Ensaios, crítica, crônicas e resenhas.

ENTRE MITOS

Enquanto uma parte da população acredita que o contágio será “democrático”, o Brasil, mesmo de quarentena, caminha entre mitos.

Muitas vezes, quando nos apegamos a “-ismos”, passamos a agir e a pensar como isolacionistas, segregando e, com espantosa frequência, moralizando, autoritariamente, quem nos cerca. Aristóteles escreveu, em Ética para Nicômaco, que um homem fora da sociedade ou é uma besta ou um deus. Como não tenho grande afinidade com os deuses, só me resta crer que, trocando as pontes por muros, tenderemos para a primeira opção. De acordo com o professor Olavo de Carvalho, um dos ícones da “direita brasileira” – que, se tivermos como base a live realizada ontem, dia 22 de março, pela Brasil sem medo, tem, aparentemente, conhecimentos nas áreas de necropsia, epidemiologia, virologia e afins –, em “grego, idios quer dizer ‘o mesmo’. Idiotes, de onde veio o nosso termo ‘idiota’, é o sujeito que nada enxerga além dele mesmo, que julga tudo pela sua própria pequenez”. No mesmo texto, “Professores de corrupção”, publicado, pela primeira vez, no Diário do Comércio, em 2012, e republicado por Felipe Moura Brasil, em 2013, Carvalho defende:

Ninguém é mais imoral, nem mais perigoso para a sociedade, do que o juiz da conduta alheia que tome a sua própria alma corrompida como medida máxima da moralidade humana. O homem que julga por esse padrão — pior ainda, o que ensina a julgar assim — é uma força dissolvente e corruptora ainda mais daninha do que o imoralista praticante, o bandido, o ladrão, que ao menos não faz da sua torpeza pessoal uma teoria, um critério e uma lei.

Nesse caso, é preciso admitir, o professor está certo. Com enorme frequência, os homens, imersos em construtos ideológicos fechados, em sistemas “perfeitos”, refletem e refletem e continuam a refletir sem jamais perceber, no reflexo, as traves que carregam nos olhos. O guru, nessa circunstância, cego pela soberba e arrogância, mede, através do seu próprio tamanho, a vida e o mundo, ensinando, aos discípulos mais devotos, a mesma escala e os mesmos parâmetros, aos discípulos que, muito crentes, não questionam o mestre. O problema é que o mínimo, entendido, muitas vezes, como se fosse o bastante, é o que você precisa saber para ser um idiota, um alienado, para defender absurdos indefensáveis e acreditar em tudo, em qualquer coisa dita por qualquer um sobre qualquer assunto. Tudo bem, saber menos, às vezes, é mais cômodo e confortável. No entanto, será, em qualquer ocasião, insuficiente, arriscado e, para todos, perigoso.

Não me considero um seguidor do marxismo, do comunismo, do conservadorismo, do liberalismo ou de seus derivados. Os “-ismos” tendem, de maneira contumaz, para simplificações grotescas e, de qualquer forma, sob qualquer ponto de vista, nada disso é simples, nada do que, atualmente, vem acontecendo é simples. Com frequência, no intento de facilitar, simplificamos a ferro e fogo, mas acabamos por tornar, em virtude da simplificação, tudo mais difícil. Enfim, vamos ao que, nessa rápida e breve reflexão, deve interessar.


 

No fim das contas, toda história é uma estória mais ou menos bem contada. Os humanos, de acordo com Yuval Noah Harari, “pensam em forma de narrativas e não de fatos, números ou equações, e, quanto mais simples a narrativa, melhor”. Assim, “toda pessoa, grupo e nação tem suas próprias lendas e mitos”. De início, recorreremos ao termo “mito”, vale dizer, apenas como referência ao neologismo “mitar”, muito usado nas redes sociais e aproximado, no que diz respeito ao significado, do verbo “lacrar”, também oriundo das redes[1]. De forma geral, podemos definir como uma “mitada” quando um comentário muito engraçado, polêmico e/ou controverso obteve um índice de interação considerável, com muitos “likes”, um alto nível de visualizações e compartilhamentos. Vem daí, principalmente, o epíteto do atual presidente da república, Jair Messias Bolsonaro.

