“Nossos becos eram mais escuros e nossos fantasmas corriam mais livres”
Andrey Minin Martin / Unifesspa /IETU
Os caminhos da eletrificação na região Norte compõem uma rica página de nossa história, ainda possuidora de muitos parágrafos a serem lapidados. Pelas veredas das pesquisas me deparo em cada arquivo, a cada leitura e mesmo pelos debates realizados com novas faces de uma história necessária. Recentemente, em meio a pesquisa que realizo sobre os caminhos do desenvolvimento energético na Amazônia Oriental me deparei com algumas fontes de um tema não desconhecido, mas ainda pouco debatido a partir deste espaço geográfico.
O processo de eletrificação na primeira metade do século XX no Brasil dialoga diretamente com as profundas transformações ocorridas entre a Primeira República e o primeiro governo de Getúlio Vargas, no qual em grande parte das experiências de produção energética foi conduzida por empreendimento privados. Como demonstrado pela historiografia, de trabalhos clássicos a mais recentes (BRANCO, 1975; MAGALHÃES, 2000; SEGER, 2012) o setor energético brasileiro em suas primeiras décadas de instauração não era pensado como um projeto de desenvolvimento nacional. Seus preâmbulos tramitavam em meio a empresa e grupos privados, diretamente ligados a países europeus e da América do Norte. Estabelecendo a América Latina como uma “zona de expansão” econômica e de influência política, fato comum em várias regiões do globo ao longo do século XX, o processo de eletrificação tornou-se o catalizador de modernização estrutural-industrializadora de regiões no centro-sul do Brasil. Empresas como Light e Amforp monopolizariam este setor até a gradual transformação ocorrida a partir da década de 1930.
Conjuntamente, este período também seria marcado pelo surgimento das primeiras centrais hidrelétricas do país, as chamadas PCHs, que gravitando em torno destes mesmos espaços produziriam os primeiros quilowatts por meio de nosso potencial hídrico, chamados a época de Hulha Branca. Assim, grande parte destes empreendimentos estariam localizados em regiões como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Esta centralidade acaba, por um lado, sendo evidenciada no mote historiográfico existente que se debruça em analisar os caminhos e descaminhos do setor nestas localidades, mas que, ao mesmo tempo, acabam desconsiderando especificidades gestadas em outras regiões, fora deste eixo de desenvolvimento industrial. Regiões como o Norte e Nordeste possuem significativas experiências no que tangem ao desenvolvimento energético nacional, para além dos debates que se centram nos períodos pós década de 1940, momento do surgimento dos grandes projetos hidrelétricos e companhias energéticas nacionais. E dentre tais experiências destaca-se a primeira hidrelétrica da região Norte: Itapecuruzinho.
A história deste empreendimento se mistura com a história de Newton Carvalho, seu idealizador e executor. Ainda pouco explorada e analisada em produções acadêmicas o mote de publicações existentes decorre de obras memorialistas e biografias, que muito contribuem para seu entendimento, mas estão longe de esgotar as potencialidades e mesmo tecer uma profunda relação do empreendimento com a história do setor energético. A hidrelétrica foi planejada entre os anos de 1937 e 1938, tendo sua execução realizada nos três anos seguintes. O projeto previa a construção da hidrelétrica no rio Itapecuru, situado no estado do Maranhão, à margem direita do rio Tocantins. Sua proposta era produzir e fornecer energia para a cidade de Carolina, situada a 28 Km da obra e cidade natal de seu idealizador.
“Nossos becos eram mais escuros e nossos fantasmas corriam mais livres”. Assim era narrada Carolina, uma pequena cidade no interior da Amazônia Oriental, no estado do Maranhão. Cidade histórica que carrega em seu nome o da imperatriz Carolina Leopoldina, esposa de D. Pedro I, foi fundada em meados do século XIX e compunha um cenário bucólico que não destoava das outras poucas cidades existentes, em uma região de baixa densidade urbana ao longo do século XX. Região de poucas estradas, os rios eram os rincões de entrada e saída de pessoas e mercadorias, elemento historicamente central em grande parte das cidades do norte do país.
Em um contexto de grandes transformações no país, as primeiras décadas do século XX também eram efervescentes em Carolina: o samba e a era dos carnavais de rua, o crescimento comercial marcado pelas vindas de hidroaviões, como o da empresa Pan American Airways, a Coluna Prestes que passara pela cidade, os liceus e a formação de intelectuais que marcariam a história da cidade. Tal importância desta cidade pode ser evidenciada pelo tombamento nacional de seu centro histórico, em 1933. Porém, de todas as transformações, a criação da primeira hidrelétrica da Amazônia deixaria importantes marcas na história da região.
A Usina Hidrelétrica de Itapecuru buscou aproveitar o potencial hídrico existente em uma das quedas d’água do rio Itapecuru, queda esta de onze metros, a partir da construção de canais visando conter uma vazão, a época, de 2,44 metros cúbicos. Para tal empreita foi escolhido o uso de uma turbina do tipo Francis de 110 kW e um gerador de 120 kVA, possuindo uma única subestação com transformador trifásico de 11.000 volts, conduzida diretamente para cidade de Carolina por meio de postes de aroeira até uma estação que regulava a tensão da rede para 110 e 220 volts. Porém, mesmo com o projeto já definido, a instalação da mesma necessitava de todos os trâmites legais para ter autorização de funcionamento e venda da energia elétrica. E isto não seria simples, visto que parte dos políticos locais eram oposição ao nomeado interventor do estado do Maranhão, Paulo Ramos, que assumira o governo entre 1936 e 1945, indicado por Getúlio Vargas e eleito pela Assembleia Legislativa deste estado.
