“Em relação a muitas dessas fotos, era a História que me separava delas. A história não é simplesmente esse tempo em que não éramos nascidos? Eu lia minha inexistência nas roupas que minha mãe tinha usado antes que eu pudesse me lembrar dela. Há uma espécie de estupefação em ver um ser familiar vestido de outro modo. [destaque do autor] Eis, em torno de 1913, minha mãe em traje de passeio, gorro, pluma, luvas, tecido delicado que surge nos punhos e na gola, de um “chique” desmentido pela doçura e simplicidade de seu olhar. É a única vez que a vejo assim, apanhada em uma História (dos gostos, das modas, dos tecidos): minha atenção desvia-se então dela para o acessório que pereceu; pois a roupa é perecível, ela forja para o ser amado um segundo túmulo. Para “reencontrar” minha mãe, fugidiamente, é pena, e sem jamais poder manter por muito tempo essa ressurreição, é preciso que, bem mais tarde, eu reencontre em algumas fotos os objetos que ela tinha sobre sua cômoda, uma caixa de pó-de-arroz de marfim (eu gostava do ruído da tampa), um frasco de cristal bisotado, ou ainda uma cadeira baixa que hoje tenho perto de minha cama, ou ainda os tecidos de ráfia que ela dispunha sobre o sofá, as grandes sacolas de que ela gostava (cujas formas confortáveis desmentiam a ideia burguesa da “bolsa”).
Assim, a vida de alguém cuja existência precedeu um pouco a nossa mantém encerrada em sua particularidade a própria tensão da História, seu quinhão. A História é histérica: ela só se constitui se a olharmos – e para olhá-la é preciso estar excluído dela… [grifo do autor] Para mim, a História é isso, o tempo em que minha mãe viveu antes de mim [grifo do autor] (aliás, é essa época que mais me interessa, historicamente).” (BARTHES, 2008, p. 96 a 98)
Neste trecho da sua última obra, Barthes resume envolvido nas lembranças despertadas pelas fotografias de sua mãe falecida, a relação do historiador com a sua ciência, com possíveis fontes, bem como, a condição basilar do nosso ofício.
Diante dos registros imagéticos, ele experimenta a realidade, para a historiografia, da aplicação na atualidade, das análises e interpretações dos referentes presentes nas imagens fotográficas. Observa a figura materna apanhada em uma História, por estar vestida com roupas de outro tempo, um tempo anterior ao de sua relação com a mãe, período que mais o interessa historicamente, e que também se define na data do registro fotográfico.
Mas para reencontrá-la, a lembrança foi intensificada quando induzido a desviar sua atenção para os acessórios que a acompanharam em algumas fotografias, ainda vivos e presentes em sua memória, objetos que definem as particularidades da história de vida da mãe. Os objetos biográficos, entre estes a fotografia, possuem a condição de potencializar memórias, permitindo o recordar das experiências de vidas.
Os objetos biográficos são construções do mundo material que incorporam experiências de vida do seu possuidor. Como fonte de descobertas, o objeto biográfico ancora memórias que estimulam performances narrativas do colaborador. O significado biográfico dado ao objeto é efetivado na presença constante deste elemento material na vida de seus proprietários. (ALMEIDA)
As imagens no referente fotográfico conduzem Roland Barthes a percebe-se nítida e conscientemente distante no tempo e no espaço, era a História que o apartava no minuto recente e real do momento efetivado em cada fotografia.
O tempo funciona como um dos elementos que definem a condição de pertencimento de um fato ou objeto à história, é o que se apresentou para este autor no axioma “antes de mim” [grifo nosso], sendo necessário que o olhar do historiador esteja excluído do tempo histórico estudado, anterior à sua existência. Na atualidade, mesmo a História do tempo presente percorre um campo de pesquisa onde o evento ou objeto pesquisado encontra-se pelo menos a alguns passos no passado.
“Somente a História e a consciência histórica podem introduzir a necessária descontinuidade entre passado e presente: História, com efeito, é a ciência da diferença.” (MENEZES, 1992, p. 4)
Os estudos com relação ao passado são determinados pelas marcas da temporalidade, o historiador encontra um tempo diverso em vários aspectos daquele em que está inserido, podendo ocorrer inversões às representações originais de objetos históricos analisados, o que também remete aos limites da abordagem historiográfica que relaciona apenas fatos e eventos no decorrer de um tempo homogêneo, definidor de uma improvável e fechada verdade histórica.
A impressão que permanece é a de que o historiador estará sempre a percorrer caminhos anteriores a sua própria experiência, porque como “as flores [que] dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história.” (BENJAMIN, 2008, p. 224)
Nos registros que se seguem, o exemplo das fotografias como representação das particularidades da história de uma vida (como na experiência de Barthes), transpassa para a inserção de indivíduos em manifestações sociais representativas de uma determinada comunidade.
De meados dos anos quarenta até o final dos anos cinquenta do século passado, o rádio no Brasil alcançaria seu auge com os programas de auditório, sendo a Rádio Nacional a principal empresa radiofônica desse período. A “Hora do Pato” foi um dos seus programas mais populares, ocorrendo apresentação nos municípios do interior do Estado do Rio, como naquele ano 1956 em Três Rios. Além do programa de calouros com os cantores da cidade, havia a apresentação de artistas famosos contratados da Rádio Nacional.
