A ESSÊNCIA DA APARÊNCIA

A reconfortável divisão que os eruditos faziam entre o raso conhecimento (senso comum) da experiência popular e o conhecimento substancial da filosofia e da ciência, não sofreu abalos significativos até a invenção da fotografia na primeira metade do século XIX. Gravuras, ilustrações, pinturas e esculturas ainda eram produtos da mente, trazidas ao mundo material pelas habilidades artísticas de alguém que reproduzia um modelo mental prévio posteriormente manipulado em figura (do latim fingo = dedos). Nem por isso era aconselhável se fiar nas aparências superficiais, pois elas podiam enganar.

Para a filosofia daquela época só a substância das coisas revelava a verdade dos seres e o conhecimento perfeito do mundo comunicado por letras e números, estes sim, vetores de verdades permanentes. Dentre as características substanciais, as essências compunham o conjunto de elementos necessários e suficientes para que o ser expressasse aquilo que realmente é.

Entretanto, a pergunta que emergiu com frequência depois da invenção da fotografia foi: “Já que a fotografia nos oferece a aparência evidente dos seres por meio da reprodução de uma imagem técnica, sem a manipulação (fingo, figuração) humana direta, seria possível encontrar ali a verdade substancial dos seres?”

Etimologicamente, a palavra “substância” provém de sub stare, ou seja, estar sob a superfície, sob a aparência. Portanto, aquilo que está sob a aparência deveria tornar-se a realidade do ser (essere, do latim, ou essência). Assim, as características essenciais que definem os seres devem estar sempre nele, sob sua superfície aparente. Ora, então a fotografia não proveria um conhecimento real por ser apenas a captura da imagem superficial dos seres; a imagem técnica seria então o mero registro de um particular, sem o poder de produzir um conceito universal, do qual as essências participam.

Essa primeira reação erudita contra a fotografia ainda pode ser encontrada hoje, embora mitigada por uma série de subterfúgios argumentativos, em todas as formas de sujeição da imagem técnica a uma escala de valores em que os conceitos (provenientes de palavras e números) figuram no topo e relativizam todas as demais formas “particulares” de saber.

Mas há que se perguntar: cada uma das características essenciais que definem os seres não seriam elas mesmas outras imagens ou aparências detectadas pelo observador? Essas características não seriam um conjunto de convenções que precisam ser observadas para então obter-se o veredicto de algum ser?  Ora, se são convenções, são também modelos e, por isso mesmo, imagens mentais com correspondência material – uma vez que tais características precisam ser detectadas no ente existente. Se for assim, aquilo que está sob a superfície, por real, são outras superfícies que, em camadas sucessivas e/ou paralelas, vão se revelando ao olhar arqueológico do observador. Então, substâncias, essências e aparências são nomes diferentes para as diversas superfícies que são alcançadas pela percepção cultivada.

Desse modo, a fotografia não pode ser vista apenas como o registro de uma aparência, curiosidade técnica ou entretenimento artístico, mas também como um conhecimento válido, tanto científico como filosófico.

 

Estética e arte

 

O entendimento de que as características essenciais ou substanciais são, de fato, superfícies mais ou menos evidentes, torna todas as coisas passíveis de serem também conhecidas esteticamente. Em outras palavras, tudo o que existe para o humano pode ser apreendido não apenas logicamente, mas também ana-logicamente (por meio de operações estéticas que processam semelhanças e diferenças).

O conceito baumgarteniano de estética a toma como um cognitio sensitiva, isto é, conhecimento proveniente da sensibilidade, sensações, emoções, afetos e paixões. Este tipo de conhecimento é constituído a partir do estranhamento causado em nossos sentidos, por uma diferença evidente em relação à norma. Enquanto a lógica é um tipo de conhecimento que busca no mundo aquilo que é normal, regular, geral ou universal, a estética gera saber pela detecção ou construção do estranho, estésico, sensacional e erótico (lato senso). Uma das diferenças entre lógica e estética está no fato de que esta última se relaciona intimamente com a originalidade e criatividade. A norma não aceita criatividade, pois seus modelos devem ser redundantes. Alterar os modelos seria permitir a intromissão do “anormal”. Originalidade numa regra convencional funciona como um câncer que a corrói até o esfacelamento da ordem instituída com o retorno à “origem”.

Não fosse a disputa de prestígio político e social entre os defensores de um e de outro tipo de conhecimento, certamente há muito tempo a sociedade ocidental teria se beneficiado com a “dupla articulação” do conhecimento “logopático” (CABRERA, p. 18, 2006) – lógico e estético em um só tempo.

Dentre os variados modos de conhecimento estético, a arte se encontra numa posição privilegiada, de vez que os estudos sobre sua manifestação estão bem desenvolvidos. Com a fotografia podemos exercitar a ideia das superfícies aparentes, substanciais e essenciais, tratadas aqui simultaneamente de modo lógico e estético (logopático). Do ponto de vista lógico ou representativo a fotografia mostra o significado. Mas, a breve descrição lógica não esgota tudo o que a fotografia deixa ler. De fato, a leitura objetiva da representação lógica restringe-se à “superfície” primeira ou aparente, por conta do cacoete milenar que desconsidera imagens como informação conteudística. Porém, tudo o que podemos compreender com a leitura de uma fotografia está nela mesma e também fora dela. Este suposto paradoxo não impede de encontrarmos substância e essência entre os elementos da imagem que ali está, mas, ao mesmo tempo, não está. Porque parte do que se apreende depende do estoque de analogias do observador, cujo olhar treinado permite fazer juízos estéticos acerca de expressões aparentemente insignificantes.

Ao colocar nossos olhos sobre as fotografias, uma enxurrada de significados substanciais afloram da superfície e evidenciam a urgência de sentimentos, que se confessam diante da câmera. O “shooting” da câmera não é apenas um instantâneo que se eterniza, mas também um tiro na esperança de reciclar os anos perdidos para o tempo. O “still” da fotografia suspende o tempo na imagem que clama no deserto inclemente das eras.

Elaborada por outra pessoa, a análise estética de uma fotografia seria certamente diferente. Mas isso não importa, por que aquilo que nos afeta não está na imagem, mas provém dela na forma de “gatilhos” que disparam memórias analógicas capazes de gerar efeitos estéticos.

A permanência das obras de arte também se verifica pela qualidade e quantidade de “gatilhos” que fazem disparar na sensibilidade treinada um sem-número de impressões que afetam, de um modo original, o estoque de analogias patêmicas do observador. A impermanência, por outro lado, é resultado de simulacros claudicantes que não ultrapassam a superfície aparente das substâncias.

 

Referências

 

CABRERA, Júlio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2006.

 

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