Algumas reflexões sobre o mal-estar provocado pela exposição “Para ver e ser visto” na Unifesspa
Eri Cavalcanti /Doutor em História pela UFPE
Prof. da FAHIST e do PDTSA – Unifesspa
Considerações iniciais
Parafraseando o poeta mineiro, a porta da verdade foi aberta. Mas só era permitido passar meia pessoa por cada vez. Assim, segundo ele, não era possível atingir toda a verdade, “porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade”. Da mesma forma, a outra segunda metade ao voltar só trazia meia verdade e as duas metades não coincidiam. O que fazer?
Derrubaram a porta. Chegaram a um lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. As duas eram totalmente belas. Mas carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia (2002).
Recentemente, a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) comemorou cinco anos de existência. A Reitoria realizou uma programação festiva e solicitou à Faculdade de Artes Visuais que elaborasse uma exposição artística para celebrar o aniversário. Como desdobramentos dos trabalhos já em andamento naquela faculdade — avaliada com nota máxima pelo MEC — um conjunto de obras foi exposto no recém inaugurado prédio de multiuso da universidade, compondo a exposição “Para ver e ser visto”.
Um trabalho inspirador. Um trabalho que irradia movimento; um trabalho que expressa vida; um trabalho do qual pulsam os traços das ações humanas desse espaço chamado Unifesspa, que luta por sua consolidação frente ao desmonte proporcionado e posto em cena com o golpe de 2016. Um trabalho que expõe os signos da presença dos discentes e docentes do curso de Artes Visuais; que está mostrando que veio para ficar; que chegou para provocar o olhar, para mexer com o senso comum; que instiga e provoca a sair do lugar simplista que pulula a mediocridade do cotidiano; que desafia a olhar por outros ângulos de percepção.
Sim. Os trabalhos já estão provocando reações. A exposição “Para ver e ser visto” provocou um mal-estar. As obras de arte expostas foram classificadas como poluição visual, depredação do patrimônio público, e pornografia, até. Vejamos algumas imagens que suponho terem motivado o desconforto.
Que bom que os trabalhos do curso de Artes Visuais já estão provocando os deslocamentos que incomodam a miopia de muitas pessoas. Eu suponho que quem se sentiu desconfortável seja um grande especialista em artes; que tem grande experiência em curadoria em diversos museus, com reconhecidas exposições compondo seu currículo. Partindo desse entendimento, seria muito bom se o referido mal-estar contribuísse para provocar o debate público. Gostaria imensamente de ouvir os argumentos para entender com base em quais fundamentos teóricos se enxergaram as obras de arte como “poluição visual”. Gostaria imensamente de ouvir quais os princípios epistemológicos a partir dos quais se pôde dizer que as obras expostas caracterizam depredação ao patrimônio público. Gostaria, da mesma forma, que colocassem às claras os critérios artísticos e científicos pelos quais se classificaram as obras como pornografia. Sim. Estamos na academia e devemos fazer uso da ciência para respaldar nossas ações. Aqui não é espaço de senso comum. A universidade não é o lugar do achismo barato, do simplismo raso. Ou pelo menos não deve ser. Seria muito bom para o debate, para o crescimento intelectual e para o fortalecimento da democracia que pudéssemos ouvir as justificativas devidamente sustentadas nos princípios que regem os fundamentos da ciência, mesmo sendo essa incompleta, parcial, limitada.
É oportuno levantar a questão: quem mais teria cabedal de conhecimento e autoridade legitimada para dizer (e classificar) que as obras expostas são poluição visual? Ou que as obras expostas estão deteriorando o patrimônio? Ou que a referida exposição tem um caráter pornográfico? Parece-me que, se temos pessoas com respaldo sustentado na ciência — que é o lugar da universidade — essas são as que fazem o curso de Artes Visuais. Isso não significa dizer que tal interpretação é inquestionável. Mas, seria enriquecedor que se apresentassem os argumentos contrários. Teria sido esse mal-estar mais um sintoma que caracteriza os tempos que atravessamos?
Tempos de pupilas dilatadas
Quem já fez exame oftalmológico sabe do incômodo que é dilatar as pupilas. Durante a realização do exame, ficamos, temporariamente, com a capacidade da percepção visual reduzida. Com as pupilas dilatadas, passamos a enxergar o mundo de maneira turva, embaçada. Perdemos a capacidade de identificar objetos pequenos. Nossas sensibilidades para perceber os detalhes são afetadas momentaneamente.
