O TEATRO BRECHTIANO: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE DIREITOS HUMANOS E IDEOLOGIAS COMO FONTE DE VIOLÊNCIA

A história nos provou que ideologias supremacistas se convencem de suas exclusivas verdades, e procuram erradicar os que não coadunam com seus princípios; a alienação do povo massificado é destruidora para o sistema como um todo.

Bertolt Brecht e Walter Benjamin jogando xadrez em Svendborg, Dinamarca, em 1934. (Autor anônimo).

Jonas Marcelo Gonzaga

Cristina Miyuki Hashizume

Se partirmos, caro leitor e leitora, da premissa de que os conhecimentos acumulados em Humanidades são partilhados por meio da Literatura, acreditamos no poder da linguagem e o quão potente pode ser a condução da sociedade ao bem comum, ao bem-viver. Por outro lado, pensando-se os Direitos Humanos como campo da reflexão sobre a vida digna, igualitária e solidária, podemos pensar na literatura como uma importante ferramenta que se contrapõe ao horror da barbárie que, em diferentes momentos da História, se acende em discursos inflamados e ações extremistas fundadas em ideologias que careceram de maiores fundamentações teórico-epistemológicas e práticas para seu reconhecimento. Tais discursos intolerantes explicitam processos e modos de pensar que, fundamentados em valores transitórios da atual sociedade capitalista pós moderna, rompem com valores como solidariedade, empatia, reconhecimento da humanidade alheia e, portanto, buscam justificar “a eliminação de qualquer trato humanizado” em relação à diferença (BUTLER, 2011, p. 13) .
As Artes podem desobstruir todos os canais vitais interrompidos, já que convidam-nos à sensibilização, à criticidade, ao encontro da formação ética. As produções artísticas estão em cena como modo de problematizar práticas intolerantes, como o ódio racial, de gênero, aos moradores de periferia, as leis de mercado que assediam a seguridade social, além do obscurantismo emaranhado ao neoliberalismo “… que diz servir à vida à custa da mortificação da maioria da população do planeta”, conforme Coimbra (2008, p. 89).
A literatura, cujo termo provém do latim litteratura: “arte de escrever bem”, compreendida como texto literário, é engendrada por efeitos emocionais, fincando-se com liberdade nos terrenos míticos e figurados. O potencial metafórico das obras literárias, seja no gênero Lírico (aquele em que o poeta fala por si), Épico (aquele em que o poeta narra) e Dramático (aquele em que o poeta faz aparecer personagens), possui a capacidade de guiar a humanidade à reflexão e às emotividades; as personagens são vitrines e/ou galerias que se deslocam em nossa mente, portando virtudes e vícios. Somos convidados a cotejar as suas ações e a refletir seus reflexos nos bastidores dos nossos próprios pensamentos à luz da ética (PALLOTTINI, 1983, p. 59). Entendemos que a arte não deve ser censurada por seus fundamentos libertários e éticos, quase sempre fundados em propósitos que permitam a expansão da vida, a tolerância e a possibilidade de se expressar livre e esteticamente modos de se pensar a vida mais solidários.
A “arte de escrever bem” se posiciona eticamente a princípios democráticos, de reconhecimento da dignidade da alteridade, em contraposição a ideologias extremistas ou escravagistas. A arte literária “bem escrita” seria, por assim dizer, o compromisso estético vestido de linguagens, com laços que dignificam e valoram a humanidade. Ao “escrever bem”, os autores contribuem revigorando uma compreensão de que os demônios também são sinônimos de pessoas horrivelmente normais, zelosas pelo dever acrítico, destituídas de sua singularidade soberana (ARENDT, 2013). Trazendo essa reflexão para os tempos de hoje, é urgente refletir como posições intolerantes têm fundamentado ações excludentes, de forma sistemática, ou não, permitindo a prática de pequenas barbáries que nos aproximam de momentos históricos dos quais não deveríamos “nunca mais” voltar.
O jogo entre a ficção e a realidade nas narrativas pode render possíveis aprendizagens no campo ético, estético e político, já que na arte vivificada pelas personagens é possível sentir as zonas limítrofes das fragilidades e dos fiapos humanos, abrindo possibilidades para se pensar humanisticamente a alteridade (BUTLER, 2011, p. 32).
A literatura nos apresenta terrenos mais ou menos conhecidos – no universo da criação, as possibilidades se somam ao infinito _o que requer imaginação e ciência, pois buscamos por mais interpretações/compreensões dos saberes; a literatura pode nos levar para além das margens dos conhecimentos e do que a própria História tem nos contado, pois se materializa (também) em personagens cujas humanidades são transtemporais.
A arte dramática, especificamente, revelou dramaturgos universais que “bem escreveram e escrevem” em defesa da dignidade humana, das lutas sociais organizadas, da conscientização de que somos seres políticos, o que nos permite problematizar nossa capacidade de julgamento e decisão sobre o destino da nossa existência, levando-se em conta uma preocupação com a democracia.
O alemão Bertolt Brecht (1898-1956) foi uma importante personalidade, do mundo das artes, comprometida com o destino da civilização; viu seus direitos serem suprimidos, pouco a pouco, com a ascensão do ideário ariano. Em suas encenações – experimentos sociológicos – buscava provocar o público ao exercício crítico em relação às decisões governamentais da época. Acreditando que o analfabetismo político, a apatia desesperançosa e a incapacidade de atuação cidadã eram (e são) prerrogativas pelas quais sistemas políticos totalitaristas se fortaleceriam, se posicionava no sentido de politizar esse debate através da arte.
A história nos provou que ideologias supremacistas se convencem de suas exclusivas verdades, e procuram erradicar os que não coadunam com seus princípios; a alienação do povo massificado é destruidora para o sistema como um todo. A partir do próprio conceito de ideologia podemos compreender melhor esta questão, haja vista ser um discurso cheio de vácuos, propositadamente não passíveis de explicação, sob o risco de explicitar suas próprias contradições. Todo discurso ideológico é fragmentário por defender a visão do grupo que a concebe, por isso sempre será parcial. Maluschke (2004) ao tratar dos vieses ideológicos defende que

