BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DA POESIA

O poeta estadunidense Edgar Alan Poe, por volta de 1840, publica um ensaio com o título O Princípio poético, cujo objetivo é refutar o que chama de heresia do didatismo que se tem realizado na poesia de seus conterrâneos. Segundo o poeta, a perspectiva dominante sobre o que seja a poesia em seu tempo tinha por pressuposto que seu mérito consistia na prolixidade tanto sintática quanto vocabular e que, por se mostrar absurda esta perspectiva, vinha gradativamente desaparecendo da mente do público. Em contrapartida, esta concepção era sucedida por outra que entendia o compromisso da poesia com a Verdade.

Estabelecendo uma divisão do mundo do pensamento em três distinções – o Intelecto Puro, o Gosto e o Senso Moral – Poe atribui diferentes ofícios a cada um dos três para evidenciar a distinção entre eles. Nesse sentido, o Intelecto Puro se liga à Verdade, enquanto que o Gosto, à Beleza e o Senso Moral, ao Dever. Essa distinção funciona para estabelecer a diferença entre o sentimento poético e o compromisso com a Verdade. Desse modo, a relação que a poesia tem com a inteligência e consciência é de parentesco colateral e, portanto, sua relação com o Dever e a Verdade quando se dá é apenas de modo incidental.

Sendo determinado pelo Gosto, a busca da Beleza torna-se o domínio do poema e da poesia em sentido geral manifesta em todas as linguagens artísticas. Não se trata, porém, de negar que os incitamentos da Paixão, os preceitos do Dever e as lições da Verdade não sejam introduzidos no poema, mas que, sendo a Beleza o motivo da poesia, estes outros devem ser harmonizados de modo a não comprometer a atmosfera essencial da arte.

Obviamente, o conceito de Belo não é tranquilo sobretudo a partir do século XVIII quando passou a coincidir com a noção de objeto estético. Contudo, é possível entrever no uso feito por Poe a perspectiva kantiana do belo como representação sensível perfeita e prazer que acompanha a atividade sensível. Essa proximidade é perceptível tanto pela tríade que o poeta estabelece, como também a distinção com a Verdade e a determinação do Gosto sob o Belo. Com base no princípio poético de Poe, três problemas importantes se manifestam e serão tratados pelas diferentes teorias da poesia: do que trata a poesia, isto é, o que ela diz? Qual o seu tema? – primeiro problema; qual a sua materialidade artística? Como a poesia se constitui? – segundo problema; por fim, o terceiro problema é a quem ela se dirige? Quem é o seu interlocutor? E, mais que isso, qual a relação que ela estabelece com seu interlocutor?

Ezra Pound (2006), ao definir o conceito de literatura como linguagem carregada de significado até o máximo grau possível, apresenta três modalidades principais da poesia: a projeção do objeto na imaginação visual – fanopeia; a produção de correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala – melopeia; e a produção das imagens visuais e emoções sonoras estabelecendo associações que permaneçam na consciência do receptor – logopeia. Partindo da primeira modalidade apresentada por Pound (a fanopeia), podemos arriscar alguns apontamentos para o primeiro problema apresentado anteriormente, isto é, do que trata a poesia?

Conforme apresenta Abbagnano (2007) no verbete poesia, pode-se distinguir três concepções fundamentais da poesia: a primeira é a poesia como estímulo emotivo, a segunda é a poesia como verdade e a terceira é a poesia como modo privilegiado de expressão linguística. Com base nessas distinções, podemos perceber que: ora a poesia é entendida como manifestação das emoções e paixões humanas e, portanto, seu tema principal é o sentimento humano – chamaremos aqui de função evocativa; ora a poesia, comprometida com a verdade, deve tratar do real e, portanto, temas desde os mais universais até os mais cotidianos – chamaremos aqui de função mimética; ora a poesia, voltada para a própria linguagem, tematiza o transcendental vazio e o irreal sensível – chamaremos aqui de função estética. Cabe observar que a predominância de uma dessas funções na temática da poesia não significa que as outras não estejam também presentes, mas que não são dominantes.

