Migração, cidades e questão agrária no sul e sudeste do Pará

Airton dos Reis Pereira / UEPA

 

Lembro aqui de algumas reflexões que fiz, certa vez, numa palestra que conferi para um grupo de lideranças comunitárias, estudantes e professores universitários sobre as dinâmicas socais do sul e sudeste do Pará. Naquela palestra o público estava interessado em discutir as questões relacionadas à migração, à constituição das cidades e à questão agrária dessa parte do território amazônico.

Uma das coisas que procurei refletir naquele dia foi que grande parte das cidades do sul e sudeste do Pará é datada de um período recente embora algumas poucas do final do século XIX e início do século XX. Não é difícil encontrar nos bancos de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, que o surgimento da maioria dos núcleos urbanos da região está relacionado às dinâmicas das décadas de 1970, 1980 e 1990. Mesmo Marabá e Conceição do Araguaia que surgiram no final do século XIX e São Felix do Xingu no início do século XX, as suas dinâmicas sociais e políticas atuais estão ligadas diretamente às questões das últimas décadas. Ou seja, grande parte das cidades da região surgiram ou cresceram em razão da abertura das estradas a partir das políticas de desenvolvimento dos governos da ditadura militar.

As cidades como São João do Araguaia, Conceição do Araguaia, Itupiranga, Tucuruí, Marabá e São Felix do Xingu, a partir do final da década de 1960 e início dos anos de 1970 deixaram de ostentar o status de cidade beira-de-rio para se tornar cidade beira-de-estrada. Digo isso, porque foi a partir desse período, que as estradas suplantaram os rios que determinavam o cotidiano de uma população escassa às suas margens. Até então eram as águas que possibilitavam o trabalho, a alimentação, o lazer, mas também os caminhos. Os rios Araguaia, Tocantins e Xingu, por exemplo, eram os principais meios de comunicação entre as cidades da região à capital do estado ou a cidade de Imperatriz, no Maranhão. As transações comerciais entre estas localidades, normalmente eram efetivadas por embarcações a remo ou a motor. Diversos pequenos povoados que margeavam os rios desapareceram ou perderam as suas importâncias no cenário regional, como Itaipavas, Santa Cruz, Apinajés e São Raimundo do Araguaia após o advento das estradas. Mas por onde as estradas foram sendo abertas surgiram vilas que são hoje cidades sedes de municípios, como Redenção, Rio Maria, Xinguara, Jacundá, Goianésia do Pará, Bom Jesus do Tocantins, Rondon do Pará, Tucumã, Ourilândia do Norte, entre outras. Casas de comércios e bancos passaram a ser edificados apressadamente para atender os migrantes que chegavam quase todos os dias.

Quer dizer, as estradas como a BR-222 (antiga PA-70), a Transamazônica, a PA-150 e a PA-279 tão logo mudaram o ritmo da região impondo outras formas de trabalho, de relações, de sociabilidades e de vivências. O caminhão, o automóvel e o ônibus passaram a transportar mercadorias, pessoas e novos hábitos. Chegavam passageiros, mas também caminhões com produtos industrializados (açúcar, café, enlatados, refrigerantes, bebidas alcoólicas, calçados, confecções, tecidos, joias, etc.) do Centro-Sul até então poucos consumidos pela população local. Na volta, grande parte desses caminhões levava tábuas de mognos explorados nas matas por madeireiros de diversos lugares, especialmente aqueles de São Paulo, de Minas Gerais e do Paraná que tinham um montante de capital investido fortemente na exploração da madeira.

As “frentes” das cidades como Marabá, São João do Araguaia, São Felix do Xingu e Conceição do Araguaia deixaram de ser os lugares onde acostavam as balsas, os barcos, as canoas, mas as estradas empoeiradas por onde entravam os caminhões, os automóveis, os ônibus. Quer dizer, as portas de entrada e de saída dessas cidades deixaram de ser os rios e o principal transporte deixou de ser as embarcações.

É certo que os rios continuam sendo importantes, isso não tenho dúvida, mas a interação imediata entre terra e água foi, de certa forma, quebrada. Foi por meio das estradas que levas de migrantes passaram a chegar em busca da terra, de trabalho e de lucro fácil. Foi nessa época, que o governo paraense dividiu as terras em glebas de 4.356 hectares e vendeu com baixos preços às empresas e fazendeiros sulistas que tão logo foram favorecidos com incentivos fiscais e creditícios do Governo Federal por meio da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e do Banco da Amazônia (BASA). Só para termos uma ideia, entre 1960 e 1976, o governo do Pará chegou a vender à iniciativa privada quase 7 milhões de hectares de terras. Os Quagliato, proprietários da Fazenda Brasil Verde, de certa forma responsáveis pela condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), em dezembro de 2016, pela violação dos direitos humanos em razão da prática de trabalho escravo, por exemplo, detinham, no sul do Pará, cerca de 160 mil hectares de terras. Já os Lanari do Val chegaram a concentrar mais de 348 mil hectares.