Parece-me que estamos presenciando uma época em que inúmeras pessoas se encontram realizando um exame oftalmológico em tempo permanente. Crescem diariamente exemplos de comportamentos em que diversas pessoas se sentem capazes e no direito de dizer o que e como os outros devem enxergar a vida. Para algumas pessoas, pouco importa se sofrem de alguma miopia aguda ou se estão com as pupilas dilatadas. Inúmeros cidadãos, cada vez mais, sentem-se autoridades para querer dizer o que os outros precisam ser, o que os outros devem enxergar, o que os outros devem sentir.
Enxergamos o mundo, sim, por nossas lentes míopes. Enxergamos as coisas e as obras de artes pelas lentes de nossos valores, de nossos preconceitos, de nossas crenças. Vemos a vida pelas lentes arranhadas e com as pupilas dilatadas pelo preconceito que carregamos. Enxergamos o mundo com areia em nossos olhos. O problema não reside em vermos o mundo através das lentes de nossa miopia. O problema reside em querermos que todo mundo passe a ver o mundo com as mesmas lentes míopes e foscas com as quais enxergamos ou deixamos de enxergar a vida e o mundo. A verdade, assim como disse o poeta, nunca será completa. Portanto, que não venham meias verdades querendo ser verdades absolutas. Que não venham as miopias querendo determinar o que os outros precisam ver.
A professora Berenice Bento (2017), do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, recentemente escreveu um belo e inspirador texto que, do meu ponto de vista, contribui para entendermos algumas práticas desses tempos de “pupilas dilatadas”. O enfrentamento das relações — ou o crescimento da miopia escancarada que deseja impor o que deve ser visto — é resultante, também, do reordenamento das lutas de homens e mulheres que não mais aceitam, passivamente, ocuparem o lugar que as “cataratas da dominação” política de alguns definiam. As formas de ver se ampliaram. As lutas se intensificaram. Nas palavras da professora:
A luta de raças, de classe, de sexualidades, a luta pela liberdade de ensino, liberdade da autonomia do professor, liberdade de expressão, a luta de gêneros dissidentes virou manchete. Acabou aquela história de democracia racial, homofobia cordial, relações sociais pautadas na imagem de que aqui vivemos em paz. Acabou. (Revista Cult, 30/10/2017).
As relações se esgarçaram. Entretanto, não impera mais o silêncio frente aos berros e socos daqueles que desejam impor sua forma de pensar o mundo pela lógica de dominação e explicação simplista e causal. Não há aceitação sem questionamentos de que as relações sempre foram assim e assim devem continuar. As miopias das lentes arranhadas de alguns indivíduos não são mais aceitas de forma passiva. Há enfrentamentos. Há questionamentos. Coloca-se o dedo no olho do preconceito que deseja impor e controlar quem não se enquadra. Os enquadramentos são questionados.
Um mundo de dominação cristalizada desmorona. Os gritos para proibir as discussões acerca das relações de gênero relevam que aqueles que se opõem ao debate precisam agora disputar esses espaços e tentar fazer calar. Precisam fazer com que as relações sejam vistas pelas lentes de suas miopias. Precisam convencer e fazer enxergar por meio de suas pupilas cheias de areia. Necessitam, publicamente, expressar que não toleram o direito ser estendido a todos conforme está prescrito na Constituição.
Precisam verbalizar que não toleram ao seu lado pessoas de crenças diferentes. Que não admitem pessoas com tonalidade de cor de pele diferente da sua. Estão tendo que expressar que seus preconceitos não suportam a diversidade de ideias, de percepção; que são intransigentes com a pluralidade étnica, religiosa, sexual, cultural. São obrigados a assinar seus atestados de intolerantes.
Os debates, as disputas e os questionamentos povoam os espaços, configuram o tempo, constituem-se em disputas que tencionam as rugas, remelas e cataratas que querem continuar determinando o que e como o mundo deve ser visto. São estratégias de enfrentamento que passaram a se constituir em ações corriqueiras. Tornaram-se parte das relações cotidianas. Isso incomoda. E a História e seu ensino — bem como as outras ciências, sobretudo as humanas — têm também contribuído para criar essas fendas no tempo, outras formas de olhar pelas quais se abrem espaços de questionamentos, pelas quais as práticas de silenciamentos são quebradas. Nossas ações tencionaram e tencionam o pêndulo para o lado da reflexão, para o ângulo de percepção que não entende e não aceita o mundo como modelo dicotômico, como modelo único de crença, de família, de pessoa. Nossas reflexões impelem o discurso do senso comum a ser questionado. Contribuímos para que sejam repensadas as explicações simplistas e duais que estabeleciam um ângulo único para ver o mundo. Não aceitamos discursos medíocres que se escondem no manto da miopia religiosa como forma única de perceber e ver o mundo, de ver as artes, de ver as pessoas e os sentimentos. Se ainda são por essas lentes que muitas pessoas enxergam o mundo — ou dele conseguem olhar apenas o que permite a penumbra das pupilas dilatadas pelo preconceito — não venham querer que com essas lentes arranhadas os outros enxerguem e vislumbrem o universo ao seu redor.
