Luiza Neto Jorge escreveu, numa das vigas d’O seu a seu tempo, que “o poema ensina a cair”. Nesse tijolo contra a vidraça do poema, eu escrevo que só
“a queda ensina”.
O trocar de passos entre nós, entre os dois, é a coreografia empenada de um casal que dança – cada um à sua maneira – a mesma valsa, é a maneira entranha de dizermos, como cegos a tatear um paquiderme, o que nos escapa e confunde, porque o tombo nos entrega ao princípio, nos instrui sobre a mecânica das coisas que crescem, sobre o lugar do chão, sobre a dimensão mais aproximada do fim. O primeiro passo não é o mais difícil – o mais difícil é, à beira do abismo, a primeira vertigem, – e qualquer tropeço, qualquer caidela pode ser uma ribanceira – quando a tontura nos toma de assalto, reclina o mundo, gira o carrossel das maneiras e deita fora tudo a tremer.
Não digo que seja fácil superar o sismo, o atrito inicial, a fagulha incendiária, a fricção inaugurando a estrada, colocando o motor no trote, apresentando o risco de combustão a tudo o que, por anos e anos a contar, trouxemos na bagagem.
Não,
atiçar fogo no beiral dessa estante velha, dessa biblioteca particular, requer, de fato, algum nível, mesmo que sutil, de loucura, uma coragem que flerta com o destemor, porque o pé não se afasta do chão se não for empurrado por qualquer coisa que esgueira por entre as alamedas mais inóspitas do interior, os joelhos não se dobram, o corpo não verga, os olhos não firmam se, por detrás da vontade fantasiada, não caminhar um vulto faceiro e sem nome, um impulso buliçoso, que passa baixo e airoso num cicio leve, num murmúrio fugidio
num rumor
que é sombra sonora e só
que é fogo e arde.
Porém, é depois da visão arriar, dos olhos, perdidos na distância, ensaiarem um dilúvio, que a dificuldade nos alcança. Antes disso, os obstáculos são como tambores ao longe, não passam de trovoadas, rimbombos de uma tempestade correndo na dobra da vista, de um temporal que, guardadas as proporções, vem a galope, que se aproxima a golpes altos e sonoros, com a fome descabida de cem famintos e o desvario sem amparo de mil glutões. Quando, depois do giro, a chuva nos encontra, essa apoteoso da ruína, da queda, da descida, vem afogar no destempero todas as formas, arrefecer na enxurrada até a menor centelha, minguando a matéria maleável e aquecida do maquinário e da maquinação.
Vê
que também se aprende o mar na direção das árvores, que também se compreende os rios na corredeira que desce de encontro ao chão, que os vales e montanhas ao redor sabem dizer do que escapa à terra firme.
O temporal, depois, corre rasteiro como, antes, a serpente no beiral da queda. Nos encontra à margem do fruto, com a dúvida sitiando a boca, aguardando com a liberdade na altura dos dentes, e não sabemos ao certo se a proibição é um convite ou um aviso, uma promessa ou uma redenção.
Sem saber se as ondas, vistas assim, não fazem o caminho inverso, nascendo na praia e terminando no mar, escrevo naquela trave: “numa das vigas d’O seu a seu tempo”.
A tormenta e o vendável nos acham à janela, observando, cuidadosos, pelo hiato aberto, pelo vão daquela pedra, o concreto anoitecido da rua. Nada contem a água de entrar. As mãos, as cortinas, os móveis, tudo está embebido pela queda, tudo está cheio de cair.