A África pariu o mundo
Assim como o educador Freire (2014), dedico esse texto às Mulheres Africanas que carregam o mundo nas costas.
No princípio era um verbo. E esse verbo era feminino e subversivo. O verbo se tornou carne e adquiriu a forma de um pássaro feminino. O verbo contido no discurso dessa passarinha, sussurrou-me ao ouvido uma história sobre a África que ainda não foi contada e causou-me insônia, angústia. Ainda é cedo para modificar as narrativas hegemônicas ou talvez, seja tarde demais, não sei. Apesar de entusiastas dizerem que nunca é tarde para mudanças, não gosto do entusiasmo, porque a realidade indica que não estamos preparadas e preparados para derrubar as hierarquias instituídas. O fato é que desejosos por uma mudança ou não, a revolução está a caminho e traz consigo um discurso feminino, contra opressão racial e de classes e isso promoverá a restauração de humanidades. Ao menos é isso o que se propõe. Esse discurso tem sido narrado em nossa pesquisa realizada no contexto do Programa de Pós-Graduação de Ensino e Histórias das Ciências na UFABC, cuja defesa está programada para abril de 2021. Apesar de a multiculturalidade ser o assunto do momento, advirto-vos que essa pesquisa não trará paz consigo, trará a espada! E colocará o mundo acadêmico de cabeça para baixo, se é que algum dia esteve de cabeça para cima.
Desde a graduação, ocasião em que a minha trajetória científica engatinhava, ouvi uma História da Ciência, que trazia consigo a filosofia natural da Grécia Antiga como marco inicial. “Graças aos filósofos gregos foi possível elaborar a ciência moderna e contemporânea”. E onde fica a África e a Ásia nesse esquema? Não contribuíram com nada? Se a racionalidade começou com os gregos antigos, quem os ensinou a pensar de maneira racional? Essa inquietação foi o ponto de partida de nossa pesquisa e com base nos resultados iniciais da investigação mais dedicada, assumo a defesa de que precisamos de uma revolução na História da Ciência.
Em nossa verificação, descobrimos que Tales de Mileto, Pitágoras, Eudoxos, Aristóteles e alguns cientistas modernos, foram amamentados intelectualmente pela África, direta ou indiretamente. Macróbio, um escritor e filósofo africano disse que os egípcios foram os “pais de todas as ciências” Dreyer (1953, p. 129); Aristóteles e Platão são unânimes em dizer que a geometria foi criada pelos egípcios (BICUDO, 2002). Segundo Tzamalikos (2016) Demócritos, Pitágoras, Tales de Mileto, Eudoxus, Anaxágoras, filósofos gregos que normalmente ouvimos falar em História das Ciências e da Matemática, viajaram ao Egito a propósito de sua educação. E Erastóstenes que mediu o raio da terra era líbio e não grego. Euclides nasceu na cidade de Alexandria, sendo, portanto egípcio, assim como Ptolomeu, o astrônomo. Isso deveria ser motivo suficiente para questionarmos a ideia comumente aceita de que o marco inicial da filosofia natural foi estabelecido apenas pelos gregos.
A paleontologia, a genética e estudos linguísticos, indicam que a África pariu o mundo. A datação de diferentes fósseis de espécies do gênero Homo, assim como os fósseis de humanos modernos, indicam que a África é o berço da civilização (WEDDERBURN, 2003). Um estudo linguístico realizado em Atkinson (2011) disse que a origem da língua humana moderna é Africana, dada a variabilidade fonética encontrada no Continente. Se na África foi o Continente em que o ser humano deu os seus primeiros passos, é de se supor que na África surgiram os primeiros modelos cosmológicos, filosóficos e religiosos. Não faz sentido pular produção de conhecimento sistematizada por pensadores africanos e dizer a racionalidade surgiu com a filosofia grega.
Segundo James (2013), a filosofia grega é um plágio da filosofia egípcia. O autor apresenta diversas evidências para subsidiar a sua perspectiva, dentre elas a perseguição do governo ateniense contra os fundamentos da filosofia grega por considera-la estrangeira. Segundo o autor, a filosofia egípcia foi o alicerce do que conhecemos como filosofia grega, por esse motivo Anaxágoras foi perseguido e exilado, Sócrates o filósofo foi executado, Platão foi vendido como escravo e Aristóteles foi denunciado e exilado (JAMES, 2013, p. 2).
Se a filosofia grega é plagiarismo da filosofia egípcia não importa. O que verdadeiramente interessa é apontar que os gregos não inauguraram a seara da racionalidade de maneira autossuficiente. Houve a colaboração de pensadores, filósofos, físicos, matemáticos egípcios, líbios, etíopes, fenícios e babilônios (TZAMALIKOS, 2016). É sob essa pedra angular e multicultural que demos construir as narrativas de Histórias das Ciências, não sob uma perspectiva hegemônica que silencia a contribuição dos demais povos. Se sabemos que o imperialismo europeu demoliu as epistemologias não europeias, não seria nosso dever questionar a ideia de apenas ensinarmos sobre os conhecimentos produzidos por europeus num país multicultural como o Brasil?
