Andrius Estevam Noronha
A participação política da elite de Santa Cruz do Sul até a proclamação da República sempre foi problemática. Mesmo com o crescimento econômico da vila e a emergência de uma elite comercial e industrial, esse segmento esbarrava no obstáculo religioso para consolidar sua inserção política. Os empresários protestantes de Santa Cruz do Sul viviam num espaço local com maioria católica, uma média de 55% de católicos para 45% de protestantes, pouca variação, inseridos num espaço regional e nacional com mais de 90% da população católica[1]. Para Krause (2002, p. 175), “os imigrantes e colonos alemães filiados à religião luterana, em especial no período imperial, eram vistos como um perigo à fé católica professada pelo estado”. Nesse contexto intensificou-se o engajamento dos imigrantes alemães protestantes para ampliar seu espaço de atuação no campo político. Os evangélicos das regiões de colonização encontraram no Partido Liberal alguns políticos que defendiam os acatólicos, como Gaspar Silveira Martins e Carl von Koseritz.
Krause observou que durante o Império ocorreu uma articulação entre setores do PL e as lideranças políticas e empresariais da cidade. Esse grupo firmou negociações para além da questão religiosa, em razão de interesses em comum. Esse tipo de aliança contribuiu para que fossem fortalecidas as relações entre os integrantes da Loja Lessing, ligados à maçonaria e majoritariamente protestantes com o grupo católico. Esse contato permitiu a projeção do Major Frederico Guilherme Bartholomay (maçom e protestante) à política regional, pois ele foi o primeiro deputado provincial eleito por Santa Cruz do Sul.
A proclamação da República mudou radicalmente a relação entre a elite política protestante e o Estado brasileiro, pois a separação entre a igreja e o Estado permitiu ampliar o peso político desse segmento. Vale destacar que esse grupo se beneficiaria, de um lado, pelo nível de escolaridade de sua população e, por outro, pela emergência de uma classe média urbana e industrial.
A reação dos católicos com a separação entre a Igreja e o Estado, promovida pela Proclamação da República, resultou na criação de um partido com a finalidade de unir diferentes grupos com interesses em comum. Em maio de 1890, os jesuítas gaúchos fundaram o Partido do Centro Católico, antes da promulgação da nova constituição republicana que entraria em vigor após 1891. No entanto, essa agremiação teve vida curta, pois os jesuítas superestimaram o apoio que receberiam dos pecuaristas católicos da metade sul e dos empresários católicos das regiões de colonização. Isso ocorreu justamente pela própria identidade existente entre a igreja e o império, fazendo com que a elite agrária católica e comerciantes da mesma religião aderissem ao PRR, o que ocorreu na cidade de Santa Cruz a partir de 1900.
Em meu trabalho de doutorado, (Noronha, 2012, p. 91) reuni no banco de dados eleitorais de Santa Cruz do Sul as votações de 1891, 1896, 1897 e 1900 para os cargos de âmbito local na disputa envolvendo o PRR e o Partido do Centro Católico. Analisando a dinâmica dessas duas agremiações entre 1891 até 1900, percebemos que o PRR oscilou de maneira mais intensa, chegando numa mesma eleição, a de 1896, a ter 66% de votos para seus vereadores e 23,20% para intendente. O Centro Católico manteve uma relativa estabilidade, pois conseguiu reunir, em nove anos de atuação, um eleitorado convicto até sua extinção em 1900, sendo cooptado pelo PRR, que se beneficiaria na disputa eleitoral com o PL (que nessa época era Federalista, mas manteve-se registrado no banco de dados eleitorais de Santa Cruz como PL, na maioria protestante) nas eleições de 1897, quando alcançaria mais de 80% dos votos, num contexto em que o PRR estava cooptando lideranças católicas e protestantes da cidade[2].
Krause (2002) afirma que a elite local procurava estabelecer uma relação de autonomia frente ao Partido Republicano Rio-Grandense. Com isso, visava garantir cargos para seus representantes sem uma adesão incondicional. Mesmo assim, as relações entre PRR e a elite de Santa Cruz do Sul foram tensas, o que permite observar uma cautela desse segmento em abandonar as agremiações ligadas aos Federalistas (antigo PL) e o PCC no período da I República.
