XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio (Associação Nacional de História), 19 de julho de 2010, a primeira ANPUH que estive presente. Numa mesa com mediação da Prof.ª Ana Maria Mauad, apresentei o projeto de pesquisa que em abril daquele ano foi selecionado no Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade Severino Sombra – USS de Vassouras/RJ, (hoje Universidade de Vassouras) estando sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Maria Dietrich.
Não conhecia a UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), por isso, além de pegar o ônibus em Três Rios/RJ, minha cidade natal, bem cedo, resolvi usar um táxi para o percurso entre a rodoviária Grande Rio e a instituição que sediaria o encontro. Se tivesse por algum motivo que buscar na memória as lembranças do trajeto realizado pelo motorista naquela manhã, não encontraria, simplesmente porque minha atenção fora direcionada a uma imagem singular para quem na fotografia e na memória tinha o objeto de sua paixão e estudos.
No para-brisa do carro, refletido estava em uma posição favorável a observação do motorista, um senhor aparentando seus 50 anos, a imagem de dois jovens abraçados e no segundo plano uma praia. Não observava a fotografia, mas a imagem que no para-brisa espelhava dois meninos que “acompanhavam” o motorista em seus caminhos diários, como uma lembrança daqueles e de algum lugar e momento que não se desejava esquecido, e que jamais se repetiria daquela mesma forma como o registro havia perpetuado.
Fiquei me perguntando quem seriam? Filhos, netos? Ainda adolescentes estariam vivos ou por uma dessas tramas do destino, não mais se encontravam neste plano da vida? Que sensações, que sentimentos se reafirmam com a presença da lembrança que da memória retorna sempre viva e presente através daquela imagem fotográfica? Não formulei nenhuma pergunta ao taxista, pois absorvido em reflexões várias não percebi que tão rapidamente chegara ao meu destino.
Foi um momento especial por tudo que envolveu de significados, pois estava nos passos primeiros de um caminho iniciado na graduação em Licenciatura em História, pela Universidade de Uberaba/MG – pesquisa sobre história e fotografia (as questões relacionadas à memória foram sugestão da minha orientadora do mestrado) -, motivado a época pelo registro fotográfico da Fazenda Capoeirinha em Chiador/MG, onde a presença das pessoas “vivas” na imagem, mas não mais existentes fisicamente na atualidade, até hoje movimenta meus pensamentos de múltiplas indagações.
A fazenda pertencia aos bisavós do meu pai, Mauro da Silva Mattos: Marcelino José da Costa e Maria Cherobina de Castro Mattos, e esta fotografia despertou naquele momento de escolha do tema para o trabalho final da graduação em Licenciatura em História pela Universidade de Uberaba/MG, a admiração e a paixão que sempre senti na observação de qualquer fotografia antiga. Percebo algo de “mágico” em cada uma daquelas que me conduzem a um ambiente diferente, há um tempo anterior e a um fato que eu não experimentei e que não me será possível vivenciar, mas que a imagem consegue imputar uma “sensação de realidade”.
E mais ainda: não conseguia ao olhar para aquelas pessoas, objetos, paisagens e espaços de relação que não se encontram no tempo presente, deixar de imaginar sobre suas vidas, suas histórias, identificando-os no agora em uma realidade pós-morte.
A imagem fotográfica, vencendo a distância que a separa do ato fotográfico, a “imagem-ato”, se presentifica ao observador com toda a sua possibilidade de narrar uma parcela da história, da obra e das lembranças dos que permanecem representados no seu referente. Aqueles que “sobreviveram” na imagem permanecem vivos neste lugar de lembrança. As imagens fotográficas são testemunhos da história e da parcela da obra de um sujeito, mas também, depoimentos da vida e da morte.
A Fazenda Capoeirinha ainda continua na atualidade com sua sede bem conservada, mas as pessoas que foram “preservadas” na imagem, sem o registro do autor e da data de sua reprodução, ao olhar de cada um de nós não existem mais.
Na imagem 1 observa-se interessante distribuição dos indivíduos deixando claro uma divisão social, com os prováveis trabalhadores, suas crianças e mulheres postadas num segundo plano, e os possíveis proprietários e seus familiares (também homens, mulheres e crianças) no primeiro plano bem à frente à esquerda, e dois homens a cavalo logo atrás destes.
Esta fotografia possibilita ao historiador interessantes análises sobre as questões das hierarquias sociais naquele tempo, não só porque a arrumação espacial concedida para o registro fotográfico permite a identificação de grupos sociais distintos, através de limites territoriais evidentes, mas também e ainda, pelas roupas (chapéus, ternos, gravatas e vestidos de melhor qualidade no acabamento percebidos entre as pessoas que se destacam) e pela formação étnica com os negros apenas entre os trabalhadores. E estas mesmas questões levam-me a imaginar as possíveis tramas ocorridas, histórias de vidas que estes personagens experimentaram influenciados pelas questões sociais, culturais e religiosas de seu tempo.
Roland Barthes define punctum como o “detalhe” que atrai. “Sinto que basta sua presença para mudar minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um valor superior. Esse “detalhe” é o punctum (o que me punge)”, (2008, p.68) elemento cultural e social, flecha que feri alguns, mas com certeza, nem todos.
Apesar desta fotografia em sua totalidade entusiasmar, o punctum se apresenta, para mim, na mulher que está na posição intermediária entre dois grupos, vestida e arranjada de forma a demonstrar sua condição de serviçal. Uma personagem que transita por dois mundos, aparece no centro da imagem, num plano a frente dos prováveis trabalhadores da fazenda e seus familiares, estando ao lado do que parece ser um carrinho de bebe.
