Ensaios, crítica, crônicas e resenhas.

Para saberes o meu lugar

Descobri, já tarde, com os pés aninhados, com os dedos plantados na areia fria e a barra da calça enrolada, feito uma boia, um flutuador ao redor dos tornozelos, impedindo as juntas e os pelos de descobrirem o mundo, que a voz, o som que vinha de dentro, era o eco transformado pelo cunhal, o movimento refletido de outras línguas sobre o espelho turvo, sobre o fundo cavernoso de voltas e voltas a perder, de corredores como galhos a suster o pendão sempre desconhecido de um cômodo novo, o pendão no talo ainda frágil de uma maçaneta por girar, de uma tramela posta a prego na folha cerrada de uma porta escura, de madeira viva e nodosa, aguardando, sem pressa, um visitante, um forasteiro sem nome. Descobri, depois do tempo, que o destino é a história de um marinheiro valente contada aos meninos de primeira viagem, que o barco, mesmo no porto, está à deriva, que toda âncora é um embuste, que todo caminho é mais um ramalhete, mais um arranjo com as flores de sempre, adornado com fitas e laços de variada cor e largura diversa.

As mãos folgavam,

de nó em nó,

a corda;

naquela manhã, o mundo crescia, murava de terra e sombra o sítio polido que, depois da superfície cuidada, escondia o meu desamparo, a última chance de saber, com a ponta descoberta dos dedos, com os lábios trêmulos, a verdade da sua presença, da parede, sempre terna, que guardava a sua morada, dizendo, num repente sem murmúrio: aqui, criatura. Eu larguei um bocado daquele chão sobre a tampa e não deixei que nada escorresse e cada grão chegou como se batesse à porta e, com os olhos firmes, eu esperei. À beira daquele rasgão que o solo erguido formara, eu esperei a sua resposta:

aqui, criatura.

Eu esperei você, do outro lado, dizer: estrupício. Eu esperei a sua risada de tarde amena, a gargalhada miúda, mas estridente, a luz já cansada do seu sorriso amainado. Eu esperei a sua reprimenda doce sobre o meu feitio, a sua lição zelosa de mãe adiada, de cuidadora solícita.

E foi ali,

no grito quase oco do silêncio,

que a ausência, num berro cavado, anunciou a sua partida e, no vão que se abriu por dentro, sussurrou que nunca mais você – que nunca mais a sua maneira descuidada de andar pela casa, de dar com as quinas dos móveis enquanto caminhava sem rumo, que nunca mais a sua fala ligeira atravessando por cima das páginas dos livros, abrindo lugar, a cortes baixos, pela vegetação assombrada, convocando, no interior da minha escuta, as aves noturnas e os arbustos rasteiros para um motim; nunca mais o cheiro duro do café antecipando a sua chegada, o aroma suave de macadâmia; nunca mais você no jardim, tomando nota, você, à beira de mim, fazendo crer, por amor ou piedade, que era eu o sustentáculo, o alicerce, o esteio. Nunca mais.

E bastou aquele vago,

aquele recado surdo e feroz,

para que as montanhas todas, num clarão, como numa fotografia que, retomando o movimento, regressasse à corrente do mundo, despencassem, avançando violentas umas contra as outras, ondas indômitas, juvenis, coléricas. Bastou aquele soluço, um espasmo breve, para que eu, ao pé da cruz, plantasse o meu tamanho vergado,

um rebento,

muda, de raiz ao tempo, arqueada sob o próprio peso, um menino inaugurado na forma reduzida de um homem que desce, em desespero, com os joelhos ao piso, de um homem indeciso que implora, confuso e descrente, por uma resposta, por uma palavra que desvele a pergunta sem rosto, esse vulto que caminha por detrás das convenções, das fábulas costumeiras, das cantigas que vestem de ouro a nudez da pedra, da formas escura e úmida que segura, a golpes sucessivos, a fúria do mar em luta.

A falta fez morada no meu desespero.

Nenhum anjo se compadeceu, nenhum deus se apiedou e o nada somou abandono à vastidão desabitada, quando, no campo agreste do desalento, um deserto ganhava corpo, inundando de angústia e medo cada fresta nova que o abalo estreava no monumento já gasto da minha força, do meu empenho rareando, da minha vontade em mingua.

Assim nascem os demônios,

do minério escuro depois de talhar o chão, do fosso que o tropeço desata, que o deslize, repentino, cava, destampando a matéria flexível, o ferro coralino, encarnado, o torrão inflamado pelo fogo da consciência, aberto pelo martelo dos dias sobre a bigorna do corpo. Assim, eles ganham forma, feitio, gesto. Criaturas faceiras, elegantes, versadas – tão traiçoeiras e escorregadias, tão atraentes e, de tantas maneiras, especulares, assombradas, velando de perto, com as patas em prontidão e os ouvidos colados à ombreira, o momento exato da concepção.