Quando ainda deputado, Bolsonaro, por conta de suas frases feitas, declarações impulsivas e opiniões controversas, ganhou destaque entre os internautas, transitando pelo “politicamente incorreto”, pelos limites da liberdade de expressão e pelo discurso de ódio, com direito à misoginia, homofobia, racismo, desrespeito aos direitos humanos, a direitos fundamentais garantidos pela constituição e muito mais. Orbitando em torno dessa figura e dos seus ditames – que passaram a funcionar como mandamentos para alguns –, nasceu o bolsonarismo, toda uma mitologia (um conjunto de mitos políticos), com direito a panteão, processos de sacralização e demonização de ideias, grupos e indivíduos, palavras de ordem e uma mitogênese própria, que serve de base para toda uma cosmovisão. Das divindades maiores, o presidente, os ministros e “superministros”, o professor Olavo de Carvalho e os representantes supremos das alas ligadas aos militares, ao agronegócio e aos evangélicos, a trindade “BBB”, passando por semideuses e criaturas menos divinas, como os filhos do presidente, o chamado “Clã Bolsonaro”, os “digital influencers”, atores e atrizes, cantores, membros da mídia tradicional e os seguidores, conhecidos como “bolsominions”, que apresentam uma devoção incondicional, apoiando todas as ações do líder e rechaçando, raivosa e ferozmente, toda e qualquer pessoa que contrariar o “movimento”. Quem não acolhe de forma plena e integral, logo é tachado de inimigo e passa para o “lado de lá”, para o “time” dos comunistas, socialistas, petistas, lulistas, etc.

Acontece, porém, que isso não se restringe apenas ao bolsonarismo. Se o movimento que representa a dita “extrema direita” no Brasil nasceu de um mito político e tem como centro, atualmente, a figura de Jair Messias Bolsonaro, o movimento ligado ao que se convencionou chamar de “esquerda” (ou, para alguns, “extrema esquerda”) surgiu a partir da figura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, e também tem por base um mito político. No lulismo, encontramos também, ainda que de forma menos clara, um mito de origem, um panteão de deuses e heróis, um compêndio de diabos e criaturas demoníacas, preceitos, preconceitos e princípios, com força de dogma, mais ou menos estabelecidos, verdades inquestionáveis, intelectuais-chave, “influencers” – que não “mitam”, mas “lacram” –, jornalistas, artistas e seguidores movidos por uma fé inabalável, sedentos por um direcionamento, retificando as decisões do líder e afugentando, colérica e apaixonadamente, os adversários e opositores, os “inimigos da verdade”. Independentemente do que aconteça, repetem, como fazia o Sansão, personagem de Orwell, n’A revolução dos bichos, “Napoleão tem sempre razão”, “trabalharei ainda mais”.

Fonte: Google Imagens

Quem acusa a “Era Lula” de “governo comunista” ou não sabe o que é, tem sido e foi o(s) comunismo(s) – de Marx e Engels, de Lenin, de Stalin, de Trotsky, de Mao Tsé-Tung, de Fidel, etc – ou não acompanhou, dentre outras muitas coisas, a série de medidas neoliberais dos mandatos Lula e Dilma (principalmente no que diz respeito aos cinco maiores bancos do país). Quem chama o atual presidente de fascista ignora as muitas privatizações, o “entreguismo” e a desnacionalização sistêmica da indústria. Quem acha, por conta das mesmas medidas, que o chefe maior do Estado é um liberal desconhece o fato de que, durante toda a sua vida política, primeiro como vereador e depois como deputado, Bolsonaro nunca defendeu pautas ligadas ao liberalismo, passando, aliás, bem longe disso. Na década de 90, por exemplo, foi contra as privatizações feitas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, sempre ovacionando posições intervencionista e dando declarações diversas a favor da ditadura/governo militar. Além do mais, grande parte das frases do presidente que “mitaram” não apontam para uma perspectiva “conservadora”, mas reacionário e, em alguns casos, atrasada, simplesmente. No entanto, para os fiéis dos mitos políticos e das mitologias em questão, nada disso importa. Na era da “pós-verdade”, o crer é maior do que o saber e, contra os argumentos, não há fatos que sobrevivam.