Quem ela foi; qual seu nome? Quais experiências vivenciou na existência registrada e perpetuada na imagem fotográfica? Quais emoções experimentou, dores, tristezas, alegrias, sonhos; em que tramas da vida se envolveu? Não são possíveis apenas pela imagem fotográfica responder a estas e outras perguntas que podem ser relacionadas. Mas há uma questão que perpassa por esta e outras fotografias que registram a presença de pessoas, personagens de outros tempos, familiares ou não: a da morte. A memória dos mortos, a morte de si e do outro, as lembranças, os vivos e a lembrança dos mortos na memória dos vivos. (meu destaque)
Após finalizar a pesquisa de mestrado, comecei a estudar as diversas maneiras como o tema da vida e da morte percorrem as impressionabilidades contemporâneas, e como estas foram sendo tecidas e (re)apropriadas durante o período do final do século XIX até os nossos dias, incluindo nesta relação as imposições culturais das religiões da nossa civilização cristã ocidental.
Philippe Ariès (2012) quando escreveu que as transformações do homem diante da morte [as atitudes diante da morte em nossa cultura cristã ocidental] são extremamente lentas por sua própria natureza ou se situam entre longos períodos de imobilidade, atesta a dificuldade que o ser humano tem em lidarmos com esta realidade, e o quanto a memória da morte, fatos de mentalidade, ainda definem o sentido que damos a nossa destinação individual.
Apesar da consciência intima da vida após a vida, a diversificação das crenças e as “opções” relacionadas à anterioridade da vida e sobrevivência do ser após a morte, não foram até o momento, capazes de sanar as dúvidas e eliminar o medo da morte e da vida futura. A nossa sociedade cristã ocidental, constituiu um sistema de ação regido por símbolos, uma estrutura de castas sociais e de papeis, de culturas e regras de comportamento, destinada a servir de veículo a valoração da vida, mas de uma vida em que a decadência, a velhice e a morte, devem ser ignoradas.
Alguns artistas definem os caminhos de sua arte pelas experiências da vida e da morte, pelas dores, pelas dúvidas, por seus sentimentos diante dos sistemas e culturas, símbolos e ideias sociais da morte. Entre estes relaciono Edvard Munch, que conforme afirma Carol T. Moré “foi perseguido pela tragédia familiar, Munch foi um artista determinado a criar obras que traziam “pessoas vivas, que respiram e sentem, sofrem e amam”. Ele recusou pintar o banal, as cenas pacíficas, comuns na sua época. A dor e o trágico permeavam seus quadros. Por conta disso, os seus sentimentos sobre doença e morte assumem um significado mais vasto, transformados em imagens que deixam transparecer a da fragilidade e a transitoriedade da vida”. A morte é um ato de decisão do artista. Ela ocorre em seu intimo, como reflexo do seu olhar para a vida.
A sobrevivência do ser para além da fronteira da morte, seu estado consciente, a sujeição aos sentimentos, pensamentos e atos experimentados enquanto vivos no mundo corporal, que definem o estado da alma após a morte; harmonia e felicidade, “choro e ranger de dentes”, os lugares – as muitas moradas da Casa do Pai -; são realidades que de alguma forma aceitamos e representamos em imagens, artes e esperanças (as imagens e feições da morte, do outro e de si, ossos, o retrato mortuário, catacumbas, mausoléus, mascaras mortuárias, a decomposição dos corpos, a doença), conforme os preceitos religiosos ou filosóficos que abraçamos.
A esperança e a fé estão em que as coisas que o homem cria em sociedade tenham um valor e um significado duradouros, que sobrevivam ou se sobreponham à morte e à decadência, enfim, que o homem e seus produtos tenham importância. (BECKER. 2017, p. 24)
Neste contexto, diferentemente de outras expressões, entendo que a relação da fotografia com a morte está vinculada no imaginário popular as questões da memória, ao desejo de que a(as) pessoa(s) e o(s) momento(s) sejam preservados e permaneçam “vivos” na expressão material da imagem registrada, e que o tempo, inexorável inimigo da vida, pois nos conduz invariavelmente a morte, seja vencido. E assim também se transporta aos outros (já mortos) a nossa aspiração de viver, no que ela tem de invulnerável, de mais forte que a morte; a memória, este lugar de lembrança e de esquecimento.
Para Barthes os fotógrafos são agentes da Morte: “É o modo como nosso tempo assume a Morte: sob o álibi denegador do perdidamente vivo (…) Pois é preciso que a Morte, em uma sociedade esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida.”
A fotografia nos permite perceber claramente, que são dois tempos, o da obra e o da vida. A imagem afirma a transitoriedade da existência física e a inexorabilidade da morte (quando não mais vivem no tempo mortal o fotografo e todos os que nela estão representados), pois a fotografia é parte da obra dos indivíduos nela registrados, que revisitada num espaço temporal pós-morte, são testemunhos que reafirmam a morte de todos nós.
O que perturba o homem, é que ele se insere no tempo mortal da vida e sua obra, o lugar de lembrança de sua vida na vida do outro, de fato, aquilo que nos representa (somos os artífices de nossas vidas), que reflete o que fomos ou somos, permanece numa imortalidade desejada e não possível ao seu autor. A imagem fotográfica nos afirma esta realidade: é a obra do outro que, morto, permanece por nós sendo revisitada; e desta maneira somos como que pegos pelo contágio de uma morte que mata.
Referências:
ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. 12ª Impressão. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro/RJ, 2008.
BECKER, Ernest. A negação da morte. 9ª Ed. Editora Record. Rio de Janeiro/RJ. 2017.
MORÉ, Carol T. “Eu não pinto o que vejo, mas o que vi” – Edvard Much. Disponível no site:< https://followthecolours.com.br/art-attack/edvard-munch/>. Acesso em agost. 2019.