Andrey Minin Martin
Doutor em História -UNESP
Docente/História-Unifesspa/IETU
O ano de 2018 ainda não terminou e figura como central nos caminhos do setor energético nacional e sua expansão em processo na Bacia Amazônica. Entre os grandes projetos previstos, instaurados e em análise em várias territorialidades, como a bacia do Tapajós e Tocantins-Araguaia, assistimos a um emaranhado de intervenções sociais e governamentais que podem, por um lado, cercear o intenso processo de hidrelétricas previstas para a região, denominada de nossa “meca energética” ou, por outro, intensificar a demanda para criação de novos projetos.
A necessidade de expansão de nosso parque energético não é um debate exclusivo de nossas atuais demandas, mas que tem nos últimos anos elucidado novas páginas de uma história que está longe de acabar. Isso porque entidades como o Ministério Público, Agência Nacional de Águas (ANA) e Tribunal de Contas da União, dentre outros, tem se posicionado a respeito da atual realização de grandes projetos hidrelétricos estabelecidos para regiões como o Centro-Oeste e Norte brasileiro, produzindo salutares debates. Em 2018 o Ministério Público Federal, conjuntamente com o Ministério Público do Pará, realizaram uma série de intervenções sobre irregularidades no licenciamento de hidrelétricas no rio Tapajós, a respeito da construção de oito Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) neste rio e seus afluentes, como o Cupari, na divisa com o estado de Mato Grosso. Parte das reivindicações federais ocorrem pela perspectiva, primeiramente, de que a bacia do Tapajós não se limita ao estado depositário dos projetos e assim o impacto causado nas Unidades de Conservação ultrapassam as análises locais. Conjuntamente, estas entidades alegam que a construção de PCHs não estão isentas de impactos ambientais, como divulgados pelas empresas gestoras dos projetos, visto que a instalação de mais de uma na calha do mesmo rio é passível de provocar um impacto tão grande quanto uma Hidrelétrica de maior porte. Segundo o processo aberto pelo Ministério Público (Processo nº 1000147-45.2018.4.01.3902.) a realização de licenciamento em PCHs, gestadas de forma isoladas, contribui para escamotear o real impacto global de todo o empreendimento.
Este debate remonta diretamente à questão da conservação versus potencial hidrelétrico, posta como um imperativo para nosso desenvolvimento. Segundo os dados apresentados no Plano Decenal de Expansão de Energia e pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) a região Sul e Sudeste do Pará representa 25 % do potencial hidrelétrico nacional, o que deposita sobre a mesma como um espaço central para continuidade da expansão energética. Projetos como o Complexo Tapajós e as hidrelétricas em construção da bacia Tocantins-Araguaia evidenciam tal empreita, que ultrapassa o montante de mais de 40 projetos, entre previstos e em estudo.
Uma das alegações dos órgãos federais é de que a realização de um conjunto de PCHs neste espaço não tem diretamente a intenção de mensurar os impactos, mas contribuem para dificultar a análise dos reais problemas causadas pelas mesmas, visto que ainda existem debates sobre a viabilidade na relação produção-impacto deste modelo hidrelétrico. Somando estes projetos previstos ao conjunto em funcionamento na bacia do Tapajós, que são 13 (nos rio Sacre, Jurema, Sangue, Formiga e Gravari) equivaleriam a uma grande hidrelétrica, logo seu impacto também.
Uma das fragilidades apontadas neste relatório é de que a construção de PCHs envolve diretamente a transferência das incumbências federais de análise ambiental para os órgãos competentes em âmbito estadual, como a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, a SEMAS, no Pará. E tal fato, devido a possíveis fragilidades em sua estrutura, um traço marcante de muitas entidades estaduais pelo país, dificultaria uma análise ambiental mais profunda, descaracterizando diretamente o real processo de licenciamento. E este procedimento quando realizado em grandes barragens é efetuado de forma mais profunda, por meio da chamada Avaliação Ambiental Integrada, mas que neste caso não englobou tais projetos, aprovados e inventariados em um momento posterior pela Agência Nacional de Energia Elétrica, Aneel.
Dentre as lacunas que podem ser apontadas destacam-se a falta de maiores estudos analisando como os empreendimentos afetariam as comunidades tradicionais da floresta, como os grupos indígenas. Segundo dados produzidos por grupos como o WWF e Comissão Mundial de Barragens (CMB) mais de 40% do território estaria coberto por unidades de conservação e terras indígenas, mais precisamente 9 unidades de conservação e 30 de terras indígenas. Destacam-se neste território o Parque Nacional da Amazônia e a Floresta Nacional do Tapajós, criada em 1974 (WWF-Brasil, 2016).