A função evocativa é desenvolvida por I. A. Richards que, ao diferenciar a linguagem poética da linguagem científica, observa que a linguagem poética consiste em exprimir as emoções como também as evocar no leitor/ouvinte. Logo, sua linguagem exerce a função de evocação que é o estímulo das emoções. Tal perspectiva tem raízes na filosofia platônica, na qual Platão, especificamente em sua obra A República, afirma que a poesia trata de sentimentos, isto é, a poesia e os poetas se caracterizam por dar vasão a sentimentos de alegria, de tristeza e cólera e, por conta disso, a poesia e o poeta podem se tornar nocivos à República. Já o italiano Giambattista Vico, ao defender o estímulo emotivo como característica sublime e universal da poesia, elimina o caráter condenatório dado à poesia por Platão, pois, ao dar sentido às paixões e a fantasia, a poesia nos devolve à condição da criança e do homem simples. Nessa perspectiva, poesia e filosofia são antípodas, pois, para Vico, quanto mais robusta for a fantasia, mais fraco será o raciocínio.

A função mimética tem raízes na Poética de Aristóteles. Para ele, a poesia tem como tema a imitação a partir do verossímil, isto é, a linguagem poética trata das coisas possíveis segundo a verossimilhança e a necessidade, o que torna a verdade da poesia mais filosófica porque exprime o universal. A perspectiva aristotélica inaugura a concepção de que a matéria da poesia é a verdade e, ainda que trate das paixões humanas, visa expurga-las por meio da catarse. Essa perspectiva de que o tema da poesia seja a verdade encontra adeptos importantes e culmina nas principais propostas teóricas do Romantismo. Desdobra-se em duas interpretações da poesia como verdade: a primeira é entender a verdade da poesia em grau ou natureza diferente da verdade filosófica – tendo como teóricos Friedrich Hegel e Benedetto Croce; a segunda é entender que a poesia contém a verdade filosófica absoluta – tendo como principal teórico Friedrich Schiller, cuja teoria influenciou significativamente o romantismo alemão e, posteriormente, foi retomada por Heidegger.

A função estética tem como perspectiva uma definição funcional da poesia e tem como principais teóricos os poetas e não os filósofos como nas funções anteriores. Desse modo, poetas como Poe, Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud preocupados com a materialidade da poesia, voltam-se bem mais para aquilo que Ezra Pound define como melopeia do que propriamente para a fanopeia, isto é, a preocupação está muito mais no como a poesia se expressa do que propriamente em o que ela expressa. Com isso, já podemos abordar o segundo problema aqui apresentado, isto é, qual a materialidade artística do poema?

Já em Aristóteles, essa preocupação se manifesta ao diferenciar a linguagem poética da linguagem historiográfica. Logo, para o estagirita, não é porque uma obra seja composta em versos que necessariamente ela se constitua em poesia. Com isso, a função mimética já evidencia uma preocupação com a materialidade que especifica a poesia. Também, na função evocativa, sobretudo tratada por Richards, à medida que a poesia evoca tanto o estímulo emotivo do poeta quanto o do leitor/ouvinte, o faz por meio de procedimentos linguísticos específicos. Contudo, é com Baudelaire que a preocupação da expressividade linguística se torna função predominante na poesia.

Hugo Friedrich (1978), identifica como característica dessa lírica a ausência de uma lírica do sentimento e da inspiração e o aniquilamento da realidade e das ordens normais, tanto lógicas quanto afetivas. Logo, se evidencia nesta terceira concepção o deslocamento da temática para enfocar o manejo das forças impulsivas da linguagem. Conforme o crítico alemão, a lírica europeia do século XX torna-se enigmática e obscura, pois desenvolve na sua materialidade linguística o que define como tensão dissonante.

Não se trata, obviamente de um formalismo rigoroso e estéril da poesia, pelo contrário, a língua poética torna-se nessa função estética um lugar de experimento, cujas combinações emergidas desse processo antecipam o significado, isto é, se na linguagem comum com propósitos de comunicação o significado é que organiza a materialidade linguística, esse experimento inverte o processo  e eletriza liricamente as palavras por meio do desmembramento da sintaxe e de outros recursos linguísticos para a partir daí criar o significado. Como afirma T. S. Eliot, “a poesia pode comunicar, ainda antes de ser compreendida”.

Com esta afirmativa, percebe-se que a função estética não só coloca em evidência o como a poesia se constitui, mas também revisa o próprio conceito de comunicabilidade, isto é, nesta reordenação linguística que explora sob várias possibilidades a materialidade da poesia, conjugando no mesmo verso o visível e o abstrato, a comunicabilidade é menos o significado das palavras em si e mais a potencialização rítmica e sonora que criam por si mesmas novos significados. A melopeia na lírica moderna, como observa Friedrich, é potencializada em grau máximo fazendo com que se crie uma linguagem nova.