Cabe ressaltar que as políticas nacionais de aproveitamento hídricos passaram por importantes mudanças nesta década. Em 1934 é promulgado o “Código das Águas”, por meio do Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934, em que Getúlio Vargas centralizou para o governo federal a regulamentação, utilização e controle dos cursos fluviais e quedas d’água. Desde a primeira década do século XX tramitava no congresso projeto para sua efetivação, porém, os interesses de grupos privados sempre retardaram a sua possível criação (MARTIN, 2016). Outra mudança foi a instalação do Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), em 1939, que ampliou as possibilidades de estabelecimento público no setor, até então centralizado na iniciativa privada. Logo, observa-se que a realização de tal empreita gravitada em um campo de disputas entre o setor público e privado.
Assim, conjuntamente com a participação inicial de oito sócios, Newton Carvalho buscou adquirir tal autorização. Segundo Erton Carvalho (2011), depois de inúmeras visitas à capital, São Luiz, sem sucesso, somente veio a conseguir autorização por intervenção do arcebispo do Maranhão, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta. Nasceria assim em 11 de julho de 1939 a Empresa Hidroelétrica Itapecuru Ltda, a primeira em toda região Norte e segunda do Nordeste. Possuidora de um capital inicial de 350 contos de reis e agora com um total de quatorze sócios o empreendimento seguiu os trâmites para sua construção, conectando-se com o Rio de Janeiro para compra dos equipamentos. O contato com a capital nacional já vinha ocorrendo desde 1938, quando Newton buscou junto a empresa Siemens a compra dos equipamentos.
Mas os caminhos da história, por vezes, são tortuosos. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial os acordos firmados com a empresa alemã não puderam ser realizados, tendo que grande parte de seu maquinário ser montado no Brasil. Por isso, após o fatídico encarecimento dos custos e realizada a compra deu início a uma “epopeia” para chegar até o local do empreendimento: saindo do Rio de Janeiro, os equipamentos foram até a cidade de Belém por via marítima, desembocando pelo rio Tocantins até a cidade de Carolina. Neste entremeio a pluralidade de obstáculos, com as quedas de Itaboca, atualmente na hidrelétrica de Tucuruí, mereceriam um capítulo a parte que, somadas ao trajeto entre o rio Tocantins e o local do empreendimento, narram todas as adversidades que marcam o ineditismo de tal empreita na porção norte de nosso país.
Autorizada ao funcionamento e sendo inaugurada oficialmente em novembro de 1941, a usina acabou tendo um curto destino em atividade. Com a ajuda do montante arrecadado por Newton Carvalho e seus sócios, ele mesmo elaborou a planta de distribuição e implementou a rede de iluminação pública e residencial. Porém, em 1944, o descontentamento pela alta inadimplência da população e do poder municipal somado aos meandros da política energética nacional fizeram com que seu idealizador abandonasse o projeto em atividade, dirigindo-se para o estado vizinho, Goiás. Nesta nova empreita buscou dar continuidade aos projetos pela eletrificação, agora nas cidades de Anicuns e Santa Cruz de Goiás. Mas este compõe um capítulo à parte desta história…
Conhecida atualmente como “Paraíso das águas” por seu rico complexo de rios e quedas d’água, a cidade de Carolina ainda possui as “ruínas” deste empreendimento, que contrastam diretamente com o cenário turístico produzido na região, uma das principais receitas deste município. Com o desenvolvimento de grandes projetos hidrelétricos, como a UHE Estreito, no rio Tocantins, a antiga e histórica usina ainda procura seu lugar, em meio as transformações da paisagem que os grandes projetos tendem a produzir.
Para quem procura memórias desta importante, mas pouca explorada história, o Museu Histórico de Carolina proporciona a seus visitante uma rica e acolhida experiência, traduzida como epopeia, mas que, como em muitos lugares do Brasil, ainda procura sua identidade, seu pertencimento nos labirintos de nossa história presente…
Referências:
BRANCO, Catullo. Energia elétrica e capital estrangeiro no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.
MAGALHÃES, Gildo. Força e Luz: eletricidade e modernização na República Velha. São Paulo: UNESP/FAPESP, 2000.
MARANHÃO, Rossini Gonçalves. Carolina, meu mundo perdido. Rio de Janeiro, 1971.
MARTIN, Andrey. M. Produzir energia, (pro) mover o progresso: o Complexo Hidrelétrico Urubupungá e os caminhos do setor energético. (Tese de doutorado em História) — Unesp, 2016, 351 p.
MELLO, Flavio M. (Coord.) A história das barragens no Brasil: Séculos XIX, XX e XXI. cinquenta anos do Comitê Brasileiro de Barragens. Rio de Janeiro: CBDB, 2011.
MEMÓRIA Técnica da Usina de Itapecuruzinho. Relatório técnico, 1939.
PINHEIRO, Raimundo Nonato. A Coluna Prestes no Maranhão. São Luís: UEMA, 2005.
SEGER, Sônia. Marcos constitutivos do setor elétrico brasileiro. In: MAGALHÃES, Gildo (Org). História e Energia: Memória, informação e sociedade. São Paulo: Alameda, 2012.