Macunaíma nas malhas da civilização (parte II)

Mário de Andrade, além de se destacar como poeta, artista, escritor, músico, crítico literário, destacou-se também pela produção epistolar que manteve ao logo de sua vida com poetas, amigos, políticos, artistas plásticos etc. Abordando questões literárias, econômicas e políticas, encontramos, também, nas missivas, assuntos pessoais, uma vez que “o seu caráter, a princípio privado, permitia a exposição mais confortável de ideias e opiniões” (MACHADO, 2012, p.10).
Dentre os assuntos das epístolas, destacamos trechos nos quais Mário de Andrade relata sua sociabilidade nas ruas da cidade paulistana que passavam por um processo de modernização acelerado e, por meio dessa experiência, o narrador e eu-lírico das obras marioandradianas consegue relevar o vivido.
Mário Raul de Moraes Andrade, escritor atento à sua cidade e, ao mesmo, tempo um habitante desse espaço urbano, nasceu em 9 de outubro de 1893, na urbe paulistana, onde passou sua infância, adolescência e maturidade, presenciando a mudança de uma cidade caracteristicamente agrícola para uma cidade grande e moderna, fonte de inspiração de sua obra modernista. Dessa forma, inserido nesse espaço específico, Mário de Andrade foi um dos indivíduos que viveu, sentiu, expressou e relatou a modernização do espaço urbano, atribuindo-lhe sentidos e significações que estão presentes em muitas de suas obras literárias, assim como nas missivas que escreveu ao longo de sua vida.
Na Carta para Icamiabas, o herói de nossa gente, o qual se mostrou perplexo diante do modo de vida de uma cidade eminentemente em processo de modernização, registra suas sensações. Dentre as descrições feitas, como o comportamento diferente das moças da cidade e das cunhas, as várias formas existentes de linguagem, costumes alimentares, a imigração; destacamos as considerações feitas por Macunaíma sobre o valor do dinheiro no espaço urbano:
O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. (ANDRADE, 2004, p.72).

Denominado, também, pelo herói, como “vil metal”, Macunaíma refere-se ao dinheiro como objeto essencial para sobrevivência dos sujeitos no espaço urbano capitalista. Por esse motivo, o herói, no fim da correspondência, solicita, às senhoras Amazonas, o envio de frutos, que seriam convertidos em dinheiro, para concluir seu objetivo na cidade de São Paulo: “por pouco o vosso abstémio Imperador se contenta; si não puderdes enviar duzentas igarias cheias de bagos de cacau, mandai, cem, ou mesmo cinquenta” (ANDRADE, 2004, p.81).

Semelhante a essa situação, Mário de Andrade, em algumas cartas que escreveu para destinatários diferentes, abordou inúmeros resultados nocivos causados pelo capitalismo. Dentre eles, a abordagem da função do dinheiro é recorrente, pois confessando viver em situação financeira precária, Mário escreve aos amigos desculpando-se de suas dívidas: “Querida Anita, devo-te ainda os trezentos mil-réis!!! Perdoa e espera mais um pouco” (ANDRADE, 1989, p. 74).

Já em uma correspondência enviada a Henriqueta Lisboa, Mário se apresentou como sujeito preso nas malhas das incorporações sociais:
Nada me seria mais fácil do que viver com 500$000 desde que levasse vida de 500$000. Mas na situação em que me acho ganho dois contos e fico levando vida de quem ganha quatro contos, é absurdo. E não posso conciliar as coisas, porque a conciliação não depende de mim! É estupidíssimo, me fatiga, me irrita, me encoleriza.

E ainda o funcionalismo entra com exigências novas que eu não estou disposto a aceitar… Enfim uma vida de bravura, cheia de malabarismos e falsificações. E o pior é que tenho consciência de que tudo se arranjava fácil, se não fosse o “pudor do mundo”, as obrigações sociais, o compromisso de não fazer uma Mãe sofrer. (ANDRADE, 2010, p. 128).

