Em uma peça escrita no ano de 1945, intitulada “Entre quatro paredes” (no original, Huis clos), Jean-Paul Sartre diz, através de Garcin, um de seus personagens, que o inferno são os outros. Valter Hugo Mãe, em Desumanização, obra de 2013, escreve, contrariando, aparentemente, a visão do existencialista francês: “O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer”. No ano seguinte, o escritor português publica o livro infantil O paraíso são os outros, seguindo a mesma premissa. Em 2018, o professor Leandro Karnal e a Monja Coen, duas figuras bastante conhecidas e admiradas na internet, trouxeram à luz O inferno somos nós. Sendo assim, entre idas e vindas, os outros são, simultânea e paradoxalmente, o paraíso e o inferno, a casa de deus e do diabo, a salvação e a perdição, um caminho de luz e um abismo sem fim. Abandonamos, então, o mundo, partimos para longe, desaparecemos da vista e, além ou aquém do inferno e do paraíso, tentamos a vida? Não, porque há caminhos e não saídas. Depois dos outros, outros virão. Aristóteles, na Política, defende: “Quem for incapaz de se associar, ou não sente essa necessidade por causa da sua auto-suficiência, não faz parte de qualquer cidade, e será um bicho ou um deus”. (ARISTÓTELES,2008, p. 08). Mesmo no que diz respeito aos bichos e aos deuses, tenho lá minhas dúvidas, admito.
Nietzsche, n’A gaia ciência, adverte: “chega um dia em que aquilo que os outros sabem de nós (ou julgam saber) cai sobre nós – e a partir de então reconhecemos que é isso ο que há de mais poderoso. Arranjamo-nos melhor com a má consciência do que com a má reputação”. O mesmo autor, em Assim falou Zaratustra, dita: “um procura o próximo porque se procura, o outro porque anseia perder-se. O vosso mau amor por vós próprios converte a vossa solidão num cativeiro”. Nesse âmbito, há quem careça de afirmações e quem precise de confirmações, há quem, por nunca estar sozinho consigo, por não suportar a própria companhia, a companhia de um estranho, transforma os momentos de solidão numa clausura, num castigo. Nos outros está, quando nos aproximamos, a chave mestra, a chave que pode abrir e/ou trancar todas as portas e todos os caminhos. O que dizem a respeito de nós – e sempre há quem diga – pesa, muitas vezes, mais do que a imagem que fazemos de nós mesmos.
Na Ressurreição, Tolstoi escreve que “todos os homens vivem e agem, em parte, segundo as suas próprias ideias e, em parte, segundo as ideias alheias”. No entanto, nenhuma ideia é original, todas as ideias são alheias, vieram dos outros, e nós, durante a vida, adotamos um conjunto e dois bocados, trabalhamos as formas de acordo com as circunstâncias, trocamos a carapaça e o forro até acreditarmos, vejam só, que todas, ou quase todas, nos pertencem. Assim, os homens vivem e agem, em parte, segundo as ideias que creem ser suas e, em parte, segundo as ideias que admitem ser dos outros.
Podemos crer, também, se assim quisermos, que, pelas lentes de outrem, somos um “outro”, mas nós nunca somos um “outro”, nunca, chegaremos, realmente, a ser, porque o outro no outro é outro. Melhor dizendo, quando alguém nos vê como “outro”, esse “outro” divide a presença conosco, mas só se aproxima de nós em alguns raros momentos, quase nunca coincide com quem somos de fato. Ele, geralmente, é uma síntese possível, um resumo falho, uma parte, um vulto.
Num trecho de Em teu ventre, encontramos o seguinte apontamento de José Luís Peixoto:
Entender os outros não é uma tarefa que comece nos outros. O início somos sempre nós próprios, a pessoa em que acordamos nesse dia. Entender os outros é uma tarefa que nunca nos dispensa. Ser os outros é uma ilusão. Quando estamos lá, a ver aquilo que os outros veem, a sentir na pele a aragem que outros sentem, somos sempre nós próprios, são os nossos olhos, é a nossa pele. Não somos nós a sermos os outros, somos nós a sermos nós. Nós nunca somos os outros. Podemos entendê-los, que é o mesmo que dizer: podemos acreditar que os entendemos. Os outros até podem garantir que estamos a entendê-los. Mas essa será sempre uma fé. Aquilo que entendemos está fechado em nós. Aquilo que procuramos entender está fechado nos outros.