Entendemos que o PRR adotou, nos primeiros anos da República em Santa Cruz do Sul, uma política de “cooptar” ou formar algumas lideranças naturais da localidade, isto quando não conseguia indicar um “funcionário” ao lugar. Neste sentido, o Partido do Centro Católico cumpria um papel importante na medida em que possibilitou em alguns momentos uma aglutinação de forças locais para não permitir o fortalecimento maior dos federalistas (pois o Partido do Centro Católico tinha seus quadros políticos naturais de Santa Cruz do Sul) (Krause, 2002, p. 149).
Avaliamos que, no início da vila, o partido que melhor representaria os interesses dos empresários protestantes no contexto do Império era o Partido Liberal, nas figuras de Silveira Martins e Koseritz (ambos maçons e anticlericais). No banco de dados eleitorais de Santa Cruz do Sul, durante a I República essa agremiação continuaria a ser registrada com a mesma sigla, mas sabemos que foi reconhecido como Partido Federalista e teve como principal líder local o comerciante Carlos Trein Filho, que aglutinou toda a oposição ao PRR naquele contexto, sendo vítima de um atentado em 1903. Comparamos a atuação do PRR e do PL na cidade de Santa Cruz do Sul. Conseguimos levantar os dados eleitorais de 1896, 1897, 1900, 1922 e 1924 para cargos de âmbito local e regional.
Percebemos que o PL perdeu espaço eleitoral na medida em que o PRR cooptou lideranças protestantes ligadas aos Federalistas. Esse partido iniciou com 23,20% nas eleições de 1896 e ampliou seu percentual para 37% nas eleições para vereador do ano seguinte. Nas eleições de 1922 e 1924, conseguiu mais de 80% dos votos[3]. Segundo Love (1975), a oposição ao PRR era forte nas regiões da fronteira, mas era muito fraca na zona colonial alemã e italiana, fato que garantiu a vitória de Castilhos na Revolta Federalista. O quadro eleitoral de Santa Cruz do Sul comprova essa tendência; após 1897 o PRR manteve sua hegemonia na política local, conseguindo vencer todas as disputas com o PL, que aglutinava os Federalistas.
Para Pedro Dutra Fonseca (1983), a trajetória da oposição gaúcha é bem mais complexa em comparação com os outros estados da federação, pois pode-se dizer que ela descende do PL, dominante no Rio Grande do Sul nas últimas décadas do Império. Vale destacar que Krause aponta esse partido como o mais forte na Vila de Santa Cruz, pois foi de lá que emergiram nomes como o de Frederico Guilherme Bartholomay. Fonseca (1983) destaca que, uma vez proclamada a República, o PRR ganhou adeptos monarquistas, especialmente do Partido Conservador. O campo majoritário do PL, ainda sob a orientação de Gaspar Silveira Martins, passou à oposição com a nova sigla: Partido Federalista, registrado no banco eleitoral de Santa Cruz como PL.
Em relação à disputa eleitoral entre os partidos com alguma identidade religiosa, conseguimos reunir os resultados das eleições de 1896, 1897 e 1900 para os cargos de âmbito local, comparativamente, o desempenho do Partido do Centro Católico e do Partido Liberal nessas três eleições.
Em meu trabalho (Noronha, 2012, p.94), observei que os dois partidos tendiam a cair até 1900, tendo em vista a estratégia bem-sucedida do PRR de cooptar os líderes das duas forças políticas. Mas, comparando somente a disputa entre o PL (com maioria protestante) e o PCC (católico), percebemos que o primeiro teve uma queda mais expressiva. Isso não significa que os protestantes tivessem perdido espaço político local; bem pelo contrário, encontraram no PRR poder de barganha para uma atuação política mais sólida em comparação com a agremiação representada por Carlos Trein Filho e que havia sido derrotada na Revolta Federalista[4].
