Ensaios, crítica, crônicas e resenhas.

O CORPO DE DEUS

Um conto de natal

A menina, então, depois de amar e odiar, sorrir e chorar, sofrer e viver e sonhar, depois de obedecer e contrariar as regras, de acender, mudar, esquecer e apagar algumas velas, ficou morna e, porque não era fria nem quente, foi expelida, exilada do corpo de deus. Estando ali, viu, cheia de assombro, a casa onde morava e as janelas e as portas da casa e os degraus e o teto e as cores da casa e entendeu, sem compreender, que o broto, ao romper a semente – quando abre, ainda recente, a carne da terra em busca de luz – fica mais forte.

Agora, no entanto,

a menina era uma mulher e a mulher amou e chorou e odiou e sorriu e, depois de tudo, arrefeceu, ficou morna e a grande boca, novamente, vomitou. Estando fora do que parecia o fora, (re)conheceu o corpo de deus e animou-se, pois, dessa vez, era o deus verdadeiro, aquele que mora fora do fora. Diferente de antes, estavam, finalmente, face a face, a mulher e deus.

Passados alguns anos, porém,

de tanto viverem juntos e conviverem, pareciam uma coisa só, somente uma coisa sozinha, eram um, e a criatura, na comunhão intensa e profunda, via só um reflexo obscuro no espelho, um vulto ensimesmado, que não era mulher, que não era deus e, por não ser mulher nem deus, era morno. Mais uma vez, foi arremessada para fora e, no exterior, envelheceu.

Naqueles anos, procurou entender a fisiologia e os aspectos anatômicos daquele corpo, daquele lugar estranho e familiar, explorou, de fora, os cantos mais populares e os recantos mais remotos, zangou-se, abateu-se, alegrou-se, aqueceu os pés na estrada, esfriou a cabeça, voltou a esquentar com tudo, agiu de maneira fria, gélida, teve discussões calorosas, debates ardorosos, foi frígida, viajou para os polos, caminhou por vulcões adormecidos e, quando as voltas fizeram a volta e começaram a voltar, ficou morna

e a mulher, na velha, ficou morna

e a menina ficou morna

e todas foram banidas, mais uma vez, para o fora do fora do fora e compreenderam, depois de entender, depois de tanto regurgitar e de tanta ruminação, que o dentro está fora, que o fora está dentro, que, se ainda não saímos, não podemos entrar, que não podemos sair se ainda não entramos, que o sair é condição essencial para o entrar, que o entrar só acontece para quem sai, pois os que estão, desde sempre, no interior da casa, ao ignorar o fora, ignoram o dentro, ignoram a própria casa e vivem, sendo frios ou quentes, uma única e indiscutível verdade. A mulher ouviu quando a criança, já velha, disse admirada: antes do início e antes do fim, antes de antes e de além e de agora, há o meio, porque, no princípio, era o verso, o inverso, o avesso do avesso do avesso do avesso e tudo começa pela metade.

Assim, a bocarra se abriu e todas fitaram, de novo,

entusiasmadas, sedentas, resplandecentes,

o lado de fora.

Lucca Tartaglia é doutor em Letras Vernáculas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui mestrado em Letras (Estudos Literários) pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa (2014) e graduação em Letras (Língua Portuguesa / Literaturas de Língua Portuguesa) pela mesma instituição (2013). É colaborador, como pesquisador, no grupo Formação de Professores de Línguas e Literatura (FORPROLL), linha de pesquisa Estudos de cultura, linguagens e suas manifestações, vinculado ao CNPq.

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