A Coluna INcontros conversou por horas com a escritora Bebeti do Amaral Gurgel* – que acaba de lançar mais um de seus livros – em um café na icônica Rua São Francisco em Curitiba. Entre risadas e conversas aleatórias o assunto principal foi, claro, a obra lançada recentemente e todo o processo criativo nela envolvido. Os temas percorreram desde a trajetória artística da autora, as influências literárias na sua criação, a temática tratada, o que os leitores vão encontrar como inovação em relação aos seus trabalhos anteriores, além do que este novo livro representa para ela como escritora e quais os planos futuros. Veja abaixo trechos dessa conversa.
Bebeti é a única autora paranaense traduzida para o sérvio. Seu livro “O Diário Supersecreto de Carolina” lhe rendeu uma homenagem na Feira do Livro em Belgrado, em 2011. Surgido da convivência com adolescentes e entrevistas, nasceu a personagem Carolina, autêntica representante de uma nova geração de garotos e garotas que aliam a aparente rebeldia no vestir – o que deixa seus pais apavorados – a hábitos requintados – o que deixa seus pais orgulhosos. Uma turma que aposentou os sapatos, elegeu o tênis como peça básica e camisetas politizadas para todas as ocasiões. Turma que adotou piercings e faz questão de manter os cabelos curtos e coloridos. Sobretudo, capricham na produção. Ao visual moderno, as Carolinas que se espalham pelo Brasil aliaram uma sede por tudo o que é cult: informação, cafés, livrarias, centros culturais, música eletrônica.
Bebeti teve a única livraria feminista do Brasil, em Curitiba, a Lilith, durante 11 anos. Livraria que foi criada como um espaço para mulheres e homens sensíveis, com títulos e assuntos direcionados a temas pouco explorados e considerados ‘tabu’. “Era mais uma livraria sobre mulheres do que para mulheres”. Lilith foi também a primeira do Brasil a ter prateleiras exclusivas para mulheres negras, grávidas e homossexuais.
Entre os títulos publicados, estão “A Quem Interessar Possa”, através da Editora Brasileira e “Pecados Safados”, publicado pelo selo feminista Rosa dos Tempos, da não menos celebrada Editora Record. Ambos os livros são considerados pioneiros ao ter protagonistas homossexuais, tema que Cassandra Rios (1932-2002) inaugurou, embora com estilo diferente. Bebeti considera-se uma escritora engajada politicamente e usa a literatura para fazer políticas de inclusão.
A influência principal do novo livro, “Uivo dos Invisíveis”, vem da literatura Beat, em especial, Allen Ginsberg a quem homenageia no título. Aqui, vale lembrar, que Ginsberg escreveu seu célebre poema Howl, (Uivo), uma polêmica obra de poesia, que foi o mais vendido da História nos EUA. “Uivo dos Invisíveis” é também um grito visceral, parte das entranhas, em forma literária, assim como seus protagonistas, os pixadores que, através de riscos, gritam pela cidade em silêncio. Seu livro retrata a periferia e é uma obra escrita sob um ponto de vista feminista. Destaca ainda a inspiração vinda dos escritos de Diane di Prima, Virginia Woolf e Clarice Lispector, a “mãe de todas nós”.
Quando perguntada por que escreveu esse livro, Bebeti remete ao protesto surgido no Canadá contra a ditadura da roupa, a Marcha das Vadias. Mas qual a ligação do pixo com essa manifestação? Bebeti conta que em 2014, quando houve uma das Marchas das Vadias em Curitiba, a “Maria”, famosa estátua da Mulher Nua localizada na Praça 19 de Dezembro** (não por acaso chamada de Praça do Homem Nu), foi pixada com os nomes das mulheres assassinadas naquele ano. E como reação, políticos e a comunidade local promoveram muitas críticas a esse ‘vandalismo’, sem levar em conta a motivação real do ato.
Por que o pixo incomoda tanto? O pixador também é um cidadão, uma pessoa que usa o suporte que dispõe para se expressar: os muros da cidade” diz a autora. O pixo é a expressão dos jovens da periferia, já que a cidade, pelo menos teoricamente, é de todos e todas. É a forma que eles encontraram de pertencimento à cidade, de se expressar onde são banidos, os bairros centrais e nobres da cidade, diz. A autora coloca em evidência a onda que vem ocorrendo pela primeira vez no Brasil que é a valorização da cultura da periferia, tanto na moda, como nas artes plásticas e na música. “A Garota de Ipanema não representa a Garota da Rocinha. A Anitta sim”.