O nacional-socialismo alemão, por exemplo, caracterizava-se por uma ideologia tola, estúpida, de
baixíssimo nível intelectual, fixada a algumas ideias absurdas, como, por exemplo, a tese da
superioridade da raça germânica, uma atitude antiliberal dogmática (…) era uma ideologia total
por causa de seu caráter fechado, imperioso, anti-intelectual e dogmático (…) baseado em
princípios estrambóticos, em oposição ao bom senso (MALUSCHKE, 2004 p.40).

Essa visão parcial de mundo, ideológica e excludente foi defendida à população alemã como necessária para o desenvolvimento do país, à época. Como todo discurso ideológico, ele foi construído omitindo-se as intencionalidades menos nobres, como a sede pelo poder, a destruição de vidas humanas, o uso enviezado da ciência. Nesse sentido, a população, principalmente as que apresentavam personalidades autoritárias, se deixaram conduzir por tais discursos, em nome do progresso, da limpeza da raça e de outros avanços prometidos como necessários para a salvação da pátria, num momento difícil pós guerra.
No fim de sua vida, Brecht optou por compreender o seu teatro como dialético, não apenas épico, pois sugeria a provável transformação social, “o homem como realidade em processo” provocado a partir de uma experiência estética teatral, fonte de um “argumento” em prol da liberdade e da pluralidade, que ofertasse uma “multividência” da vida (BRECHT, 1957, p. 23-24).
Teatralmente, tornou-se conhecido também por seu “estranhamento/distanciamento épico” (Verfremdungseffekt) o qual, num dado momento da interpretação, o ator romperia com a quarta parede – a ilusória entre os atores e o espectador – e atuaria, objetivamente, para o público. Seu objetivo era tirar a plateia da passividade, convocando-a à atuação desperta e consciente da sua própria existência. Por detrás dessa prática, preconizava a desejável transformação do mundo aliando o prazer de pensar à fruição estética (RIZZO, 2001, p. 46), numa composição interessante e engajada entre arte e política, em seu sentido mais amplo.
Combatendo a banalização dos direitos humanos e fazendo seu interlocutor pensar conscientemente, Brecht (2012), humanamente, oferta-nos:

Nada É Impossível De Mudar

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.

Formação e cidadania. Fonte: Instagram do artista turco, Ugur Gallen.

 

 

Em suas produções, tal postura problematizadora nos faz pensar sobre as relações humanas, sobre a falsa naturalização das decisões governamentais, que tentam se sustentar como se se tratassem de puras decisões técnicas, sem intencionalidade. Esse trabalho de formação pela arte, direcionado à população, em geral, intenciona uma capacitação, num sentido lato.
A partir da arte de qualidade, o estético tem o potencial de formar as pessoas tocando-lhes pelo afeto: e a partir dele, trazendo questões que sejam necessárias para um posicionamento ético-estético-político necessário para o cidadão numa democracia. Tal posição, mais tolerante com o outro e com a diferença, rejeita discursos vazios e sem lastro com a justiça e respeito ao próximo, esvaziando, a partir da reflexão, qualquer tentativa de falsas verdades “ideológicas” que podem ser a origem de atitudes repressivas e projetos sociais discriminatórios.
E para finalizar, a formação do sujeito de direitos (NOZU, et al, 2014; FOLLONE & RODRIGUES, 2015) e de deveres demanda, atualmente, a gestão das populações privilegiando as políticas de promoção da participação e responsabilidade política dos cidadãos, além de investimentos em seu desenvolvimento, autonomia e liberdade. Esse cenário também é inerente à atuação em educação: o cidadão, hoje, quando afetado e lutando por melhorias da sua condição humana, engaja-se em ações coletivas com vistas a reverter sua condição de vulnerabilidade.

