ENVELHECER SIM, MAS SOB QUAIS CONDIÇÕES?

“Por aí vai a necessidade de que, para além dos números, se discuta de início, a percepção da sociedade sobre o que é a velhice!”

Processos de envelhecimento. Disponível em: https://saudesublime.com/processo-de-envelhecimento/

Irene Franciscato

Nascer, crescer, envelhecer e morrer, ciclo de todo ser vivo.

  Bebê, criança, jovem, adulto, idoso: desenvolvimento humano.

Os idosos representam 12% da população mundial, com previsão de duplicar esse quantitativo até 2050. Esse fenômeno acontece também no Brasil ainda que para um total de 26,28 milhões de pessoas idosas, a proteção social abranja 21,52 milhões, o que equivale dizer que ainda temos idosos sem formas significativas de proteção social, espalhados pelas diferentes áreas do país.

A população brasileira manteve a tendência de envelhecimento dos últimos anos e ganhou 4,8 milhões de idosos desde 2012, superando a marca dos 30,2 milhões em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Características dos Moradores e Domicílios, divulgada hoje pelo IBGE. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20980-numero-de-idosos-cresce-18-em-5-anos-e-ultrapassa-30-milhoes-em-2017

 

Ainda que o dado estatístico nos alerte sobre o aumento do número de idosos no país, não basta tratá-lo apenas como um dado demográfico, já que este aumento da população idosa traz consequências para as diferentes esferas da sociedade.

Por aí vai a necessidade de que, para além dos números, se discuta de início, a percepção da sociedade sobre o que é a velhice, enquanto um dos períodos da vida, e também como esta percebe e trata seus sujeitos, as pessoas idosas, intencionalmente nominadas no plural pois também nesse período da vida, é atravessada pela questão de classe, raça  e/ou  gênero, haja vista por exemplo, que embora  dados remontem uma década atrás,  a população branca continua a viver mais do que a negra e que o total de mulheres brancas com mais de sessenta anos representasse 13,2%  enquanto que  o das mulheres negras, 9,5%.  Provável é que a diferença ainda se mantenha.

Comecemos: primeiro somos bebês, depois crianças; de crianças passamos a jovem e de jovem passamos  a ser adultos; de adultos a velhos; e de velhos, passamos a  que?… Deparamo-nos, na linha da finitude da vida, com a morte, salvo infortúnios de diferentes causas que possam antecipá-la, ou seja, pareando com a velhice, chegamos à morte, queiramos ou não.

No passado, para quem fosse livrado da morte ao nascer ou tendo escapado de epidemias, a velhice era muito breve: morria-se em torno dos 40 anos. Na atualidade, embora em patamar mais alto, a morte parece não compreendida como fato natural e, sua distorção, contribui para que a distância ou aproximação da mesma seja vista de maneira antagônica. Fazendo das palavras vistas de Karnal as minhas – no livro O dilema do porco espinho, página 161 -,  parece haver uma associação de normalidade e vigor físico à juventude, por estar distante da morte e contrariamente, associação de anormalidade e decrepitude à velhice, por estar próxima dela.

Também, pelo fato de que em nossa sociedade, somos subordinados a performances de sucesso e ao mundo capitalista do trabalho, por já não mais pertencerem a qualquer um dos dois, tende-se a perceber as pessoas idosas como um ser improdutivo e pouco atuante. São elementos que se somam para conceber a velhice como algo ruim e a pessoa idosa, como indesejável na sociedade. Seja denominada terceira idade, velhice ou idade avançada e sem negar possíveis limitações físicas, dada a continuidade dos anos vividos e ainda, que a saúde é fundamental para toda e qualquer idade, é preciso, no entanto, reconsiderar e redimensionar essa visão.

Para tanto, nada melhor do que ter uma ideia do que as pessoas idosas pensam sobre viver a vida de modo saudável na velhice.

 

SOBRE A VOZ DOS IDOSOS

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem como definição de envelhecimento saudável que esta se dá como um processo de desenvolvimento e de manutenção da capacidade funcional que permite o bem-estar na idade avançada.