Nas artes feitas com spray, há o grafite e o pixo, que funcionam como uma espécie de divisão de classes. O grafite é considerado arte, é estético e apreciado pela maioria. Já o pixo é considerado vandalismo, sujeira, delito. No Brasil, os políticos parecem ter o poder de curadoria de arte, discriminando aquilo que é punível ou não. Assim, o muro aparentemente democrático se torna segregador, então é preciso também questionar o muro. O pixo transgride a estética normativa, acadêmica, por isso incomoda. Assim como a tatuagem é uma pixação no corpo, a pixação é uma tatuagem na cidade.
“Sei que não tenho o lugar da fala e respeito muito isso. Não quero me apropriar da narrativa dos meus protagonistas. Mas posso trazer a discussão à tona porque tenho o lugar de escuta”, ressalta.
Em seu livro, que é produto de quatro anos de pesquisa, leituras, entrevistas e observações nos muros das cidades, a autora relata alguns aspectos interessantes desta arte de rua, como a estética dos ‘tag retos’, onde os pixadores do Brasil criaram um alfabeto próprio, que acompanha a arquitetura local. Inclusive há certas disputas e status adquiridos pelos membros de grupos, de acordo com a altura dos prédios que conseguem pixar. A prática do “atropelo”, que é quando um pixador faz seu registro em cima de um anterior, é condenado pela ética nos grupos. São regras que promovem a convivência das comunidades da periferia.
Além do lançamento realizado em Curitiba, na Livraria da Vila, e no Rio de Janeiro, na Livraria Argumento no Leblon, está previsto para o próximo ano, um lançamento com palestra em Amsterdam, local onde a autora residiu por onze anos.
Trecho do livro Uivo dos Invisíveis:
(…) Por que os pixadores pixam? Quais os motivos? Então os motivos para os pixadores pixarem são muitos:
Pixam para mostrar sua expressão artística porque pixadores também podem ter aspirações artísticas mas a expressão da periferia está sempre à margem porque os outsiders que vivem fora dos muros além da privação econômica sofrem também da privação de expressão. Pixam então pelo direito de expressão.
Pixam porque querem falar de política porque assumem uma posição política porque pixadores têm atitude política e não ficam politicamente em cima do muro. Pixam então porque querem ser participantes da história e não simples espectadores. Pixam para expressar sua existência porque querem sair do anonimato porque pixadores são invisíveis para a sociedade. Pixam então para afirmar sua identidade. Pixam para mostrar sua liberdade. Pixam para gritar, para uivar, porque o pixo é o grito do oprimido. Pixam para contestar valores e comportamentos. Pixam porque estão insatisfeitos. Pixam porque têm desejo de mudança. Pixam para mostrar o quanto a sociedade preza as coisas e as propriedades.
Notas:
* Bebeti se define como escritora, jornalista, feminista que utiliza a literatura para fazer política de gênero e de inclusão. (Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bebeti_do_Amaral_Gurgel)
** O nome do local e de seu conjunto escultural representam a data da Emancipação Política do Paraná em 19 de dezembro de 1853. O “Homem Nu”, de autoria de Erbo Stenzel, simboliza o Paraná emancipado. A “Mulher Nua”, de autoria de Humberto Cozzo, que permaneceu nos fundos do Palácio Iguaçu até a década de 70, foi trazida para a praça a fim de completar o conjunto, e simboliza a Justiça. (Disponível em: https://www.centrohistoricodecuritiba.com.br/praca-19-de-dezembro-2/)
*** Imagem do acervo da pesquisa “Repertórios de transgressão: narrativas visuais e performance na Marcha das Vadias”, da mestranda-vadia Kelly Mendonça – Mestrado em Sociologia UFPR. (Disponível em: https://marchadasvadiascwb.wordpress.com/2016/12/01/rua-corpo-resistencia/)
FOTOS:
Lana Furtado Fotografia
Contato: 41 98485-5777
FanPage:www.facebook.com/lanafurtadofotografia/
Site:https://lanasilvafurtado.wixsite.com/lana-fotografia
Editora Chiado
151 páginas
R$ 39,00
Parabéns à autora Bebeti do Amaral Gurgel, à Bel Liviski pela reportagem! Vou atrás do livro na segunda feira! Queria também uma entrevista com a Bebeti! Estamos em processo de pesquisa sobre o Baixo São Francisco.
Obrigada, profa. Selma!!!! passei o seu contato para a Bebeti.
Abraço grande!
Um daqueles livros necessários que deveriam ser indicados para leitura e debate nas escolas, mas que, infelizmente, não serão. Parabéns Izabel, por nos trazer mais essa notícia.
Obrigada, Pucci!!!!
Seria muito interessante se houvesse essas leituras e debates, pelo menos nas universidades.
Arejaria muitas ideias sobre arte, cultura popular e comportamentos .
Abraço grande!
Gostei demais do seu artigo, parabéns. 2501253