Eu, que com tanto zelo conservava o torso branco, o tronco, não raro, de um amarelado sutil, breve, tímido, quase outonal, não sabia que, ao negar a rasura, negava o ânimo, a vida, como um pai cheio de esmero e devoção que atrofiasse as pernas dos filhos por sempre carregá-los no colo, feito um pastor estremado, guardando as ovelhas no reduto limitado da própria habitação, para que não incitassem, nos lobos, a vontade. Assim eu recolhia, sob as penas do meu esforço, a juventude dos tomos, a maneira juvenil e o perfume característico do primeiro nascimento. Foi por isso que escolhi, sem sobressaltos, aquele canto e

deitei fogo na estante inteira e comecei de lá,

da biblioteca,

o parto luminoso, o nascimento da estrela que era a nossa casa florindo, a nossa casa incendiada, acesa na noite imensa, um astro sem par, sem constelação, clareando, na distância, o toldo negro das horas mais longínquas, das horas postas em sossego. Depois, tomado por uma estranha alegria, por uma euforia quase infantil, selvagem, assisti às últimas pétalas que desabrochavam. Nos estalos, a estação seguinte, alardeando a calmaria, assegurava uma paisagem diferente e aquele sol, cansado de arder, começou, de pouco, a desabar, desabrigando a luz e tudo o que circundava, tudo o que, tendo gravidade própria, orbitava em torno das nossas coisas. Aquele dia feito à mão, num suspiro prolongado, foi encolhendo até se tornar um lume tímido entre os restos atulhados dum negrume denso e portentoso.

Vão dizer que fiquei louco,

Vão dizer, quando passarem pelos escombros, que fiquei louco e que, alucinado, ateei fogo ao que sobrou de nós. Ele ficou louco e meteu fogo em tudo! Vão dizer.

Talvez,

não estejam errados,

mas qualquer bicho de casa diria, pouco antes de ser abandonado, que a liberdade é uma doença e só quem passou a madrugada sem medir, mordiscando a penumbra, o abismo derramado sobre a pele da terra, sabe o peso de carregar, gestando, depois da violação,

um relâmpago no útero.

Só quem ouviu, depois do crepúsculo consumado, a melopeia silente do desarrimo saberá reconhecer, na brutalidade quase convulsiva dos movimentos, os passos orquestrados de uma dança viva.

 

Agora, fico aqui

com os filhos que nunca tivemos e os netos que nunca terei

com os gatos que não sobreviveram à largura dos nossos anos e as roupas

que ainda são as mesmas de antes

as mesmas que cobriram, sem enfeites, a minha vontade cega, o meu desvio, e o ponto final pendulando acima da sua despedida, tencionando, em cada passagem, a infinitude da queda, o estrondo ininterrupto da separação.

 

Escrevo, agora,

com a mesma caneta que você trazia no bolso,

nas costas da certidão que assegura o seu desaparecimento, como quem inaugura animais obscuros numa planície amanhecida, numa paisagem iluminada, para desenhar o vazio que, posto em evidência, vira fundo, para mostrar o que só aparece à margem dos olhos, o que, às vezes, com afinco e sorte, fica encadeado entre a mancha gráfica e a intensão.

Estou quase sem espaço,

economizo, diminuo a letra, o intervalo entre os riscos, a prolongamento das hastes, adiando a borda, porque sei – agora sei, porque, já tarde, descobri – que, onde a folha termina, o mundo começa e você não está mais lá. Você nunca mais vai estar lá e mesmo a sua lembrança, a sua voz recriada, os seus trejeitos encarnados numa figura armada de sonho e saudade, é uma evidência daquele sumiço irrevogável, da curva sem dobra que a sua marcha fez num tapa, de repente. Despois do tempo, compreendi, mesclando tristeza e alívio no retumbar sonoro da pancada, que o marinheiro valente da história jamais zarpou de porto algum, que os barcos todos, mesmo no mar, mesmo cortando, a navalhadas, o rosto bravio do azul, estão atracados, estão presos ao ardil das âncoras, como as crianças, cheias de coragem, imaginando aventuras na segurança das vagas imóveis num fotograma, num recorte de revista ou num outdoor. Compreendi, bebendo, feito um naufrago, da privação, que quase tudo é conversa, quase tudo é invenção e boato, que as explicações e motivos, razões e desculpas, causas e lamentos são, quase sempre, bandagens estampadas sobre o talho, faixas floridas, feitas de linho, com mais ou menos qualidade, ou de um trapo qualquer, sobre a carne dilacerada; tatuagens que ilustram, na superfície da cicatriz, um desenho alentador e revigorante, um consolo infame para o que não tem recurso.

Agora, já na orla,

na ponta mais extrema,

com uma das mãos cerradas – os dedos cravados na palma, torcidos, de nó em nó, para dentro – e a outra sufocando as sílabas até o limite, digo adeus como se te ouvisse mais uma vez, como se, mais uma vez, você, na zanga meiga de sempre, ameaçando uma ofensa que nunca vinga, muito garbosa e cheia de contento, dissesse:

Acorda, criatura!

 

O menino morto

Que dentro daquela caixa de esponjas, dentro daquela caixa trazida por um estranho, fechada com fita adesiva, o corpo miúdo, desabitado, carregava duas infâncias – a primeira, interrompida, desmanchada do choro, do lamento fresco tantas vezes ensaiado pelos ouvidos da mãe; a segunda, prolongada, como um lençol antigo, desbotado, um sudário revestido de retalhos e quadrados coloridos, de remendos bem feitos sobre furos e rasgões.

Éverton Siqueira é estudante de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo e estagiário do Curso de Educação em Direitos Humanos da Universidade Federal do ABC (UFABC), além de colaborar, como editor assistente, nas publicações "Revista Contemporâneos" e "Revista Contemporartes".

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