DAS ALEGORIAS POSSÍVEIS: A EDUCAÇÃO CRÍTICA PARA E PELOS DIREITOS HUMANOS

Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti
Antonio Carlos da Silva
Núcleo de Estudos sobre Direitos Humanos – Universidade Católica do Salvador (UCSAL)

 

Violações cotidianas em um cenário de forte crescimento econômico, não sustentável, contextualizam a distância em engendrar o real Desenvolvimento e desvelar uma agenda imensa para promoção do acesso à justiça e à cidadania frente ao recrudescer da desigualdade e de emergências sociais importantes. Eis um quadro da contemporaneidade brasileira, anunciando necessidades de observar, analisar, interferir e construir instituições e práxis solidária e ética na política.

Apesar do incremento, a partir dos anos 1980, de agenda e ações especificas para e pelos direitos humanos, ainda há muito trabalho a fazer: desde efetivação do marco legal-institucional já existente até o enfrentamento a partir de uma cultura e uma ética pró-direitos humanos – sem olvidar do crescente aumento do déficit fiscal do Estado destinado a garantir o consumo social e, por conseguinte, da consolidação do processo de autofagia do capital que caracterizam a crise da Modernidade. Há que marcar as nuances de um “sonho ético-político da superação da realidade injusta” (FREIRE, 2017, p. 43).

Figura 1 – Citação de Paulo Freire.

Fonte: Disponível em https://medium.com/tend%C3%AAncias-digitais/reinterpretando-a-cultura-no-digital-dd7a695c9df5

O debate atual sobre os Direitos Humanos precisa partir de um questionamento básico que se situa no quadro teórico específico das Ciências Humanas e Sociais: como se configura nosso mundo histórico hoje e que lugar têm aí os direitos humanos? (OLIVEIRA, 2011).

“Educação para os direitos humanos na perspectiva da justiça é certamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da ‘briga’, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. (FREIRE, 2017, p. 99).

Promotores dos direitos humanos alegam, difundem e reafirmam que cada criança tem direito à educação. Esta assertiva baseia-se principalmente em duas premissas: 1) endossar o direito à educação, consolidando que ao receberem educação básica, para todos, suas habilidades sociais e ética serão mais que integradas ao modo de viver e estar em sociedade; 2) apesar do reconhecimento existente da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH, 1948) terão reconhecimento positivo e enfrentarão de outra maneira as realidades onde vivem e circulam. Entretanto, há necessidade de observar – para além do normativo e institucional – as ambientações delineadas entre as esferas pública e privada.

“Não raro os ativistas dos direitos humanos se mostram bastante impacientes […], talvez porque muitos dos que invocam os direitos humanos estejam mais interessados em mudar o mundo do que interpretá-lo – lembrando uma distinção clássica que se tornou famosa com Marx”. (SEN, 2011, p. 391).

Deste modo, nossa reflexão perpassa por questionar os aspectos unilaterais de uma interpretação dos Direitos Humanos sob a égide (apenas) do formalismo jurídico em um mundo regido pelas normas do Mercado e da acumulação do capital. São dimensões, princípios, ações e planos internacionais, produção acadêmica e inúmeros eventos. Isto posto, compreendemos que há uma relação direta da fundamentação conceitual dos Direitos Humanos com a realização de Justiça Social e promoção do real Desenvolvimento, porque, não obstante a ideia de qualquer pessoa, em qualquer rincão deste mundo, possuir direitos básicos que devem ser respeitados, ou seja, a eficácia política em contraposição a supremacia do capital, precisamos estabelecer os Direitos Humanos como imperativos globais por intermédio da culpa organizada e da responsabilidade universal (devir histórico) (ARENDT, 2008).

Tomando como referência todo o processo ocorrido desde os anos 70, pode-se ressaltar que “[…] não existe solução perfeita, mas uma combinação de escolhas e respostas necessariamente limitadas” (Dubet, 2004, p. 543). A ideia de que os “aprendizes” “podem abrir-se ao mundo sem passar pela escola”, afastando uma abordagem de sociabilidade e projetos comuns atinentes ao campo escolar, bem como uma alteração da matriz institucional (baseada na homogeneidade do trabalho educativo). Há que se pensar mais na criatividade, nas potencialidades e no sujeito-predicado, conduzindo para uma formação-educação em prol dos, para e pelos Direitos Humanos. Tal processo também dessacraliza a educação tradicionalmente colocada ao serviço da formação de sujeitos de Razão.