Percebe-se, por meio dessas palavras, que o sujeito habitante da cidade depende diretamente do dinheiro para realizar suas necessidades mais vitais. Nesse sentido, na carta para Icamiabas, Macunaíma, ao pedir matéria-prima que lhe rendesse capital, demonstra a representação do dinheiro em São Paulo, ou seja, nas sociedades “civilizadas”.
De acordo com Georg Simmel, o dinheiro é um dos principais símbolos da modernidade. É um meio de troca universal capaz de acentuar a individualidade do sujeito e das relações humanas e pode, ao mesmo tempo, oferecer autonomia e/ou independência, ou seja, seu surgimento proliferou malefícios e benefícios na vida moderna, como explicou Simmel (1998) em O dinheiro na cultura moderna. Assim, o dinheiro é o motivador do homem moderno, pois, além de ser indispensável para sua sobrevivência, possibilita realizar seus mais variados desejos, proporcionando-lhe uma gama de sentimentos como satisfação pessoal e felicidade. Por outro lado, o dinheiro é o causador das inúmeras intrigas sociais, citadas diversas vezes nas epistolas mariondradianas, pelo fato de ser “o mais assustador dos niveladores” (SIMMEL, 1979, p.16).
Ao possuí-lo, Macunaíma poderia concretizar seus desejos. Dentre eles, brincar com as cunhas, realizar compras e continuar a busca pela muiraquitã. Durante o período de busca pela pedra, o herói enfrenta situações conflituosas em relação ao dinheiro que possuía: chega a perdê-lo e, mais tarde, em um jogo de bicho, consegue dinheiro usando a feitiçaria de Maanape.
Depois desse acontecimento, Macunaíma retoma sua busca pela muiraquitã e consegue recuperar a pedra. Conquistando seu objetivo, o herói retorna para sua tribo, demonstrando certo saudosismo pela vida agitada dos centros urbanos, levando de lembrança alguns objetos adquiridos na cidade como “o revólver Smith-Wesson, o relógio Patek e o casal de galinha Legorne” (ANDRADE, 2004, p.131).
As percepções transmitidas por Macunaíma a respeito da cidade de São Paulo oscilam entre apontamentos bons e ruins. Esses, além de nos fazer refletir acerca da vida no espaço urbano, nos possibilitam refletir ainda sobre o modo de vida nos diferentes espaços, ou seja, na cidade e na mata virgem.
Raymond Williams, em O campo e a cidade na história e na literatura, realiza um estudo a respeito das representações feitas sobre o campo e cidade na sociedade inglesa pós Revolução Industrial. Nesta obra publicada em 1973, o crítico analisa tais espaços por meio de alguns poemas bucólicos e anti-bucólicos ingleses nos quais a imagem do campo transmite uma ideia de paz e tranquilidade, enquanto a imagem da cidade está associada à mundanidade.
Nos poemas analisados por Williams, o mundo rural é evocado com saudosismo, como um modelo de vida mais benéfico para o ser humano que estava sendo ameaçado pelo advento da modernidade. Em conformidade com o autor, essa concepção surgiu com a cristalização de Roma, momento no qual a cidade tornava-se um organismo independente afastando-se das características da vida rural. Em virtude disso:

Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas, cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples. À cidade associou-se a idéia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação. (WILLIAMS, 2011, p. 11).

