Irene Franciscato
No último Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), realizado em novembro de 2019, a proposta de redação aprovada pelo Ministério da Educação (MEC) para avaliar nacionalmente a produção escrita do estudante que finaliza o ciclo da educação básica foi “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”.
Em conversa com alguns jovens que fizeram a prova, estes mostraram caminhos diversificados na escrita do texto. Por exemplo, disseram ter tentado colocar o cinema enquanto criação artístico-cultural no bojo da produção audiovisual, como a película e o vídeo, em seus diversos suportes como a TV aberta e fechada, tablets, celulares e a variação do acesso: doméstico ou público, nas salas de projeção pagas. Também tentaram analisar as razões de baixa ou alta frequência de uma ou outra modalidade; buscaram explicar a diferença de perfil de público quanto a natureza da película exibida: documentário ou ficção, assim como responder às perguntas: quem vê cinema hoje e que cinema vê?
Certamente, esta é uma representação muito pequena frente ao número de jovens que realizaram a prova, mas pode nos levar a alguma reflexão, como por exemplo o estratégico uso da imprecisão e precisão no enunciado do título da proposta de redação.
O título foi preciso quanto ao local pois se referia ao Brasil, muito embora quando se diga Brasil, remeta ao jovem a necessária lembrança das diferenças geográficas, regionais e sociais do país, o que, portanto, leva de imediato ao reconhecimento da desigualdade do acesso ao cinema. Os espaços de exibição/audiência cinematográfica ocorrem de forma predominantemente paga e que políticas públicas para a difusão do cinema para cidades distantes têm sido pouco significativas, especialmente quando o governo federal desprestigia a formação cultural da população brasileira. Para defesa de argumento quantitativo, o jovem poderia indicar que, conforme o cineasta Jorge Furtado, menos de 10% dos municípios brasileiros possuem salas de cinema. De todas as 2206 salas do país, 1640 estão na região Sul-Sudeste (74%) e 770 apenas no estado de São Paulo (34%).
Impreciso, por exemplo, quanto à origem da produção cinematográfica, cabendo de partida a pergunta: acesso a qual cinema: americano, europeu, asiático, brasileiro, todos? Impreciso também quanto à faixa etária – não se mencionando algo como “Democratização do acesso do jovem ao cinema no Brasil” ou “Democratização do acesso do idoso ao cinema no Brasil”. Tais imprecisões apresentam-se convenientes ao estudante, pois lhe permite mostrar amplo leque de conhecimento sobre o tema na construção de seus argumentos.
A respeito de salas de cinema privadas, para quem se lembrou do uso da carteira de identidade estudantil como instrumento de acesso dos jovens e idosos às salas de cinema privadas, poderia dar conta, por elaboração própria, de alguns valores da meia entrada, que na atualidade varia em média dez a dezessete reais. Também mencionar a Lei nº 12.933, de 26 de dezembro de 2013, que dispõe sobre o benefício do pagamento de meia-entrada para além dos estudantes, incluindo idosos, pessoas com deficiência e jovens de 15 a 29 anos comprovadamente carentes, nos espetáculos artístico-culturais e esportivos, em território nacional.
Ainda, que leis regionais – por exemplo as que vigoram nos estados de São Paulo, Pernambuco e Goiás – disponibilizam meia-entrada também para professores e funcionários que trabalham na rede pública de educação.
E SE O TEMA FOSSE O ACESSO AO CINEMA BRASILEIRO? BASTIDORES EM PAUTA
Não fosse o tema “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”, mas sim, num exercício de imaginação “Democratização do acesso ao cinema brasileiro”, não se trataria de simples troca de palavras, mas de verificar o quanto o tema ampliaria as possibilidades expressivo-argumentativas, de nossos/nossas jovens.
Para além de aspectos que circundam o cinema no Brasil, já acima mencionados, a especificação da temática provavelmente o levaria a pensar no problema enfrentado pelo cinema nacional: a concorrência que este deslealmente enfrenta no mercado interno – nas fases de produção, distribuição, divulgação e exibição. Para apoio da primeira fase – a da produção – o jovem poderia citar a conhecida Lei Rouanet, Lei nº. 8313 de 23 de dezembro de 1991 que, por meio de incentivo financeiro, promove, protege e valoriza a diversificada expressão cultural nacional de artistas, produtores e técnicos da área cultural, entre estes, os que se dedicam à produção cinematográfica. Tanto a pessoa física ou jurídica como ongs, fundações, empresas, cooperativas podem concorrer com projetos.
