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Fragmentos de um romance II

Para a nota de hoje, a segunda parte de um romance que – não faz tanto – se perdeu.

Menti para a nossa mãe. Disse que ficará tudo bem. Vai ficar tudo bem, Mãe! Eu disse. E passamos juntas pela porta, o sol baixo, despencando, as sombras todas temperando a nossa covardia, a nossa meia-coragem. Caminhamos até o portão – e ali, na estrada curta de pedregulhos muito amenos – enfrentamos o mundo sem você.

Menti, Clarisse,

e ela devorou aquela verdade feita,

como um faminto que, depois de muitos dias, recebesse pão seco e um bocado de água das mãos de um indigente, de um desconhecido. Ela se banhou naquelas palavras como se você morasse nelas, como se, em cada som disperso no ar, em cada sílaba que aos poucos se apagava, existisse a possibilidade do seu retorno impossível. A sua despedida era um deserto que nenhuma embarcação poderia imaginar. Nós duas, em silêncio, até a padaria. Na voz do atendente, a notícia do acontecido. Bom dia. Os olhos dele visitaram apressadamente os da nossa mãe. Ela disse qualquer coisa baixa como o sol. Ele temperou com um aceno leve e veio questionar a minha vista. Num rasgo de boca, fino e perdido, sorri. A dona da padaria, conhecida de anos, conhecida de quando ainda o pai aqui, ensaiava, no estreito da conversa, entre uma palavra e outra, qualquer intervenção. Disse o nome da mãe. A mãe respondeu. Quantos? Ela disse. A mãe me olhou, como olhávamos para ela, hipnotizadas pela vitrine, pela beleza absurda dos quindins e dos casadinhos e dos sonhos. Como nós, antes, pedindo que ela decidisse, que desse a permissão. Dois, por favor. E você também aqui, irmã. Em cada gota do que é incontornável, a sua permanência funda na pele dos menores movimentos um posto avançado, uma última vertigem..

O silêncio espalhado da mãe,

da nossa mãe tão segura,

da nossa mãe como um tronco firme, sustentando a doença do pai e, depois, a partida do pai. A nossa adolescência sem ele. Ela, de raízes profundas, retirando da terra os nutrientes necessários para a nossa vida de fruta nova e cheia de viço. Ela, espantando para além da muralha que crescia no rosto, a noite dos momentos afastados, quando, sem as margens – que éramos nós – a torrente podia correr ligeira pelos canais do queixo e se jogar, livre e abandonada, contra a dureza do chão. A nossa mãe agora, Clarisse, como um vulto ao meu lado. Se ela soubesse que, para fingir a força que me escapa, copio a postura antiga dela, a capacidade dela de plantar onde nada nasce, de cultivar o que é estéril, fazendo raiar uma floração policromática no abismo ermo da saudade, no campo devastado da ausência. Como aprendiz atenciosa que fui, imito de perto aquela destreza ancestral. Penso se nela a falta do pai berrava como a sua escassez em mim. Penso naquela mulher e nas filhas que tinha, nas filhas que, beirando a idade adulta, querendo, com insegurança e agitação, as formas das mulheres maiores, eram ainda meninas. Nós duas, reagindo a tudo com violência, arrogantemente cobrando de todos uma vaga que não tinha responsabilidade em ninguém, procurando, a golpes de faca e punho, a parte que havia partido, uma tampa que servisse no gargalo imensurável da privação, que ocultasse o disparate de tudo que girava em torno do pai e que, sem ele, esparrodou-se, sem alicerce, por todos os lados. Agora, você em nenhum lugar, você em cada parte, e a balança que construímos juntas fica só com a haste central e um dos lados pendendo. O ombro da mãe, onde pesa o meu braço, é mais curvo, infinitamente mais curvo, porque o seu braço não enlaça o outro lado, porque o seu braço – nunca mais – e a sua voz e a sua agitação – nunca mais.

A dona da padaria entrega a sacola. Os pães dentro.

Força, minha amiga. Ela diz.

Que sim – diz a mãe, num gesto pesaroso, deixando a boca oscilar. Obrigada – falei. Saímos da padaria. Na calçada, outra vez, o sol tomba e as pessoas que passam querem todas parar. A mãe não levanta os olhos do passo. Quando você aqui, não cabiamos no passeio. Agora, nós duas, com espaço, chegamos ao portão. Ela não diz nada. Eu abro a porta.

Ela me olha,

toca de leve o meu rosto,

um empenho titânico no esforço, atlas erguendo o mundo,  

e deixa os olhos descerem outra vez. Lembro-me de quando éramos pequenas e você, por graça ou raiva, dava com a mão na beira da bacia cheia de pipoca. A mãe mandava que nós cantássemos. Catem logo essa bagunça! Ela dizia. Agora, depois do tapa, recolho sozinha os restos do chão e a bacia,  Clarisse, é a nossa mãe,

a nossa mãe vazia esperando que alguém devolva para dentro dela o que,

sem aviso, arrancaram de lá. O problema, irmã, é que não vejo mais as pipocas.

Lucca Tartaglia é doutor em Letras Vernáculas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui mestrado em Letras (Estudos Literários) pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa (2014) e graduação em Letras (Língua Portuguesa / Literaturas de Língua Portuguesa) pela mesma instituição (2013). É colaborador, como pesquisador, no grupo Formação de Professores de Línguas e Literatura (FORPROLL), linha de pesquisa Estudos de cultura, linguagens e suas manifestações, vinculado ao CNPq.

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