Esse contraste entre a vida no campo e na cidade é constantemente representado nas manifestações artísticas e sociais. Na Inglaterra moderna, por exemplo, a passagem da sociedade rural para a industrial foi vista como decadência, como “a verdadeira causa e origem dos nossos problemas e convulsões sociais” (WILLIAMS, 2011, p.165). Retomando o contexto brasileiro, em Macunaíma encontramos alusões à vida na mata-virgem como um espaço isento de valores capitalistas, ou seja, um local onde seria possível viver de forma mais harmoniosa, possibilitando-nos pensar na conceituação do “campo” proposta por Raymond Williams.
Em oposição a esse espaço, encontramos a cidade, que deveria ser símbolo de progresso, mas apresenta-se em Macunaíma como um tipo de comunidade humana responsável pela anulação da boa convivência em sociedade. Assim, o leitor é conduzido a refletir sobre a vida na metrópole em oposição à vida na mata-virgem, uma vez que o narrador problematiza as consequências da modernização do espaço citadino, comparando, muitas vezes, o comportamento humano em ambos espaços.
Em alguns poemas bucólicos, mencionados na obra O campo e a cidade na história e na literatura, a calmaria da vida campestre é preponderante, assim como as relações mais próximas entre os sujeitos. Contudo, o contraste social já era existente e ativo, e começava a ser manifestado nas produções artísticas como nos poemas de Crabbe, nos quais encontramos a denúncia da realidade da vida campesina que é boa para os donos da terra e traiçoeira para os camponeses, pois a distribuição do que a terra produz é desigual e privilegia, apenas, os homens detentores do poder.
Essa realidade, apesar de se tratar do contexto europeu, nos faz pensar no contexto nacional. As matas ocupadas pelas tribos indígenas sofreram processo semelhante mencionado por Raymond Williams. Invadida, explorada e vista como fonte de riqueza para a metrópole, os índios não conseguiriam, por muito tempo, viver sem interferência do “homem branco”.
Nesse sentido, dialogando com as considerações de Raymond Williams, é importante salientar que para ele, na contemporaneidade, a maioria dos estudiosos das Ciências Sociais veem a cidade como representação do capitalismo. Postura com a qual o crítico concorda, com a ressalva de que
possa afirmar também que esse modo de produção teve origem especificamente na economia rural da Inglaterra e lá produziu muito dos efeitos característicos – aumento de produção; reorganização física de um mundo totalmente disponível; deslocamento de comunidades tradicionais; a formação de um resíduo humano que veio a se transformar numa força, o proletariado – que foram posteriormente encontrados, em diversas formas, em cidades e colônias e em todo um sistema internacional. (WILLIAMS, 2011, p.476).

Logo, o surgimento de algumas transformações físicas e sociais abordadas na modernidade são mais antigas, até mesmo, que a ordem capitalista, a qual originou o modo de produção que mais causou modificações no espaço físico e no relacionamento humano. Sendo assim, campo e cidade são espaços sociais que possuem qualidades e defeitos, apesar de estarem associados às significações opostas pré-estabelecidas, tal como o campo enquanto local da natureza e tranquilidade e a cidade como local de desenvolvimento e agitação, como descrito por Mário de Andrade.
Por fim, em Macunaíma existe essa diferença em virtude da ocupação dos espaços e o herói sem nenhum caráter perde sua “pureza” em razão da influência dos homens civilizados e brancos, que eram as máquinas que matavam os próprios homens.

Referências Bibliográficas:

ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2004.

ANDRADE, Mário e LISBOA, Henriqueta. Correspondência Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. Organização, introdução e notas Eneida Maria de Souza. São Paulo: EDUSP, 2010.

____. Mário de Andrade, Cartas a Anita Malfatti. Organização Marta Rossetti Batista. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

BOSI. Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix. 2009.

LAFETÁ, João Luiz. A crítica e o modernismo. São Paulo: Editora 34, 2000.

MACHADO, Marcia Regina Jaschke. O Modernismo dá as cartas: circulação de manuscritos e produção de consensos na correspondência de intelectuais nos anos de 1920. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2012. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-22102012-122149/pt-br.php.

SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: Velho, Otávio Guilherme (org.), O Fenômeno Urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p.11-25.

____. O dinheiro na cultura moderna. In: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold (orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasília: Unb, 1998. p. 109-117.

SOUZA, Gilda de Melo e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 2003.

WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na história e na literatura. Trad. por Paulo Henrique de Britto. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

É doutoranda em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em Letras/Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, graduada em Letras pela mesma instituição. Tem experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: Literatura e Sociedade, Literatura e espaço urbano e poesia brasileira.

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