Nesse sentido, assim como não temos acesso ao outro no outro, à realidade do que somos aos olhos de alguém, não conseguimos acessar, no outro que se mostra, a pessoa inteira e multifacetada. A nossa leitura é sempre metonímica, porque tenta ler o todo na parte.
Digamos assim:
Há sempre um rastilho, um pavio, um estopim e um objeto inflamável, uma carga, algo que carregamos, uma coisa engatilhada, carregada, armada à espera da fagulha, da centelha. Os outros são como uma pederneira, um sílex, uma pedra-de-fogo. A depender do que guardamos na bagagem, a chama pode nos salvar do frio, nos re-animar, pode iluminar os caminhos na escuridão, servindo de referência e de amparo, ou pode, também, queimar-nos a pele, ferir-nos, reduzindo a pó as nossas intimidades, incinerando a terra fértil dos afetos, carbonizando a vontade e o desejo de viver. O mesmo fogo destrói e constrói a depender do que guardamos na bagagem.
Às vezes, algo nos é dito da mesma forma por duas pessoas diferentes. Em um dos casos, nos ofendemos; no outro, não. Isso pode ocorrer por, pelo menos, duas razões: ou o emissor é uma pessoa próxima – um desafeto, um amigo, um familiar, as três coisas, etc –, ou o receptor não está no melhor dos dias. Na primeira situação, estamos mais abertos, somos afetados, tomados de afeto, rapidamente, porque nos deixamos afetar e permitimos, de forma consciente ou inconsciente, que a pólvora fosse consumida até chegar ao limite, ao estampido. Quanto à segunda, há dias em que, por qualquer motivo, não estamos de “bom humor”, estamos – como popularmente se diz – de “pavio curto”, e até o fogacho mais inofensivo é suficiente para chegar, num arroubo, à explosão. Estamos tão desarranjados, nesses momentos, que não conseguimos conter a tempo a faísca. Não devemos, no entanto, afastar os outros por isso e pelo mais, cultivando antipatias e hostilidades, pois nem toda luz queima e fere, nem todo lampejo incendeia.
Essas explosões, de quando em quando, dão vida ao motor que nos anima e regular o estopim é um exercício para a vida inteira, porque ninguém age com calma por ser calmo, mas é calmo por agir com calma e cauteloso por usar de cautela e iracundo por ceder à ira. Como bem disse, num TED, Shauna Shapiro, “what you practice grows stronger”. Se formos mais ativos e menos reativos, ou seja, se prestarmos atenção em nós mesmos, nas nossas cargas, e aprendermos a identificar os trilhos que a pólvora desenha, os diferentes gatilhos e os piromaníacos de plantão, teremos a chance de, praticando a paciência, sermos pacientes, praticando a empatia, sermos empáticos, praticando o respeito, sermos respeitosos. Voltamos, assim, à velha máxima délfica nosce te ipsum, “conhece a ti mesmo”. Adília Lopes, em Caderno, obra de 2007, escreveu: “O inferno/ são os outros,/ mas o Céu/ também”. O senhor Geraldo da feira, que também é poeta, me disse:
“Na minha opinião,
os outros são os outros e só
que não”.
Os outros, no mistério imenso que guardam, são parte essencial do que fomos e seremos. No fim das contas, nem o inferno, nem o paraíso, mas o mundo – a humanidade com todas as suas incongruências e complexidades, o planeta, toda substância orgânica e inorgânica – são os outros e nós estamos, sonhamos, comemos e bebemos, choramos, amaldiçoamos e benzemos, sorrimos, xingamos, vivemos e morremos e salvamos e matamos e somos
o mundo.