É dado o momento de surgimento de outras epistemologias. É tempo de resgatar as epistemologias do Sul, especificamente as Africanas e Ameríndias no Brasil. Não podemos continuar em negação com a nossa brasilidade estabelecida pela identidade dos diferentes povos nativos brasileiros, das centenas de povos africanos que cá vivem e na diversidade de afro-brasileiros. Não podemos falar de surgimento sem trazer à baila discursiva Frantz Fanon, um psiquiatra e revolucionário que diz a luta do presente deve demolir o racismo e irromper um humano novo e livre do fardo da raça (FANON, 2008). Para que haja o surgimento de um sujeito social liberto da abjeção colonial, o eurocentrismo deve ser derrotado e para isso acontecer, o mundo deve ficar de cabeça para baixo. Ao fazer isso, demolimos a noção de que a Europa é o centro do mundo e nós somos periferias. Quando dizemos que há nações no Hemisfério Sul e outras no Hemisfério Norte, essa perspectiva não é geográfica e sim política e indica que as nações europeias e outras nações “desenvolvidas” estivessem acima de nós, enquanto nós estamos atrasados. A terra é esférica eurocentrismo, logo não existe norte e tampouco sul, mas já que essas notações existem, que possamos sulear o nosso mundo e não norteá-lo.
Um cuidado que se deve ter ao ensinar sobre a África é descrevê-la em termos de África negra e África branca. Essa notação estabelece que ao Norte há uma África em estágio intermediário de civilização em que os moradores não são negros, em contraposição com a África negra, em que impera a miséria, a negritude e a morte. Em nome de minha africanidade os convoco para revisar essa ideia. A África é um continente africanizado que compartilha culturas riquíssimas, em que os cidadãos sejam brancos ou negros compartilham singularidades, semelhanças e diferenças. Apesar da diversidade no Continente Mãe, há encontros e desencontros entre os povos, não apenas desencontros. É preciso reescrever a História da África para proporcionar vida, que destrua as incoerências sobre o continente e que supere os estereótipos. Que por meio dessa revolução, seja possível banir a besta imunda que ainda paira entre nós e nos fez acreditar que somos hierarquizados quando a nossa origem Africana nos une. Se os homenzinhos da ciência fizeram o mundo acreditar que a “pessoa de pele negra é a mais inferior de todas as raças” Gould (2014), por meio da ciência, vamos desmascará-los. Que as verdades que serão trazidas nessa pesquisa provoquem uma revolução de valores e que nos conscientize que a África foi o nosso primeiro Baobá, em outras palavras, o Continente mãe foi o nosso primeiro berço ancestral, nem que seja num passado muito longínquo.
Quando disse que o discurso da nossa pesquisa adquiriu formato de um pássaro, o fiz em alusão a Iyami Oxorongá, um poder ancestral na cultura Iorubá que representa a energia condensada de todas as Mulheres velhas que já existiram e que existem. É sinônimo de amor e de justiça e é nesta perspectiva que a nossa pesquisa se assenta!
Com amor, Nínive
Referências bibliográficas
Atkinson, Q.D., 2011. Phonemic diversity supports a serial founder effect model of language expansion from Africa. Science, 332(6027), pp.346-349.
Bicudo, Irineu. “Platão e a Matemática.” Letras clássicas 2 (2002): 301-315.
DREYER, John Louis Emil. A history of astronomy from Thales to Kepler. Courier Corporation, 1953.
FREIRE, Paulo. A África ensinando a gente: angola, Guiné-Bissau, São tomé e Príncipe. Editora Paz e Terra, 2014.
GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Editora WMF. 2014.
James, George GM. Stolen legacy. Simon and Schuster, 2013.
TZAMALIKOS, Panayiotis. Anaxagoras, Origen, and Neoplatonism: The Legacy of Anaxagoras to Classical and Late Antiquity. Walter de Gruyter GmbH & Co KG, 2016.
WEDDERBURN, Carlos Moore. “Novas bases para o ensino da história da África no Brasil.” Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03 (2003): 133-166.
Sobre a autora:
Nínive Silva possui uma identidade coletiva formada pela junção de povos angolanos e afro-brasileiros, formada no Bacharelado interdisciplinar em Ciência e Tecnologia e Licenciatura em Física, ambos cursados na Universidade Federal do ABC. Atualmente, está matriculada no curso de graduação de Neurociências e de mestrado em Ensino e História das Ciências e suas Interfaces com a Educação na instituição supracitada. Sua pesquisa é voltada para as contribuições científicas dos povos africanos Bantu no Ensino de Ciências. Realiza palestras e oficinas voltadas para a História da África em escolas particulares e públicas.
Texto riquíssimo, nos faz refletir sobre a cultura egípcia e outras culturas antigas, muitas dizimadas por aqueles que escreveram a História que conhecemos hoje.
Quem divulga em primeiro lugar, se torna detentor do conhecimento divulgado, mas não necessariamente produtor desse conhecimento.
Agradeço a devolutiva querida Iraci! Concordo contigo, precisamos refletir sobre culturas que outrora foram dizimadas e que esse conhecimento circule, assim como folhas de outono.