UTOPIAS E DISTOPIAS

O pensador humanista Thomas Morus descreveu no início do século XVI uma ilha chamada Utopia onde existiria a sociedade ideal, este termo, a princípio irônico, tornou-se quase sinônimo de perfeição. Na modernidade surgiu novo conceito em oposição àquela ideia, a distopia, um segmento literário soturno da ficção científica; seus autores previram verdadeiras hecatombes tecnológicas e políticas para nossa espécie, e o assustador é a relativa precisão das previsões:

Em “Admirável Mundo Novo”, publicado em 1932, Aldous Huxley imagina um futuro em que a engenharia genética determinaria o lugar social de cada indivíduo ainda em embrião, e também a conformidade de todos com sua sorte/azar temperada pelo uso de uma droga alienante, o “Soma”. Não chegamos a tanto (ainda?).
Ray Bradbury, descreve em Fahrenheit 451 (a temperatura em que o papel queima) um tempo terrível. Na publicação, de 1953, os livros foram proibidos, cabendo a uma das corporações mais respeitadas e amadas de todas as sociedades, os bombeiros, a tarefa de queima-los.

Anthony Burgess, em “Laranja Mecânica” de 1962, prevê uma sociedade inglesa futura convivendo com a violência descontrolada de adolescentes sem perspectivas de inclusão, só realmente notada pelo governo quando a oposição a usa como palanque. A partir daí buscam-se panaceias supostamente humanitárias de “cura”, submetendo o líder de um grupo violento a lavagem cerebral, com consequências trágicas. Estamos quase lá.

Talvez a visão mais sombria e pessimista tenha sido a de George Orwell, em “1984”. Publicado em 1948, no rescaldo da Segunda Guerra e em plena Guerra Fria, com os crimes de todas as guerras vindo à tona, descreve o mundo dividido em três grandes blocos perpetuamente em guerra: periodicamente dois deles se aliam contra o terceiro, mas esta aliança muda, o inimigo de um dia é o amigo de outro e vice-versa. O governo é totalitário, o Estado é personificado no “Big Brother”, o nome do programa de TV não é coincidência. Em todos os lugares públicos e nas residências estão obrigatoriamente instaladas “telas”, que divulgam as mensagens governamentais e captam eventualmente imagens e áudios ambientes, ninguém pode ter certeza de não estar sendo filmado em algum momento.

Ilustração de Tomek Sętowski

O protagonista trabalha no Ministério da Verdade, que tem a função justamente de apagá-la, notícias elogiando algum aliado que deixou de sê-lo são eliminadas ou modificadas, assim como fotografias de personagens que caíram em desgraça, até mesmo palavras podem ser alteradas ou suprimidas se não cumprirem mais sua função política. Há uma semelhança perturbadora com o principal jornal soviético, “Pravda” (verdade em russo), considerado até mesmo por alguns comunistas como um dos jornais mais distantes da verdade; são notórios os casos de obliteração de fotos de desafetos do ditador que não o eram em passado recente.

Orwell talvez não imaginasse o quão próximo de seu futuro imaginado seria o futuro real, não há lugar hoje onde não estejamos sob foco de alguma câmera, políticos negam o que acabaram de dizer em rede nacional e na frente de milhões de testemunhas, o novo Grande Irmão são as redes sociais e o politicamente correto que pretendem arbitrar a vida e até a morte de todos nós. O sentido das palavras muda de acordo com modas de momento.

Da inocência traída nasce o cinismo. Houve tempo em que se acreditava em praticamente tudo, afinal pensava-se que os governos e as empresas não mentiriam para o público, e a palavra escrita ou televisionada tinha foros de verdade. Com as muitas desilusões, destas crenças quase infantis passou-se à descrença generalizada, talvez a credibilidade quase alucinada das fake news derive disto – para não acreditar no que parece razoável as pessoas passam a acreditar no que parece absurdo, a epifania das teorias de conspiração.

Assim se criam as novas lideranças populares, os “influenciadores digitais” com milhões de seguidores, cujas mensagens se forem realmente analisadas nada mais significam do que o velho “paca, tatu, cotia não”, manifesto de exclusão que, a rigor, não quer dizer absolutamente nada. Espíritos simples querem verdades simples, verdades simples estão quase sempre próximas demais da mentira. As distopias são a expressão literária de nosso tempo, em que a utopia passou a ser ingenuidade.

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É educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil – UniBrasil, e assina a Coluna Educação & Cotidiano.

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