Mas foi também nessa época, que milhares de trabalhadores rurais pobres de diversas regiões do Brasil passaram a chegar à região em busca da terra e do trabalho, sobretudo porque o Governo Federal havia feito uma ampla campanha, incentivando a migração de famílias de trabalhadores rurais empobrecidos de diversas partes do país, especialmente do Nordeste para a Amazônia. É desse tempo a frase muito conhecida de Garrastazu Médici “terras sem homens para homens sem terras”. Trata-se de um discurso que o referido Presidente da República fez em Manaus (AM), em outubro de 1970, numa reunião da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) quando considerava necessária a colonização da Transamazônica. Para ele, era certo que a colonização deveria estimular a migração de camponeses, sem terras e trabalhadores pobres, ao mesmo tempo em que distensionaria os conflitos sociais no nordeste e no sudeste do país e possibilitaria a criação de polos de: mãos de obra favoráveis à expansão dos projetos agropecuários, mínero-metalúrgicos e industriais na Amazônia; de consumidores de produtos industrializados do Centro-Sul do País; e de fornecedores de matérias-primas para as indústrias do Centro-Sul.

Então foi efetivada a colonização às margens da rodovia Transamazônica, denominada na época de Programa Integrado de Colonização Marabá (PIC-Marabá), propagandeada pelo Governo Federal como melhor opção de desenvolvimento da Amazônia. Acontece que na prática, o PIC-Marabá não só incidiu sobre áreas já habitadas por posseiros, como foi o caso em São João do Araguaia, como não contemplou as expectativas dos migrantes pobres.

Ao chegarem à região, pessoas não encontraram emprego, como também não encontraram as ditas terras. Grande parte das áreas agricultáveis já estava ocupada por grandes proprietários: foreiros de castanhais ou empresários do Centro-Sul do país. Foi a partir de então, que o sul e sudeste do Pará passaram a aparecer no cenário nacional e até internacional em razão da problemática em torno dos conflitos agrários. Sem alternativas de sobrevivência, milhares de trabalhadores sem terras passaram a ocupar inúmeros imóveis improdutivos passiveis de ser desapropriados para fins de reforma agrária. Muitos fazendeiros para não perderem as suas terras, mas também os status político e social que a propriedade da terra lhes confere, passaram acionar a proteção dos aparelhos de estado, mas também a contratar pistoleiros para expulsar e até mesmo assassinar trabalhadores. Do início da década de 1970 aos dias atuais, segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), mais de 700 trabalhadores rurais e suas lideranças foram assassinados no sul e sudeste do Pará em razão dos conflitos por terra.

Hoje, segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o sul e sudeste do Pará abrigam 514 Projetos de Assentamentos da reforma agrária, com mais de 70 mil famílias assentadas, mas nenhum desses assentamos foi criado como ato de boa vontade dos órgãos de terras ou dos governo Federal e Estadual. Na grande maioria foram áreas de intensos, prolongados e violentos conflitos como mencionado acima.

Não deixando de considerar que existem entraves que desafiam a permanência dos trabalhadores rurais na terra e que as políticas de criação de assentamentos pelo Governo Federal devem ser vistas de maneira crítica, podemos, de certa forma, afirmar que os assentamentos de reforma agrária significaram a redefinição da posse e do uso da terra nessa parte do território amazônico, possibilitando diversas famílias que não tinham terra ter um lote para produzirem alimentos e viverem com maior dignidade.

Desse modo, ao tratar da migração e da constituição das cidades do sul e sudeste do Pará não podemos esquecer das problemáticas em torno da questão agrária que são, de certa forma, importantes para ajudar a entender não só a história regional, mas também a história do Brasil, principalmente no tocante à posse e ao uso da terra.

Airton dos Reis Pereira é graduado em História (2000), pela Universidade Federal do Pará (UFPA); mestre em Extensão Rural (2004), pela Universidade Federal de Viçosa (UFV); e doutro em História (2013), pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Filho de camponeses migrantes de Minas Gerais, foi posseiro e agente de pastoral da Diocese de Conceição do Araguaia e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), no sul e sudeste do Pará. Atualmente é professor Assistente IV, do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Campus de Marabá. É também professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais e Sociedade na Amazônia (PDTSA), da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). É autor do livro “Do posseiro ao sem-terra: a luta pela terra no sul e sudeste do Pará” (Editora da UFPE, 2015) e possui diversos artigos publicados em revista e em jornais de circulação regional, nacional e internacional.

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