Nas etapas seguintes – distribuição, divulgação e exibição, nossos/nossas estudantes poderia discorrer também sobre a concorrência desleal do cinema nacional frente ao cinema americano, perceptível a olho nu, bastando para isso observar os cartazes publicitários dos filmes que as salas de cinema privadas exibem: não raro um nacional para quatro ou cinco filmes “estrangeiros”, quando não exclusivamente películas americanas.
Embora com dificuldades, a produção cinematográfica deu saltos de qualidade significativos, mas há também que lutar com o fator tempo: é preciso que haja um número “x” de público na primeira semana de exibição para que o filme nacional permaneça disponível mais dias em cartaz.
Poderia haver ainda a referência à Agência Nacional do Cinema – que estabelece regras para desenvolver a indústria e o mercado e fiscalizar o cumprimento da legislação em relação ao setor cinematográfico brasileiro. Também que, conforme palavras do atual diretor-presidente Manoel Rangel, o acesso a conteúdos audiovisuais para brasileiros de todas as idades e cantos do país é uma realidade, já que atualmente o audiovisual não está mais restrito às salas de cinema e TV aberta. Segundo Rangel, a TV fechada é uma realidade em muitos lares brasileiros e os novos suportes, como os tablets e os celulares, chegam com força total, principalmente entre os mais jovens. Se o estudante quisesse, poderia articular tal declaração como um contra-argumento à feita por Jorge Furtado.
Um passo para frente, dois passos para trás? Aqui o estudante poderia apresentar a contradição interna que ocorreu recentemente nessa instituição, pelas mãos do ministro da Cidadania, mais precisamente em agosto de 2019: o cancelamento de um edital da ANCINE cujo montante de R$ 70 milhões seria destinado a produções audiovisuais para serem veiculadas pelas tevês públicas.
O estudante poderia também apresentar a repercussão da medida junto a alguns diretores de cinema nacional que teceram críticas a esta, evidenciando na ação um ato de censura, já que ocorreu após a presidência da república, pela internet, anunciar a exclusão de alguns filmes. Tais produções possivelmente excluídas teriam como tema central, por exemplo, a sexualidade e o movimento de ocupação das escolas.
Recapitulando os últimos cinco anos – de 2013 a 2017 -, os temas de redação do ENEM foram respectivamente: Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil; Publicidade Infantil em questão no Brasil; A violência contra a mulher na sociedade brasileira; Intolerância religiosa no Brasil e Desafios para a Formação Educacional de Surdos, em que se mostra como ponto comum a convergência para temas sociais em que o jovem deve argumentar e se posicionar frente ao mundo que sua geração permite experenciar.
Contudo vale questionar se o tema deste ano relativo ao acesso ao cinema no Brasil não direcionado para o cinema brasileiro deixa escapar ao jovem a possibilidade de expor sua crítica aos bastidores do cinema nacional no que diz respeito às políticas públicas de fomento à cultura audiovisual, atualmente em retrocesso.
O acesso ao cinema merece uma discussão muito mais profunda para além da carteirinha de estudante ou da variedade da plataforma: exige análise das condições de produção que permita uma obra cinematográfica diversificada e de qualidade para que a vida e a diversidade cultural do povo brasileiro seja esteticamente retratada nas telas – no passado ou no presente, no documentário ou na ficção – e assim oferecer um leque amplo de escolha a todos.
A carteirinha de meia entrada para salas de cinema ou a plataforma doméstica só tem sentido se houver cinema de qualidade produzido para se escolher o que assistir mediante a diversidade de produção e de produtores. Como dizem os Titãs, a gente quer ARTE! Para o atual momento, muita Arte Brasileira!
AVISO IMPORTANTE: NOSSOS COLUNISTAS TERÃO UMA BREVE PAUSA. EM MARÇO/2020 RETORNAMOS COM NOVOS ARTIGOS.
ATÉ LÁ!