Nossas ações estimulam a criticidade e contribuem para apreender o mundo e as pessoas como construções abertas e plurais. Como sujeitos de múltiplas cores, de múltiplos sons, desejos, olhares, sensações e formas de enxergar, sentir, dizer e ser. Somos responsáveis porque incitamos nossos jovens a buscarem outras formas de ver, outras maneiras “Para ver e ser visto”, outras interpretações, outros ângulos de leituras, outras lentes de percepções.
À guisa de (in)conclusão
Se os tempos são de pupilas dilatadas, acreditamos que nossas ações de pesquisa, reflexão e escrita contribuirão para construir outros ângulos de percepção. Paradoxalmente, quando estão dilatadas as pupilas, o médico especialista pode perceber sinais das áreas que necessitam de tratamento, que precisam de um cuidado maior. Assim, também acreditamos que os questionamentos que estimulamos frente aos discursos preconceituosos, que desejam determinar o que os outros precisam ver, sejam colírios para tantas miopias que abundam nosso tempo, que tornam nebulosas algumas formas de ver e tentam impedir outras formas de ver e ser visto, de ver e sentir o cotidiano. Nessa perspectiva, nossas ações poderão se constituir em antídotos contra certas cataratas sociais que povoam e ofuscam o cotidiano.
Mas não nos enganemos que as batalhas para enxergamos o mundo por outras lentes sejam fáceis. Enfrentaremos muita resistência. Haverá parlamentares, representantes da sociedade civil e das instituições religiosas que irão continuar enxergando o mundo com suas miopias e querendo que os outros também assim enxerguem. Haverá muitas lentes que irão continuar defendendo que mulheres, negros, refugiados, gays, lésbicas, travestis, praticantes de credos africanos, ateus (e todos aqueles que não se enquadram nos modelos socialmente aceitos como padrões) não tenham seus direitos garantidos, não tenham direito a enxergar o mundo por outros ângulos de percepção.
Os berros e socos continuarão. Tentarão nos cegar. Tentarão impor suas cegueiras. Para controlar, irão tentar impor suas miopias como já estão fazendo por meio da censura à exposição Quuermuseu do Santander, ou ao show que Caetano Veloso iria realizar no acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto em São Paulo. Tentarão impor suas lentes tortas como única forma de ver o mundo e, para isso, irão expressar o incômodo provocado por outras lentes livres das “cataratas dos preconceitos sociais”.
Entretanto, as lentes e leituras que não se enquadram nas miopias crescem e operam mudanças nas relações de poder. Mudanças que estão interferindo nas relações de lugares que antes eram apenas assentos sagrados da elite branca, cristã e heteronormativa desse País, como a universidade pública. A universidade pública que antes ficava localizada nos grandes centros econômicos e políticos, exatamente onde moram as elites. Há uma nova cartografia política com o crescimento das universidades no Brasil. Isso desloca as relações de poder. Tenciona as relações de força. Incomoda. Cria outras maneiras de olhar, outras formas “Para ver e ser visto”. Não é por acaso que o curso de Direito da Terra — ofertado na Unifesspa — foi e ainda é atacado. Não foi por acaso que a exposição de “Para ver e ser visto” causou um mal-estar. Não foi por acaso que a peça teatral com uma travesti interpretando Jesus continua despertando a fúria dos olhares míopes e das pupilas dilatadas.
Quais os desafios, portanto, da História e das demais ciências humanas, nesses tempos de pupilas dilatadas? Para que serve pesquisar, ensinar e escrever em tempos de lentes que pretendem determinar as formas de ver e ser visto? Quais seus desafios nos tempos de miopias em ascensão? Sou um incansável defensor de que a História, mais do que nunca, tem um papel crucial nesses tempos. A História tem poder de combater a intolerância. A História tem o poder de curar as miopias, de criar outras lentes para olhar, sentir e viver o mundo. A História tem o poder de contribuir para fazer entender que somos distintos. Que somos múltiplos. Que somos diversos. A História tem o poder de nos fazer entender que existem formas distintas de sujeitos. Que não existem verdades absolutas. Que existem muitos ângulos de percepção e formas de ver o mundo. Que podemos viver e conviver com diferentes leituras e ângulos de percepção. Que podemos dialogar e conviver com a alteridade. A História é uma arma potente contra a cegueira, contra a catarata política e social, contra a miopia que dilata, dilacera e impede de se olhar a vida por diferentes e coloridos ângulos de percepção.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
BENTO, Berenice. Afeto, Butler e os neoTFPistas. Revista Cult, 30/10/2017.