Na medida em que o PCC e o PL perdiam força eleitoral, tendo em vista a consolidação da separação entre igreja e Estado, provocou progressivo esvaziamento do discurso ideológico que foi assentado no interesse religioso. Krause aponta para uma articulação mais acentuada entre protestantes e católicos para barganhar interesses políticos e econômicos comuns via PRR. Analisado a filiação religiosa dos vereadores de Santa Cruz do Sul, ao longo de 1905 até 1966, percebemos que a maioria foi filiada à religião protestante, mas isso nunca foi considerado um empecilho nas relações sociais.
Para os protestantes seria fundamental obter um nível de articulação política com a comunidade católica, pois esse grupo possuía um canal de negociação com o governo estadual. Exemplo disso ocorreu em 1915, quando os empresários do fumo, majoritariamente protestantes, receberam uma carta de recomendação feita pelo intendente municipal Galvão Costa, na época indicado pelo PRR e filiado ao catolicismo, para uma reunião com o governador Borges de Medeiros na capital estadual, Porto Alegre:
São portadores desta os adiantados industrialistas aqui estabelecidos João Nicolau Kliemann, José Carlos Kohmann, Adolfo Iserhard, José Etges Filho, Theodoro Schilling, Guilherme Presser, Helmuth Schütz, os quais desejam entender-se pessoalmente com V. Exa. sobre assunto de grande relevância para Santa Cruz que diz respeito ao seu mais importante fator de riqueza econômica local, o fumo (apud Krause, 2002, p. 149).
Podemos observar que a reunião tinha como pauta a criação de uma grande indústria de cigarros de capital nacional, a Cia. de Fumos Santa Cruz S/A, que seria fundada por esses integrantes da elite local em 1918; além disso, comentaram sobre os planos de fundar uma Associação Comercial e Industrial e trataram da possibilidade da filial da British American Tobacco (B.A.T.) se instalar na cidade. Vale destacar que na época a empresa estava indecisa entre Rio Pardo e Santa Cruz, mas, tendo em vista do potencial da agricultura familiar e da disponibilidade de recursos para a instalação da empresa estrangeira na cidade, Santa Cruz acabou recebendo-a em 1917. Assim, o empresariado local possuía no PRR um canal de negociação política com o poder público estadual.
Podemos afirmar que o contexto da I República foi importante na medida em que neutralizava uma cisão político-religiosa que havia na comunidade de Santa Cruz na época do Império. A separação do Estado e da Igreja Católica, combinada com a progressiva estratégia de cooptação dos integrantes da elite local pelo PRR, ligada aos dois grupos, fez recrudescer essa polarização. Os resquícios de divergências entre católicos e protestantes na política local foram desregulados após a Revolta Federalista. Para os protestantes, a adesão ao PRR significou a abertura de um canal de diálogo com o poder público central, enquanto que para os empresários católicos esse partido representava o perfil de um novo regime que havia deposto a Monarquia.
Referências bibliográficas
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[1] Para maiores informações, Noronha (2012, p. 112) organizou o Gráfico 06 – Tendência da população católica e protestante de Santa Cruz do Sul entre 1849-1900 que reuniu dados sistematizados por Krause sobre a vida religiosa da cidade.
[2] Para maiores informações consultar a Tabela 2 – Relatório eleitoral comparado entre o PRR e o PCC e o Gráfico 02 – Desempenho eleitoral do PRR e do PCC em Santa Cruz (1891-1900) em Noronha (2012, p. 91 e 92) que ilustram a dinâmica eleitoral entre as duas agremiações. Lançamos mão do Banco de Dados Eleitorais de Santa Cruz do Sul.
[3] Para informações adicionais a Tabela 3 – Relatório eleitoral comparado entre PRR e PL em Noronha (2012, p. 93) traz informações de cada eleição entre os anos citados. A fonte utilizada foi o Banco de Dados Eleitorais de Santa Cruz do Sul.
[4] Para maiores detalhes quanto aos números de cada eleição, consultar a Tabela 4 – Relatório eleitoral comparado entre PCC e PL e o Gráfico 04 – Desempenho eleitoral do PCC e do PL em Santa Cruz (1896-1900) em Noronha (2012. P. 94) com base no banco de dados eleitorais de Santa Cruz do Sul.