Em grupos de saúde educação em saúde, idosos/idosas brasileiros expressaram suas ideias sobre o que vem a ser envelhecimento saudável em que, sem deixar de lembrar que somos seres integrais, foi possível reuni-las em diversas dimensões da vida: biológica, psicológica, espiritual e social.

Grupo de convivência para idosos. Disponível em centenáriodosul.pr.gov.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na dimensão biológica, as pessoas idosas indicam que hábitos como alimentação saudável e prática de atividade física e, ainda não beber ou fumar, são importantes para o envelhecimento saudável. Também cuidar da saúde indo ao médico e observando a necessidade de vacinação representam falas que têm a ver com autorresponsabilidade, ou seja, é a pessoa idosa quem deve cuidar de sua saúde física.

Na dimensão psicológica, o otimismo pessoal e a vida em família levam à sensação de bem estar. Na dimensão espiritual, não só a fé como a espiritualidade são indicadas como suporte para lidar com problemas de saúde ou da vida cotidiana na velhice.

Na dimensão social, o contato com pessoas em suas possibilidades as mais diversas, são intensamente indicados pelos idosos em questão. Assim, se relacionar com a família, amigos, vizinhos, crianças, companheiros ou mesmo com agentes do serviço comunitário e de saúde são citadas como importantes, acrescidas da lembrança de que poder agir e executar ações sem auxílio contam muito para o campo das interações sociais. Ser apoiado, mas também apoiar e fazer o bem, como praticar voluntariado, complementam as indicações das pessoas idosas na dimensão social.

É interessante ressaltar, no entanto, que apesar da amplitude do que possa se configurar como envelhecimento saudável, a indicação de segurança financeira para a manutenção da autonomia é pouco indicada. Não só isso, ainda que indireta, a indicação a fatores de ordem e vontade políticas, não aparece nas indicações desses idosos. Assim, parece haver forte percepção de que a maior parte das condições que favorecem o envelhecimento saudável está situada no próprio idoso. Sendo este o ser responsável pela própria saúde ou, no meio imediato como a família e vizinhança, sendo fraca, portanto, a percepção de que tais condições (e outras mais como o lazer e cultura) dependem de políticas públicas voltadas para a população de idade avançada. Certamente, há na atualidade, a coexistência de pessoas idosas cuja visão já engloba essa tal dimensão política.

 

SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS IDOSAS

Fonte: VoxJUs.Concursos

Em nível mundial, ainda que os direitos da pessoa idosa façam parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde 1948 e, nacionalmente sejam contemplados na Constituição Federal de 1988, outros instrumentos legais foram elaborados principalmente entre as décadas de 1990 e 2010, buscando consolidar o que que já estava descrito nestes dois documentos e  imprimindo importantes avanços à causa idosa. Exemplo disso é a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS – de 1993, que regulamenta os direitos já citados na Constituição Federal e a Lei 8842 de 04 de abril de 1994 que foi regulamentada pelo decreto n. 1948 de 1996, e que passou a assegurar direitos sociais e amparo legal ao idoso por meio do Plano Nacional do Idoso. Além disso, tivemos o Estatuto do Idoso, em 2003 e a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, de 2006.

Esse amparo legal deu sustentação a políticas públicas como a criação do Fundo Nacional do Idoso, no ano de 2010, o Programa Nacional de Cuidadores Idosos, de 1999 e o Programa da Farmácia Popular, que passou a disponibilizar medicação própria à população idosa. Destacando-se também o Programa Nacional de Imunização para vacinação prioritária da pessoa idosa e o Programa de Fomento e Valorização às Expressões Culturais da Pessoa Idosa, de 2007.

Como podemos constatar, os avanços em prol da pessoa idosa no Brasil foram significativos, recolocando-a enquanto sujeito de direitos sociais e incluído na sociedade. Contudo, embora esses direitos sejam assegurados pela instituição de leis, regulamentações e programas, há brasileiros e brasileiras que não alcançam a velhice, especialmente mulheres e jovens negros. Gênero e raça somam-se em número alarmante às “doenças fatais” na nossa sociedade.