 

Escutei, hoje cedo, que a COVID-19, doença causada pelo Corona (SARS-CoV-2) “não vai matar ninguém, só velhinhos e gente já doente”, “10% a 15% dos velhinhos”. Não se trata de politizar ou não a desgraça, porque a desgraça é, desde há tempos, bastante política. De acordo com dados de 2018 – ou seja, de dois anos atrás –, publicados pelo IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 13,5% da população brasileira, naquela ocasião, era de idosos. Portanto, considerando uma população total de 208 milhões, para facilitar o cálculo – porque, na altura, já éramos um pouco mais em números –, tínhamos mais de 28 mil pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Dessa forma, se 10% dessas pessoas morressem, seriam 2.800 mortes. Parece pouco, não é? Estatisticamente, parece pouco. Agora, pense em alguém que você ama, alguém com mais de 60 anos, pode ser um avô, uma avó, um vizinho, o seu pai ou a sua mãe, tanto faz. Pense em alguém que você admira. Essa pessoa, assim como aquelas 2.800, desaparecem nas estatísticas, mas todas possuem – e cada uma delas possui –, vínculos afetivos, uma história, sonhos e desejos, gostos peculiares e manias comuns, medos, ensinamentos, ambições, tristezas e alegrias e receios… ou seja, todas, em suma, têm uma vida. Não se trata de abandonar as estatísticas, elas são muito úteis e necessárias – imprescindíveis, eu diria, em alguns momentos. Porém, deixar que os dados estatísticos criem uma interpretação dissociativa e desumanizada do mundo, apagando, através de abstrações, a concretude das pessoas reais, é jogar fora o bebê e cuidar, com zelo, da água que sobrou depois do banho, é tirar as flores do jarro

e plantar o jarro

no jardim.

Será que, por não contribuem, diretamente, para a produção e o acumulo, as peças que “perderam a utilidade” para o sistema devem ser excluídas do maquinário social? Um lado grita que, agora, com a crise no mundo, devemos pensar nas pessoas, a economia não importa; outro lado esbraveja e resmunga que a economia é o mais importante, que algumas pessoas, de fato, vão morrer, uns “velhinhos e gente já doente”, mas isso é inevitável, coisas que aparecem e desaparecem no vagar da história. Enfim, como bem escreveu Sophia de Mello Breyner Andersen:

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”.

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.

 


[1] Há quem diga e defenda que “lacrou” pertence ao vocabulário da esquerda e “mitou” seja um termo exclusivo da direita, considerando que o primeiro teria surgido como um bordão do “youtuber” Romagaga, em 2013, e foi sendo popularizado entre a comunidade gay como um “meme” da internet, até chegar ao vocabulário popular, e o segundo está diretamente ligado à figura do atual presidente da República Federativa do Brasil.

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Lucca Tartaglia é doutor em Letras Vernáculas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui mestrado em Letras (Estudos Literários) pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Viçosa (2014) e graduação em Letras (Língua Portuguesa / Literaturas de Língua Portuguesa) pela mesma instituição (2013). É colaborador, como pesquisador, no grupo Formação de Professores de Línguas e Literatura (FORPROLL), linha de pesquisa Estudos de cultura, linguagens e suas manifestações, vinculado ao CNPq.

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