É mister destacar que estudos sobre o aproveitamento energético nestas bacias hidrográficas encontram-se em realização desde a década de 1980, buscando promover o aproveitamento hidrelétrico para além destas PCHs apontadas. No caso da bacia do Tapajós, estão sendo realizados atualmente pelo Grupo de Estudos Tapajós, empreita liderada pela Eletrobrás e um conjunto de empresas (Eletronorte, Cemig, GDF-SUEZ, EDF, Endesa Brasil, Copel e Camargo Corrêa) que realizam estudos de viabilidade técnica e ambiental para construção de mais de 14 projetos, destacados inclusive no Plano de Aceleração do Crescimento (PACII). Conjuntamente, temos a expansão de projetos na bacia Tocantins-Araguaia, região historicamente central no processo de integração entre o Norte e as regiões centrais do país. Espaço que ocupa aproximadamente 11% do território nacional, conta atualmente com sete hidrelétricas instaladas e outras quatro inventariadas.
E as intervenções ocorridas em projetos na região Norte coadunam com um movimento que permeia diversos empreendimentos em localidades nacionais. Em agosto deste ano o Ministério Público Federal em Mato Grosso conjuntamente com o Ministério Público Estadual (MT) realizaram procedimento sobre a construção da PCH Mantovilis. O processo encaminhado à Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) de Mato Grosso e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) visam apurar os possíveis impactos sobre as comunidades locais, moradores de espaços como as baías de Siá Mariana e Chacororé e das terras indígenas Tereza Cristina, neste caso os Bororo. Autorizada sua instalação em 2015, por meio da Portaria n⁰ 94, caracteriza-se como uma usina de fio d’água, com potencial de 5,2 MW, localizada no córrego Mutum, importante formador do rio Cuiabá. Além da direta relação com as comunidades destacadas, o empreendimento demarca relação direta com a região de Pantanal matogrossense, assim como deve possuir autorização do Iphan a respeito de possível inferências a sítios arqueológicos nos locais.
São ações necessárias para que, por um lado, nosso processo de ampliação do parque energético encontre novas estratégias e soluções para o mote de problemáticas que sempre se avistam nestes empreendimentos sem afetar nossa importante diversidade ambiental, social e histórica emaranhado nestes espaços de construção. Neste caso, a própria terra indígena de Tereza Cristina, segundo Manuela Carneiro da Cunha (1986) tem conexões com processos demarcatórios do século XIX realizados por Marechal Cândido Rondon, mas que sofreram profundas alterações em suas novas demarcações na década de 1970 pela Funai. Logo, esta trajetória de desmonte não pode ganhar novas páginas agora por meio do processo de expansão energética.
Neste mesmo intuito a Agência Nacional de Águas (ANA) emitiu neste mês de setembro a suspensão temporária para implantação de novos projetos hidrelétricos na bacia do rio Paraguai até que os estudos socioeconômicos e de impactos ambientais, iniciados em 2016, sejam concluídos. Válida até 31 de maio de 2020, tanto para Usinas Hidrelétricas (UHE) e PCHs, busca analisar seus impactos sobre os rios da região e a biodiversidade do Pantanal, principalmente sobre a pesca e turismo. Hoje, temos um montante de 144 projetos para o aproveitamento energético nesta região, sendo em sua maioria PCHs que se somariam às 7 hidrelétricas e 29 PCHs existentes, um número considerável tanto da perspectiva de geração de MW quanto dos impactos causados.
Tais procedimentos podem impedir que projetos, sejam de grande ou pequeno porte, causem danos irreversíveis aos espaços localizados, como muitos já realizados, que ainda sim não produzem uma quantidade energética mínima para seu gasto e tamanho. O caso da Amazônia sempre nos demonstra tais fatos, visto que muitas barragens estabelecidas desde a década de 1970 impedem a migração de peixes e a dispersão de sedimentos, alterando o cotidiano de mais de 20 milhões de pessoas. Rios como o Napo, que vai do Equador ao nosso rio Solimões e o Beni, das cordilheiras ao rio Madeira, têm toda sua dinâmica alterada, para além dos quilowatts que estão sendo gerados.
Casos emblemáticos como o da região amazônica nos demonstram como as ações em curso no ano de 2018 são balizares para romper com mecanismo que, para além de produzir energia, promovem um desenvolvimento insustentável até mesmo do ponto de vista da produção da própria energia. Mas estas são ainda as primeiras páginas de uma história em construção…
Referências:
Caderno da Região Hidrográfica do Tocantins-Araguaia / Ministério do Meio Ambiente, Secretaria de Recursos Hídricos. – Brasília: MMA, 2006.
Comissão Mundial de Barragens: Estudo de Caso Brasileiro, UHE Tucuruí, Relatório de Escopo – Agosto de 1999.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense; EDUSP, 1986.
Ministério Público Federal no Pará. Processo nº 1000147-45.2018.4.01.3902.
Plano Decenal de Expansão de Energia 2020. http://www.epe.gov.br/PDEE/20120302_1.pdf