Neste deslocamento do sentido de comunicação manifesta-se outra característica da poesia moderna que é a sugestionabilidade em vez de compreensibilidade. A comunicação que pressupõe a compreensão de uma determinada comunidade na qual se insere o poeta é rompida de vez. Ao invés disso, coloca-se o conceito de infinita possibilidade de sugestão. Como afirmou Valery, em sua obra Variedades, não há sentido verdadeiro em um texto e, portanto, não há autoridade do autor. O texto, após publicado, passa a ter independência do autor e com isso, os seus versos passam a ter o sentido que lhes for dado. É nessa perspectiva que Mallarmé usa o conceito de sugestão. O leitor evoca o sentido do texto a partir da sua materialidade. Contudo, a evocação de Mallarmé é diferente da função evocativa de Richards, pois ela não é afetiva, mas um exercício intelectual do poeta e do leitor. Como disse Valery, o principal discípulo de Mallarmé, a poesia é uma festa do intelecto.

Com isso, já se torna possível, abordar o terceiro problema, como também o conceito de logopeia apresentado por Pound. Antes, cabe observar que o termo usado por Pound não trata do leitor ou dos modos de recepção, tal como foi tratado pelos diferentes teóricos da Estética da Recepção. Conforme Pound, a logopeia é o estímulo das associações entre fanopeia e melopeia na consciência do receptor em relação às palavras e grupo de palavras efetivamente empregadas. Logo, nela contém a presença da recepção e, portanto, o leitor participa do ato poético a partir desta modalidade da poesia.

As duas funções anteriores, também levam em consideração a presença do leitor. Na função mimética, a imitação visa provocar a catarse por meio da purgação das paixões que o texto provoca. Na função evocativa, conforme pontua Richards, o poema evoca os afetos do leitor, pois, para ele, a forma suprema da poesia é a linguagem emotiva, tornando seu objetivo estimular emoções e atitudes. Contudo, nestas duas funções, pressupõe-se uma intencionalidade autoral do poeta como instituição que organiza e determina o sentido do poema. Para a função estética, como já vimos anteriormente, a relação entre o poema e o leitor é da ordem da sugestionabilidade. Para eles, buscar uma compreensão do poema é pressupor que exista um sentido verdadeiro do texto determinado pela intenção do poeta e, com isso, diminui ou até mesmo elimina a experiência autônoma do leitor com o poema.

T. S. Eliot, em sua obra O Uso da Poesia e o uso da crítica, afirma que se há alguma forma de comunicação na poesia, esta comunicação é o próprio poema. A experiência, os sentimentos e os pensamentos usados nele se comunicam de forma incidental. Para tanto, o poema, uma vez composto se localiza em algum lugar entre o leitor e o poeta. (ELIOT, 2015, p. 42). Com isso, ele retoma a distinção estabelecida por Poe, ao afirmar que os incitamentos da Paixão, os preceitos do Dever e as lições da Verdade, se comunicadas pelo Poema, o será de modo incidental.

Hugo Friederich (1978), citando o poeta espanhol Pedro Salinas, afirma que a busca da poesia é aquela forma superior de interpretação que reside no malentendido. Uma vez composta, a poesia se conclui, mas não se encerra, pois deve buscar no leitor outra poesia em si mesma. Isto é, para além da compreensão dos românticos e da sugestionabilidade de Baudelaire e Mallarmé, para Salinas a relação entre poesia e leitor é de um contínuo poetar que faz vibrar no poema forças poéticas anônimas as quais dormem inéditas tanto em sua linguagem quanto em seu silêncio.

A lírica moderna e a terceira função da poesia predominante nesta lírica faz da relação entre poesia e leitor um constante e variável jogo. Neste jogo, a poesia moderna pode se definir como um ataque ao leitor por meio de um estilo anormal da linguagem; pode se definir como uma poesia que, ao invés de procurar, evita o leitor, exigindo que ele a conquiste pela razão; ou pode ainda criar o seu leitor como o especialista para um texto especializado. A partir de suas experiências e teorizações ao longo da história, a poesia tem se pluralizado, buscando novas formas de produção de sentido por meio de uma linguagem nova.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ARISTÓTELES. A arte poética. São Paulo: Cultrix, 2014.

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ELIOT, T. S. O uso da poesia e o uso da crítica. São Paulo: É Realizações, 2015.

FRIEDRICH, H. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

PLATÃO. A República. Belém: EDUFPA, 2000.

POE, E. A. Poemas e Ensaios. São Paulo: Editora Globo, 2009.

POUND, E. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.

Professor de Teoria Literária, autor do livro de contos "Candelabro" e apaixonado por Literatura.

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