cenário uma significação autônoma de forma que as personagens são apenas observantes mais ou menos interessados na cena descrita. Esses princípios da estrutura da composição que prioriza a descrição em detrimento da narração, percebidas tanto nas obras de Zola como na de Flaubert, é entendido pelo crítico húngaro como a manifestação de uma necessidade histórica-social que caracteriza o romance burguês, sobretudo a partir do Realismo- Naturalismo. (p. 53) Obviamente, como ressalta o crítico, não se trata de afirmar que ambos os autores sejam defensores da sociedade burguesa, pelo contrário, tanto em suas obras literárias como em suas manifestações teóricas, evidenciam posicionamentos críticos em relação à sociedade capitalista. Contudo, escrevendo posteriormente à vitória da burguesia em 1848, suas obras são determinadas pelo que identifica como sendo o valor acabado da cultura burguesa capitalista: o indivíduo moderno inerte, cuja práxis social cada vez mais se arrefeça até se tornar em um estado de monotonia e tédio. Conforme afirma Lukacs, o método descritivo predominante nesses romances rebaixa o homem à condição de coisa inanimada, fazendo com que a descrição nivele todas as coisas e, à medida que a práxis perde espaço na narrativa moderna, fazendo com que o romance assuma um caráter episódico, perde-se o caráter épico da narrativa, uma vez que o método descritivo transforma o homem em natureza morta.

Professor de Teoria Literária, autor do livro de contos "Candelabro" e apaixonado por Literatura.

2 Comments

  1. Frederico Lins disse:

    Parabéns Dario!!!!
    Seu texto é muito didático e envolvente, e a temática apaixonante!

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