ICONOGRAFIA DO BARROCO MINEIRO: REINTERPRETAÇÃO EM CONGONHAS DO CAMPO.

Quais as fontes de inspiração para os artistas do Barroco Mineiro? De onde surgiram tantos desenhos, pinturas e esculturas com relativa similaridade entre si? Estes são questionamentos legítimos que podem surgir a partir de um olhar mais atento à produção colonial portuguesa, mais especificamente na região de Minas Gerais do século XVIII.

 

A questão da produção iconográfica no movimento barroco deve ser pensada como parte de um contexto maior, imbuído de um forte sentimento social de reação à reforma protestante: a contrarreforma. Neste contexto, a igreja católica ao se ver numa situação inédita de perda de fiéis se articula para conter a intensa evasão, num momento que que o protestantismo parecia fazer mais sentido.

Como medida, a igreja católica propõe através do concílio de Trento (1563) uma série de medidas para a padronização de ações, inclusive ritualísticas, e dentre elas elege as artes visuais como ferramenta de catequização. Deve-se ter em mente que naquele contexto a população era iletrada, analfabeta, assim, a melhor forma de comunicação e catequização em massa seriam as imagens, dramáticas, atraentes e capazes de transmitir mensagens claras.  É sob estas condições que o concílio decretou, na Sessão XXV de 3 e 4 de dezembro de 1563 que:

Enseñen también diligentemente los obispos que por medio de las historias de los misterios de nuestra redención, representadas en pinturas u otras reproducciones, se instruye y confirma el pueblo en el recuerdo y culto constante de los artículos de la fe; aparte de que de todas las sagradas imágenes se percibe grande fruto, no solo porque recuerdan al pueblo los beneficios e dones que le han sido concedidos por Cristo, sino también porque se ponen ante los ojos de los fieles los milagros que obra Dios (…).  (BOHRER, 2007, P.28)

Alia-se a este aspecto cultural a crescente mundialização daquele período, potencializada por dois aspectos principais: a expansão da imprensa, que no século XVII e  XVIII já produzia gravuras de grande qualidade, especialmente reproduzindo obras de grandes pintores barrocos, em especial as obras de Rubens ( 1577-1640) , e um segundo aspecto que contribuiu para essa mundialização foi a expansão marítima, que além de potencializar as trocas comerciais entre diversos países, possibilitou a colonização e exploração de terras distantes, dentre elas Minas Gerais.

Dentro dessa dinâmica de intensa circularidade cultural que se dava sob forte influência da mentalidade barroca teocêntrica, as gravuras produzidas na Europa chegavam às colônias ultramarinas, como foi apontado no estudo pioneiro publicado por Hannah Levy “Modelos Europeus na Pintura colonial” que ainda na década de 1940 já demonstrava a derivação direta de algumas pinturas mineiras de impressos europeus.

O pesquisador Alex Bohrer em sua dissertação “Os Diálogos de Fênix: Fontes Iconográficas, Mecenato e Circularidade no Barroco Mineiro” (2007) demonstra o uso recorrente dessas gravuras vindas nos missais europeus do século XVIII como fontes a serem reinterpretadas pelos artistas locais. Dentre eles, pode-se citar o pioneiro Antônio Rodrigues Bello, eu seu célebre nártex em Cachoeira do Campo com as cenas retratando a queda do homem e a expulsão do paraíso, o mais conhecido e celebrado dos pintores mineiros, o pintor Marianense mestre Athayde, que por diversas vezes se utilizou de fontes europeias, como por exemplo nas cenas da ascensão de cristo e na cena em que Abraão adora os três anjos.

Neste texto, a atenção se volta para outro grande pintor colonial mineiro, coincidentemente, também Marianense: o pintor João Nepomuceno Correia e Castro, responsável por grande parte das pinturas existentes no interior da igreja de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo – MG, distante cerca de 80 KM de Mariana, onde se localizam também os doze profetas e os passos da paixão, obras primas do Aleijadinho. Classificadas por Germain Bazin como o maior conjunto escultórico fora da Europa.