 

SOBRE OS QUE NÃO ALCANÇAM A VELHICE

Dados referentes ao ano de 2018. Fonte:Ponte.org

 

Fonte: almapreta.com

 

A herança de uma forte presença do patriarcado e da misoginia contemporânea impede que muitas mulheres, sejam elas brancas ou negra, vivam a velhice, obstáculo esse recrudescido entre mulheres negras. Lamentavelmente, nada como as estatísticas para demonstrar que embora a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio estejam em vigor, mentalidades discriminatórias levam anos a se modificar, especialmente se as punições daqueles que violam o direito à igualdade não se fizerem permanentes e eficazes para que o direito à vida, o direito ao envelhecimento seja garantido.

Como aponta Lilian Moritz Schwarcz em seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro, página196, dados de 2017 mostram que uma mulher é assassinada a cada duas horas e que o Brasil convive com a taxa de 4,3 mortes para cada 100 mil mulheres, colocando-se em quinto lugar no mundo, conforme a Organização das Nações Unidas (ONU). No que diz respeito à raça, o número de assassinatos por feminicídio de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864 para 2.875 casos no período de 2003 a 2013, enquanto que das mulheres brancas caiu, no mesmo período, para 9,8%.

          Ainda segundo a historiadora Lilian Moritz Schwarcz, não são poucos os relatos de mães de rapazes negros que confessam rezar toda vez que os filhos saem de casa, com medo de que não voltem com vida, além de mencionar que pelos dados do Ipea, de 2006 a 2016, assassinatos e mortes violentas correspondem a 49,1% dos óbitos de rapazes negros entre quinze e dezenove anos; a 46% entre vinte e vinte e quatro anos enquanto que comparando-se à faixa de 45 a 49 anos a taxa é de 5,5%.

Tem-se que a desigualdade social que abarca questões de saúde, alimentação, saneamento, habitação, acesso à educação e lazer, entre outras necessidades, é confirmada também no momento da morte, que brusca, rouba um direito fundamental. Nega-se, portanto, o direito à vida entendida, do nascimento ao envelhecimento, principalmente à população negra e pobre deste país. Em resumo, alguns a terão em sua plenitude, outros a terão em brevidade.

 

SOBRE O MOMENTO ATUAL PARA AS PESSOAS IDOSAS

Finalizamos este artigo com um trecho do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves:

Foi com lágrimas nos olhos que ela (a Esmeria) disse que já estava velha, que não sabia fazer mais nada e que, àquela altura da vida, provavelmente não aprenderia, e só restava continuar servindo a uma sinhá […]. Em vez de ficar jogada pelas ruas, velha e mendigando, ela disse que preferia ser cativa para o resto da vida, e se daria por muito satisfeita se a sinhá tivesse piedade e cuidasse dela na velhice, cedendo um teto e comida em nome dos bons serviços prestados. Completou dizendo que nós, os jovens, devíamos sim, trabalhar muito para ter um futuro melhor, que nossas vidas só dependiam de nós, porque desde muito nova ouvia boatos de que a libertação estava próxima, sem nunca acontecer. Ficamos em silêncio, pensando nas verdades que ela tinha acabado de dizer sobre a libertação dos escravos e sobre o descaso com os mais velhos […]” (p. 300).

 

Fica assim, uma indagação:

Será que com a Reforma da Previdência, que segue em tramitação no Congresso Nacional, estaremos retrocedendo há três séculos? Com a diferença de que a perda dos direitos, até então conquistados, atingirá a ampla população nos estratos sociais mais desfavorecidos da nossa sociedade? Não seria então a hora de se rebelar e resistir? Ou será que envelhecer, não faz parte dos nossos planos?

 

 

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Editora Record, 2006.

KARNAL, Leandro. O dilema do porco espinho. Editora Planeta do Brasil, 2018.

SCHWARCZ, Lilian Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. Editora Cia. das Letras, 2019.

 

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Possui graduação em psicologia e pedagogia, com doutorado em Educação: Psicologia da Educação, pela PUCSP. É especialista em temática de Direitos Humanos pela USP, SP e possui experiência na formação continuada de professores promovida pelo MEC e na formação inicial de professores nos cursos de pedagogia da Fundação Santo André, SP e Faculdades Oswaldo Cruz, SP, na formação continuada de professores em curso de EDH, pela UFABC, Campus Santo André e atualmente exerce função de coordenação pedagógica na educação básica.

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