Na edição nº 32 do Jornal A Tribuna de Três Rios, do acervo da Casa de Cultura da cidade, encontra-se escrito:
“No ano passado o Governo Municipal realizou grande festividade em comemoração a data [emancipação da cidade], com a colaboração da Rádio Três Rios, para qual foi convidada e aqui compareceu o maior programa popular da radiofonia brasileira, A HORA DO PATO, em apresentação gratuita na sede do Clube Atlético Entre-Rios. Era desejo do chefe Executivo Municipal [Prefeito Joaquim Ferreira], realizar, também este ano, festa idêntica que seria oferecida ao povo, de preferência em uma das praças de esporte da cidade, entretanto, razões de ordem econômica, tão conhecida de todo o povo através dos balancetes municipais periodicamente publicados, impede-nos de levar avante o seu intento”. (19 ANOS de vida autônoma. Tribuna de Três Rios, Três Rios/RJ, Ano I, nº 22, de 13 de dezembro de 1957, capa)
Barthes sentiu uma “espécie de estupefação” diante da imagem de sua mãe, em registros fotográficos de um tempo em que ele mesmo não existira, e eu, uma grande surpresa, após reconhecer inicialmente nas imagens o meu avô Mario de Castro Reis, o homem calvo de terno, na terceira fila ao centro, (emancipacionista e Presidente da Câmara de Vereadores de Três Rios no período de 1955/1959), ao seu lado direito, com o olhar direcionado na direção do Sr. Mário, o amigo e companheiro político, Dr. Otávio Freitas (Presidente da Câmara de Vereadores no período de 1947/1949), e a minha avó, Zeni Reis, a senhora ao lado direito do Dr. Otávio e depois, ao seu lado direito, a jovem, com a mão no rosto, que anos mais tarde seria a minha mãe, Marlene Reis Mattos. (Nas fotografias 2 a 4, da nossa direita para esquerda).
Estas fotografias eram desconhecidas de todos nós familiares de Marlene, encontrei-as em minhas pesquisas no acervo da Rádio Três Rios. Inicialmente, ela não conseguiu localizar, em sua memória, informações quanto à data e o que estava fazendo no Clube Atlético Entre-Rios, reconhecido pelo seu salão principal. Lembrava-se apenas que era comum a apresentação de cantores e artistas contratados pela rádio para eventos, como se observa, sempre bastante populares. Segundo os arquivos da empresa, as fotografias foram realizadas em 14 de dezembro de 1956, durante a apresentação do Programa “A Hora do Pato” da Rádio Nacional; minha mãe estaria então com 16 anos.
As feições de meus avós encontram semelhança com as imagens anotadas na memória, mas esta jovem, na verdade, apesar de reconhecê-la na figura materna, não a havia percebido, porque não vivenciei na minha existência uma relação direta com ela. Nas lembranças que trago na memória não encontro uma moça como esta, eu a desconhecia. A fotografia guardou em seu referente uma imagem que agora permite, não só pela semelhança na aparência, mas também por tudo que está sedimentado como conhecimento ligado aos signos e índices relativos à juventude e especificadamente, a maternidade e a relação de amor e admiração, ser incorporada a todas as memórias que possuo sobre minha mãe.
As memórias e as lembranças são constituídas nas experiências de relações sociais (fatos e situações do cotidiano) e por diversas formas de percepção destas experiências, podendo ocorrer entre sujeitos no mesmo tempo ou em tempos e espaços distintos.
As fotografias também são lugares de lembrança das experiências de outros, que permanecem “vivas” no referente fotográfico, possibilitando não só uma leitura rememorativa de eventos e ações dos sujeitos históricos em seu tempo, mas também, através do olhar investigativo e interpretativo no presente, delinear as lembranças que se fazem comuns.
Enquanto lugar de lembranças, a fotografia permite percorrer não só os espaços da memória das pessoas que se relacionam diretamente com indivíduos, objetos e paisagens referenciadas na imagem, pelas semelhanças com as “imagens mentais arquivadas” na memória (Barthes reencontra a mãe ao reconhecer nas fotografias objetos de seu uso diário); mas também observar e descobrir muito além do que o fotógrafo no ato fotográfico, em seu instante de elaboração, captou em seu olhar, consentindo o encontrar e o compartilhar de memórias, lembranças e mesmo do que permanecia esquecido, oculto, dependendo da particularidade em que se forjou o olhar do Spectator [2]; proporcionando “à mente condições de formar uma ideia relativa a algo já vivenciado ou, caso se trate de uma informação nova, fazer com que o interlocutor consiga imaginar, ou seja, formar imagem mental”. (HAGEMEYER, 2011, p. 43)
[1] RÁDIO TRÊS RIOS, empresa de radiocomunicação fundada em 27.11.1947, pelo Sr. Elias Jorge, precursor da radiofonia em Três Rios. Atualmente, ainda sob a administração da família Jorge, a Rádio Três Rios, transmitindo na sintonia AM 1150 KHZ, ampliou o ramo de comunicação do grupo com as emissoras FM 89,7 – Antena 1 e Canal 5 de TV por cabo. Empresa sempre presente nas manifestações políticas, culturais e sociais do município, tem grande importância na história da radiofonia da região.
[2] “Observei que uma foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, suportar, olhar. O Operador é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela, que é fotografado, é o alvo, o referente, emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrun da Fotografia, porque essa palavra mantém, através da sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.” (BARTHES, 2008, p. 20.)
Referências:
ALMEIDA, Juniele Rabelo. Objeto Biográfico e Performance Narrativa: Questões para História Oral de Vida. Disponível no site: http://neho.vitis.uspnet.usp.br/images/stories/PDFs/juniele.pdf. Acesso em: 09 de jan. 2012.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira, 2008.
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. In Walter Benjamin – Obras Escolhidas Vol. I – Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo/SP: Editora Brasiliense. 11ª Reimpressão, 2008.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Nova tradução de Beatriz Sidou. São Paulo/SP: Centauro Editora, 2009.
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória, no campo das Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), São Paulo, n. 34, 1992.