Referências
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
Bertolt Brecht e Walter Benjamin jogando xadrez em Svendborg, Dinamarca, em 1934. (Autor anônimo).
BRECHT, B. Estudos sobre Teatro. Trad. Fiama Hasse Pais Brandão. Lisboa: Editora Portugália, 1957.
________. Poemas: 1913-1956. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2012.
BUTLER, J. Vida precária. Contemporânea. Dossiê Diferenças e Des (Igualdades). n.1, p. 13-33. Jan-Jun, 2011.
COIMBRA, C.M.B.; LOBO, L.F.; NASCIMENTO, M.L.. Por uma invenção ética para os Direitos Humanos. Psicologia Clínica. RIO DE JANEIRO, vol. 20, n. 2, p. 89-102, 2008.
FOLLONE,R.A.& RODRIGUES,R.S. Direito e educação: o caminho para a efetividade dos direitos humanos e da cidadania. In: FINOTTI,L.F.T.; TOMAZ,L.C.L.;
Formação e cidadania. Disponível em: <https://www.instagram.com/ugurgallen/?hl=pt-br> Acesso em: mai. 2019.
TOMAZ,R.A.F.(Orgs.). Educação e interdisciplinaridade: diálogos com a Psicologia, a Filosofia e o Direito. Uberlândia: Composer, 2015.
MALUSCHKE, G. As ideologias como fonte de violência. In: MALUSCHKE, G e HERMANNS, K. (2004). Direitos Humanos e Violência: Desafios da Ciência e da Prática. Fortaleza: Fundação Konrad e Adenauer, 2004.
NOZU, W.C.S.; LONGO, M.P.; BRUNO, M.M.G. Direitos humanos e inclusão: discursos e práticas sociais. Campo Grande, EDUFMS, 2014.
PALLOTTINI, R. Introdução à dramaturgia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
RIZZO, E.P. Ator e estranhamento: Brecht e Stanislavski, segundo Kusnet. São Paulo: SENAC, 2001.

Jonas Marcelo Gonzaga É doutorando no Programa de Pós Graduação em Educação – UMESP; Bacharel em Artes Cênicas e licenciado em Educação Artística (FPA); especialista em Arte (UNESP); pedagogo (UNINOVE). Leciona Artes na Pós-Graduação (UMESP) e atua há 8 anos na rede estadual do Estado de São Paulo. Autor de “O Educador Ironista e a sua Arte”, e de “O Despertar do Ironista”, livro de poesias. Em 2019 publicou em junho “O Teatro Ironista – Vidas Encenadas”, obra lírica que liga o prosaico à vida poética. Email: jonasmarceloator@gmail.com.

 

 

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Professora do Programa Strictu Sensu (M/D) em Educação- UMESP e do curso de Psicologia. Mestre (2003) e Doutora (2010) em Psicologia Escolar (USP). Desenvolve pesquisas focando educação, saúde e Direitos Humanos. É co-organizadora dos livros “Formação de Pedagogos e Cotidiano Escolar” (2009); Educação e Direitos Humanos: no chão da escola (EDUFABC, 2017); “Trabalho docente e precarização nas relações laborais na educação” (APPRIS,2018) e livros paradidáticos em Educação e Direitos Humanos (EDUFABC, 2019/2020). Autora de artigos em revistas indexadas em Educação e Interdisciplinar, além de nove de capítulos de livros na área de Psicologia e Educação. cristina.mhashizume@gmail.com

2 Comments

  1. Hamilton de Oliveira Telles Junior disse:

    O egoísmo tem se mostrado presente. A crença de que uma máquina substitua os sentimentos humanos é o derradeiro ataque a humanidade. As artes além de ensinar propõe humanizar e é o que precisamos.
    Excelente trabalho. Parabéns

    • JONAS MARCELO GONZAGA disse:

      Oi, Hamilton! Concordo, querido! Desejamos mais Artes em nossa vida, mais partilhas, mais solidariedades, mais consciências! O mundo pode ser melhor… Não conseguimos compreender como o egoísmo ainda pode permitir crianças abandonadas pelas ruas, crianças morrendo de fome… As discrepâncias são angustiantes! Façamos a nossa parte sempre! Abraços!

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