No interior dessa igreja, a decoração predominante é em estilo rococó, mais leve e alegre que o barroco.  Além dos retábulos em estilo joanino, da bela trama arquitetônica no forro da nave, existe na decoração das paredes uma série de pinturas retratando paisagens e trechos do novo testamento, uma chama atenção por sua peculiaridade: a tentação de Cristo no deserto. Neste trecho da bíblia, o diabo tenta o faminto cristo a transformar pedras em pão, conforme demonstrado na pintura abaixo:

Tentação de Cristo no deserto. João Nepomuceno Correia e Castro – 1777  – 1787

foto: Tiago Cunha

Interessante notar na cena a postura negativa do Cristo, com a mão direita erguida em negativa, e a mão esquerda apontando para baixo, enquanto diabo tem o aspecto antropomórfico, um homem quase comum segurando uma pedra, a não ser pelas pontiagudas orelhas e pelo pé bestial.

É justamente esse pé que chamou minha atenção desde a primeira vez que visualizei tal pintura, e este pé é também o primeiro indício que demonstra a conexão desta pintura feita no final do século XVIII no interior de Minas Gerais com uma gravura, bem mais antiga, advinda da Europa.

Lucas van Leyden (Dutch, 1494-1533): The Temptation of Christ. Original engraving, 1518

Disponível em:  https://br.pinterest.com/pin/52213676914157948/

Nesta gravura holandesa feita pelo gravador Lucas van Leyden em 1518, podemos notar a mesma cena da tentação de cristo no deserto, deserto que aliás não apresenta paisagens desérticas neste caso nem no caso mineiro. Ao fundo se nota uma paisagem de ares europeus, com a presença de vegetação e castelos, enquanto no penhasco à esquerda nota-se duas pequenas figuras, provavelmente o restante do trecho bíblico, onde o diabo tenta o Cristo a se jogar do penhasco e o apresenta os inúmeros reinos que poderia vir a ter. Este aspecto, porém é ignorado, provavelmente de forma arbitrária na pintura de Minas Gerais.

Apesar das diferenças entre ambas, é preciso que nossa atenção se volte para as semelhanças, que são muitas, a posição das mãos do Cristo, novamente a direita levantada em negativa e a esquerda com o dedo apontando para baixo. E novamente, o pé bestial. Projetado à frente do corpo, com dedos grossos e garras salientes, bastante semelhante ao pé retratado em Congonhas.

Parece improvável pensar que artistas separados por séculos e por um oceano tenham imaginado cenas com tamanha semelhança a partir da leitura de um trecho bíblico que nem sequer menciona a aparência física do diabo, muito mais provável, porém é que esta gravura de Lucas van Leyden tenha chegado às mãos de João Nepomuceno, provavelmente através de uma gravura estampada em um dos muitos missais que chegavam às colônias portuguesas.

Neste sentido, cabe destacar aqui a conexão próxima que Minas Gerais tinha durante o século XVIII com a Europa, o que acabou por criar uma interessante analogia: assim como os artistas mineiros reinterpretavam as fontes iconográficas, preservando o que era essencial à sua leitura e a transmissão da mensagem  que elas continham, o mesmo aconteceu com a cultura portuguesa que supostamente foi importada para as colônias, foi reinterpretada e adaptada, criando como resultado uma nova cultura, híbrida, entre a tradição europeia e a originalidade mineira.

 

BOHRER. A. F. Os Diálogos de Fênix: Fontes Iconográficas, Mecenato e Circularidade no Barroco Mineiro. 2007. (Dissertação) Mestrado em História Social da Cultura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2007.

LEVY. Hannah. Modelos Europeus na Pintura colonial. Revista do SPHAN, Rio de Janeiro, V. 4, 1940.

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Tiago Cunha é Arquiteto e Urbanista pelo Centro de ensino Superior de Juiz de Fora (2016) e Especialista em artes visuais (2017). Interessado por temas como preservação do patrimônio cultural e pelas relações raciais no campo da Arquitetura. Atualmente Leciona na faculdade Doctum de Caratinga, onde ministra componentes curriculares como projeto urbano, Teoria do paisagismo e teoria da Arquitetura e Urbanismo.

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