Figura 2 – François Dubet e sua obra

Sem endossar a ideia de uma metanarrativa dos Direitos Humanos, reiteramos que, sob a prevalência das “virtudes do Mercado” (em alusão ao conceito de novilíngua em Orwell), a universalização dos Direitos Humanos somente será possível para além das fronteiras nacionais, restituindo ao cidadão global seu papel e propósito de dirimir as injustiças e transpor esses direitos como força de lei associada à ética pública. A proposição de Carlos Estevão (2012) acerca da nebulosa interpretação do Mercado e da Ágora ao nível dos Direitos Humanos e da Justiça:

“Por outras palavras, no esforço dialógico para expandir, nos tempos de globalização, a democracia comunicativa e a cosmopoliticidade democrática que deve caracterizá-la, caberá à educação apoiar a construção do acordo na conversação entre distintos lugares (…), criando-se uma universalidade ética que “vem de baixo”, mas que é simultaneamente potenciadora do aparecimento de uma esfera pública global” (ESTEVÃO, 2012, p. 264).

Mais do que uma agenda de políticas públicas, uma demonstração de vontade e de possibilidades de justiça social, sugere-se menos intervenções promotoras de uma cultura da paz e mais “[…] incentivo à cultura da não-violência, como processo essencial e promotor de novas atitudes” (GOMES, 2010, p. 104).

“A educação cosmopolita vai precisamente nesta direção, uma vez que favorece a dialogicidade e o ‘universalismo contextualizado”, facilitando o reconhecimento do facto de cada cultura ser potencialmente todas as outras, obrigando, por isso mesmo, à “celebração da raiz humana comum’” (ESTEVÃO, 2012, p. 264).

O que queremos? O que podemos? Através da educação para e pelos Direitos Humanos conhecer, promover e difundir princípios “mínimos” de ordenamento social contemporâneo podem ser desafios utópicos e inalcançáveis. Isso se dará de maneira mais acirrada em tempos incertos; mas, sobretudo, quando os princípios orientadores da educação formal estiverem atrelados à uma lógica de conformidade-conformismo impositiva com o capital.

Figura 3 – Evocação de palavras Educação e Direitos Humanos

Sem direcionar-se por movimentações intensas e pró-ativas para diálogos e intercâmbios conscientes e ampliados, não haverá possibilidade de ir “além do capital”, encontrando caminhos e práticas abrangentes como “a própria vida”. A educação formal e informal não poderá, entrementes, ser emancipadora e realizadora das maiores “expressões de Humanidade”, nas palavras de Ulpiano Bezerra de Meneses (1992).

“Compete à educação crítica, pela pedagogia, pela aprendizagem e pela prática da participação, contribuir para fluidificar comunicacionalmente o poder, para expandir o espaço público, para construir a cosmopoliticidade democrática, a qual exige de cada um de nós que sejamos não apenas cidadãos do mundo, mas, acima de tudo, ‘cidadãos para o mundo’”. (ESTEVÃO, 2012, p. 265).

 

Referências

ARENDT, Hannah. Compreender: fomação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

DUBET, François. O que é uma escola justa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 123, p. 539-555, set./dez. 2004.

ESTEVÃO, Carlos V. Políticas e valores em educação: repensar a educação e a escola pública como um direito. Porto: Humus, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. São Paulo: UNESP, 2017.

GOMES, Celma Borges. A banalização da vida, suas conseqüências e seus condicionantes. Revista de Ciências Médicas e Biológicas, Salvador, v. 3, n. 1, p. 89-107, jul. 2010. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/cmbio/article/view/4414/3272>. Acesso em: 24 maio. 2019.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A história, cativa da memória?: para um mapeamento da memória no campo das ciências sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 34, p. 9-23, 1992.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Direitos humanos no diálogo entre os campos de conhecimento. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 147-149, 2011.

SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Historiadora. Pós-doutorado pela Universidade de Salamanca (CNPq e CAPES, Brasil). Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de León, Espanha. Professora e investigadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, da Universidade Católica de Salvador. Investigadora associada ao Instituto de Sociologia da Universidade do Porto e integrante do Núcleo de Estudos sobre Gênero e Direitos Humanos (NEDH/UCSAL).

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